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Estado de Minas DESOBEDIENTES � NORMATIVIDADE

Corpos que n�o se desculpam e enlouquecem pessoas

Como corpos dissidentes podem provocar desordem a partir da desobedi�ncia e exist�ncia


29/09/2021 06:00 - atualizado 29/09/2021 11:11

(foto: Jo�o Paulo Ferreira/Divulga��o)

 
“Um corpo gordo que n�o se desculpa enlouquece as pessoas”. Essa frase � da artista  Kelli Jean Drinkwater, dita num Ted x Talks  h� alguns meses e que conheci atrav�s da escritora Lorena Otero, autora do livro “Osso de Baleia” e essa frase me foi um presente. Foi atrav�s dela que entendi muito do comportamento bizarro, odioso e destrutivo das pessoas opressoras perto de corpos que estavam ali, desobedecendo a normatividade. 

Ali�s, muito se fala em exerc�cios para definir a barriga e deix�-la chapada, para melhorar o cardio, para ter mais resist�ncia e evitar a COVID-19, para acalmar a mente, para conquistar o homem ou a mulher (sempre dentro da norma) dos seus sonhos, mas, pouco se fala em exerc�cios para desobedecer o que esperam da gente. Em exerc�cios para sabermos o que, de fato, n�s queremos e n�o o que nos � exigido e arrancado ao mesmo tempo. 

Quais seriam os exerc�cios para matar de inani��o a superioridade da normatividade? Tenho pensado, novamente com a ajuda de Lorena, essa amiga querida, em como desobedecer, essa atividade t�o simples, que fazemos com tanta efic�cia quando crian�as e que, j� adultes e cheies de moralidades, tememos ousar pisar fora da faixa e sermos julgades, n�o sermos compreendides e mais um tanto de balelas e desculpas que usamos para n�o nos havermos com nossos desejos e com a quantidade de subvers�o, inclusive dos nossos pr�prios ideias, eles exigem. 

E aqui, n�o falo apenas de corpos gordos, mas de corpos dissidentes, de modo geral. De corpos que, somente em desobedi�ncia, tal qual aprendi com o poeta Gonzaga Neto, ainda se mant�m de p�. Inclusive, � ele que no livro “ � na desobedi�ncia que meu corpo se mant�m de p� ” sintetiza a obrigatoriedade do ir contra as regras impostas para sobreviver. 

Exemplos n�o faltam. O escritor  Victor Hugo Felix, no livro “A triste hist�ria do fim do mundo ” nos traz 13 personagens - uma m�e e seus 12 filhos - como os �ltimos sobreviventes de uma distopia, que, diga-se de passagem, � bem parecida com os tempos que atravessamos e para se manterem de p�, ou vivemos, desobedecem, inclusive, a ordem natural das coisas. 

O conceito de desobedi�ncia, no dicion�rio similar a insubordina��o, aqui, � tamb�m o conceito de seguir existindo. E essa exist�ncia, sem subalternidade, � a que segue enlouquecendo as pessoas. 

A lucidez de sabermos o que est� nos acontecendo - e nos ataca por todos os lados, de todas as formas - e, mesmo assim, conseguirmos escapar e criar lugares, f�sicos e imagin�rios, em que podemos existir e n�o s�, mas celebrar essas exist�ncias, causa um desconforto facilmente confundido com loucura em quem tenta, o tempo todo, nos negar. 

O que querem da gente � obedi�ncia e subservi�ncia. Querem que nossos corpos gordes, LGBTQIA%2b, nordestines sejam subalternos e servis. Fetichizados e calados. � beira da morte, do caos, do luto, do desemprego, do autoritarismo e agredecides. Nos querem d�ceis e domesticades. Nos querem servis �s leis, normas e formas injustas. Nos querem embranquecides, calades e prontes para servir. E servindo. Servindo. Servindo. 

O que esperam, dos nossos corpos, � que estejamos em p� para trabalhar. Para alimentar o capital. Que vendamos nosso tempo - e no pacote, nossos sonhos, desejos e brilho nos olhos. Querem comprar isso tudo por um sal�rio m�nimo, que n�o paga aluguel e cesta b�sica. Querem que mendiguemos por tudo: do afeto � comida. 

� preciso ser desobediente para atravessar uma pandemia sob um governo autorit�rio que nos encaminhou, de forma organizada e arquitetada, para a morte - e conseguiu levar 600 mil dos nossos. Inclusive, � preciso ser muito desobediente para conseguir seguir existindo, produzindo, trabalhando e criando, diante do luto.

� preciso desobedecer para seguir indo ao supermercado, abastecendo ve�culos, fazendo pedidos por aplicativos, vivendo em bolhas. � preciso ser desobediente quando levam um pouquinho do nosso corpo a cada coment�rio. A cada olhar de nojo. � preciso ser muito subversive para escrever e criar, como artista independente, no Brasil de 2021. � preciso desobedecer pra existir. 

A arte, mais uma vez, dando conta do indiz�vel ou do que tentamos fugir. Eu sigo incendiando mundos e lembrando,  como num texto antigo, que voc�s odeiam pessoas como eu, gordas . Como diz Gonzaga Neto, sintetize um corpo cansado. E, o que fazemos, quando n�o aguentamos mais, sen�o, desobedecer? 

E, como nos lembra Lorena Otero, o humor e o apontamento de quem nos oprime � uma excelente estrat�gia de exist�ncia num mundo cheio de regras e normais. Ainda, como nos refresca Victor Hugo F�lix, desobedecer, inclusive, ao fim do mundo e seguir habitando-o � um excelente jeito de criar amanh�s. 

Reflito muito sobre isso: como criamos o hoje e projetamos o nosso futuro? 

Seguimos insubordinades. Subvertamos os dispositivos de controle sobre os nossos corpos. Sejamos ent�o corpos violentos e existindo num mundo que tenta nos anular de qualquer forma, a todo custo, com suas dietas insanas, seus preconceitos malditos, suas formas de nos aniquilar. 

Seria medo? Seria estranheza? Seria loucura? Seria pervers�o? Ou seria s� mais um jeito de manter o status quo dos mundinhos intactos, como sempre foram, dentro da normatividade, afinal, obedecer � mais f�cil do que pensar. Obedecer � mais c�modo do que criar alternativas ao fim do mundo.
 
Do que dizer, com humor, das dores e opress�es que nos atravessam. Obedecer n�o d� margem pra arte, pra literatura, pra que a gente possa pensar e trazer outras pessoas conosco. Obedecer faz tudo parecer normal e dentro do que � lido como natural, mas � entediante, insipiente e m�rbido. 

Que possamos, ent�o, desobedecer. Que possamos, com nossos corpos insubordinados, enlouquecer a normatividade, perturbar a ordem das coisas, incendiar universos inteiros de hipocrisia. Que possamos, diante do abismo - e da triste hist�ria do fim do mundo, desafiar a morte com a nossa pr�pria vida.
 
Que possamos existir e nos mantermos em p� - com o direito, claro, de fraquejar e cair, vez ou outra, afinal, desobedecer cansa, mas, que possamos seguir e subverter, sempre, a ordem das coisas, seja com livros, com nossas palavras, com novas narrativas e com ferramentas de exist�ncia t�o tecnol�gicas como a alegria. 

Que n�o possam, nunca mais, disfar�ar ou reduzir as nossas exist�ncias. Que elas se tornem cada vez mais desobedientes, cada vez mais incandescentes, cada vez mais inc�modas - e sendo assim, cada vez mais felizes e celebrativas. 

Confira um pouco mais dos livros citados na mat�ria

Osso de Baleia, de Lorena Otero (Quintal Edi��es)
 
(foto: Reprodu��o)
 
 
At� onde voc� iria para se manter firme na dieta? O que voc� faria com o seu corpo para impressionar algu�m? Voc� se sente livre na sua pele? O novo livro da Quintal Edi��es n�o responde nenhuma dessas perguntas, mas levanta essas e outras diversas discuss�es sobre transtornos alimentares, acessibilidade e os desafios vividos pela pessoa gorda em uma sociedade que considera a apar�ncia f�sica um valor moral.

Osso de Baleia  ï¿½ o livro de estreia de Lorena Otero, jornalista e redatora publicit�ria que viveu os dilemas retratados na colet�nea que re�ne 18 contos. “Minha inten��o com essa obra � mostrar todo o dano que pode ser causado quando a pessoa gorda � desumanizada, tratada apenas como corpo. Somos todos seres integrais, que choram, sofrem e querem ser amados”, define a autora.
 
� na desobedi�ncia que meu corpo ainda se mant�m de p�, de gonzaga neto (anz�is produtora) 
 
(foto: Reprodu��o)
 
 
A s�ntese de um corpo cansado. Essa � a premissa do livro “� na Desobedi�ncia que o Meu Corpo Ainda se Mant�m de P�”, do artista Gonzaga Neto, de 28 anos, morador de Natal (RN). Com 29 textos, 10 fotos e uma v�deo-performance. O volume retrata o momento que estamos a passar como humanidade, mas tamb�m como brasileiros.

'nunca entendo os fuzis
empunhando homens
sedentos pelo fim do turno
ansiosos para que desliguem as m�quinas e as luzes
nunca entendo a incontorn�vel incerteza dos �nibus esvaziados deglutindo homens
agora n�o mais empunhados por fuzis ou cal�ados por botas
manchadas de um l�quido viscoso n�o autorizado pelo governo federal a aparecer neste poema
n�o entendo absolutamente nada de fuzis
de botas
ou de l�quidos n�o autorizados
eu apenas observo as coisas enquanto sou empunhado por algo que n�o consigo
nomear'

Triste Hist�ria do Fim do Mundo, de Victor Hugo F�lix (ed. Penalux) 
 
(foto: Reprodu��o)
 

A complexidade das mais diversas nuances que comp�em a ess�ncia do ser humano representadas no dia a dia de uma fam�lia � espera da morte, mas desobedece o tempo todo. Em “Triste hist�ria do fim do mundo”, Victor Hugo Felix nos convida a uma urgente reflex�o sobre a nossa rela��o com a vida e a morte em um momento cada vez mais solit�rio do mundo.
 
A cada p�gina desta narrativa, encontramos os dramas e as cores da sociedade contempor�nea distribu�dos pelas hist�rias de personagens com perfis completamente distintos que, com as suas particularidades, constituem uma microssociedade que traduz com propriedade os dilemas e quest�es fundamentais dos nossos dias.
 
Enquanto o fim se aproxima, ao longo de 13 cap�tulos, o autor nos conduz com maestria a uma viagem pelos sentimentos e pensamentos de cada personagem. Ao mesmo tempo em que assiste cada qual lidando com os fantasmas dos seus medos, sonhos, perdas, inseguran�as e frustra��es, o leitor inevitavelmente tamb�m passa a se questionar sobre o peso real das perdas que todos sofremos ao longo da vida e encara o fato de que, por sermos todos igualmente mortais, o que nos diferencia enquanto indiv�duos s�o as escolhas que fazemos enquanto h� vida para viver. Pela qualidade do texto e pela profundidade das reflex�es que evoca, “Triste hist�ria do fim do mundo” � leitura obrigat�ria para expandir a compreens�o sobre vida e morte. 

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