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Estado de Minas DIREITO �S F�RIAS

O motorista de Uber j� perguntou o seu peso?

A impossibilidade da divers�o aos corpos gordos


10/11/2021 06:00

Jéssica Balbino na praia
(foto: Arquivo Pessoal)

 
Quantas vezes voc� j� entrou num Uber, pra ir � praia, de f�rias e foi perguntade pelo motorista sobre quantos kg pesa?! Se voc� for magre ou gorde menor, j� sabemos que nenhuma. Mas se ousar ser gorde maior, arrisco a dizer que j� aconteceu. 

Ao menos comigo, foi o que rolou nessa semana. Dias depois da morte da cantora sertaneja Mar�lia Mendon�a - e da forma rid�cula como jornalistas trataram uma carreira brilhante de forma desrespeitosa e grotesca ao se referirem ao corpo da artista, como se esse fosse um fator que determinasse ou regesse o sucesso da mesma. Mas, n�o quero me valer disso aqui. Muita gente j� falou, muito bem, inclusive, sobre o tema. 
 

'Fato �, quando o motorista de Uber se virou e me perguntou quantos kg eu peso, fiquei at�nita e incr�dula'

 
 
Fato �, quando o motorista de Uber se virou e me perguntou quantos kg eu peso, fiquei at�nita e incr�dula. Apesar de ser um corpo gordo a vida toda, isso me deixou desconcertada. Talvez porque eu esteja de f�rias.
 
Talvez porque eu estivesse relaxada. Talvez porque eu estivesse como pessoa f�sica e n�o com meu avatar das redes sociais, dizendo o que quer que seja sobre isso - e, baixar a guarda e s� existir, sem luta, me jogou com toda for�a no movimento da minha exist�ncia pra me lembrar por que eu falo - e escrevo - tanto sobre: pra existir. 
 

'Meu custo � maior: eu preciso pagar com a sa�de mental, a f�sica - que foi exigida logo em sequ�ncia, quando ele disse ter feito uma bari�trica - e em exist�ncia'

 
 
A fala do motorista foi pra me lembrar que eu n�o poderia existir sem que isso fosse apontado, lembrado ou se tornasse uma quest�o. Eu n�o poderia simplesmente embarcar na corrida, descer no meu destino e pagar por isso em dinheiro, como qualquer pessoa. Meu custo � maior: eu preciso pagar com a sa�de mental, a f�sica - que foi exigida logo em sequ�ncia, quando ele disse ter feito uma bari�trica - e em exist�ncia.

Corpos gordos s� existem se taggeados socialmente. Ali, n�o importa absolutamente nada. Quem eu sou, do que eu gosto, meu v�cio em caf�s, o que eu j� vivi, as muitas viagens que adoro fazer, com o que eu trabalho e como amo o jornalismo, os meus sonhos pra vida, meu medo de est�tua e de lagartixa, o nome dos meus animais de estima��o, meus orix�s, meu signo, as leituras de Freud e Lacan que me arrisco a fazer, os livros aleat�rios que leio, a cor de esmalte que eu amo, a rinite que eu tenho, a COVID-19 que eu sobrevivi, as amigas que j� perdi, os amores que j� vivi.

Absolutamente nada disso importa. Importa saber quantos - fucking - kgs a balan�a marca quando eu subo. E qual a relev�ncia disso no final do dia, se eu entrego meus relat�rios, a minha coluna, o meu trabalho. Se os boletos est�o em ordem, se eu sento com minha fam�lia pra fazer uma refei��o, ver uma s�rie, se dou risada com meus amigos de piadas s� nossas, se toda noite caminho com o cachorro, se amo mais nata��o que voc�?! Que diferen�a isso faz de toda minha subjetividade � anulada porque meu corpo � gordo?! 
 

'Meu analista ficaria orgulhoso por ver que meu investimento libidinal est� sendo gasto nesse texto e n�o numa discuss�o infrut�fera com o motorista'


Obviamente, n�o respondi a pergunta e, me fiz de sonsa, pra n�o entrar numa briga logo cedo, no meu primeiro dia de “f�rias”. Meu analista ficaria orgulhoso por ver que meu investimento libidinal est� sendo gasto nesse texto e n�o numa discuss�o infrut�fera com o motorista. 

Mas, pra n�o discutir, h� um custo. Me fazer de sonsa e seguir a vida custa a anula��o - ainda que breve - do que eu acredito e art�culo discursivamente aqui: eu tenho direito e mere�o existir como qualquer outro corpo.

Em sua coluna na �ltima segunda-feira a psicanalista Vera Iaconelli disse: “Se tivesse que elencar a maior mazela humana, diria que � nossa impossibilidade de reconhecer que h� uma vida que vale tanto quanto a nossa encarnada no corpo do outro”. 

N�o s� tendo a concordar, como a endossar. Por que, na minha vida comum, minha exist�ncia n�o � s� invalidada, como dificultada e atravessada em muitos n�veis.

Eu t� de f�rias. Mas sigo trabalhando. No entanto, demorei muitos anos pra perceber que n�o s�o as demandas de trabalho que, necessariamente, me cansam. � existir. E eu j� falei sobre isso nessa coluna. E j� falei tamb�m sobre como � urgente ser desobediente pra seguir vivendo.

No segundo dia de f�rias, recebi uma mensagem de uma colega de trabalho dizendo que uma artista convidada do evento que trabalhamos juntas n�o havia conseguido embarcar pro pais de origem no Aeroporto Internacional de Guarulhos porque ela tem um problema de mobilidade em raz�o de uma doen�a que afeta as pernas (e tem zero a ver com a quest�o do peso) e n�o havia, no maior aeroporto da Am�rica Latina, uma cadeira de rodas grande o suficiente para transport�-la do check-in ao port�o de embarque. 

Tive uma vontade imensa de chorar. �s vezes, a impot�ncia e a for�a social de todos lugares e pessoas pra que nos sintamos mal com nossos corpos � t�o grande, que d� certo! A gente acaba se sentindo mal e respons�vel pelos maus tratos que sofremos. 

Ouvir esse relato da minha amiga me fez lembrar que no avi�o, me fizeram mudar de lugar, mesmo eu tendo pago um assento maior, porque “segundo a Anac, pessoas gordas n�o podem se sentar na sa�da de emerg�ncia”, no entanto, n�o h�, em lugar algum, essa informa��o especificada.
 
Inclusive, comiss�rios tendem a ter um cuidado exacerbado com pessoas gordas - eu mesma, no caso - como se eu fosse incapaz, mas, estando ali, s� sou gorda, com a mesma mobilidade de sempre, carregando minhas coisinhas, resolvendo meus BOs, enfim, voando a trabalho e, dessa vez, de f�rias. 
 

'O tempo todo, h� um berro ensurdecedor � indivis�vel, que nos lembra sobre como nossos corpos gordos s�o inadequados'

 
O tempo todo, h� um berro ensurdecedor � indivis�vel, que nos lembra sobre como nossos corpos gordos s�o inadequados. � isso fica mais evidente quando s� estamos fazendo coisas cotidianas, como pegar um voo, um Uber, um �nibus ou estamos na praia. 

Ali�s, hoje, no terceiro dia de f�rias, estava eu, bem plena e feliz, desconcertada, deitada numa esteira de madeira, � beira mar, quando, um pai com duas crian�as e uma mo�a estavam por ali tamb�m. Uma das crian�as, que n�o devia ter mais que 5 ou 6 anos, se virou pra mim e disse: olha, papai, como aquela mo�a � gorda. Olha s� o tamanh�o da barriga dela. 

E, da minha parte, tudo bem. Crian�as se admiram e comentam. Mas eu fiquei pensando em: onde ele ouviu sobre pessoas gordas pra reparar de forma negativa? Quem fala sobre isso com ele? Por que ele n�o consegue achar natural? Na vida dele, s� existem pessoas magras? E, mais uma vez, l� ela estava. Quem? Ela mesma, a inadequa��o. 

O pai - pasmem - chamou o menino pra perto e falou bem baixinho com ele, dizendo que n�o � algo legal reparar no corpo das pessoas, que as pessoas t�m direito de ser quem s�o, com os corpos que tem e tudo bem com isso. 

Fiquei chocada. N�o esperava que ele tivesse uma rea��o t�o bacana. E aliviada, um pouco, por saber que ele teve! 

No entanto, isso me leva a pensar sobre a naturaliza��o dos corpos. A Tha�s Carla (dan�arina, empres�ria e gorda) sempre diz que quer educar o olhar das pessoas para a exist�ncia dos corpos gordos e isso nunca fez tanto sentido. 

� perverso pensar que a maior parte da popula��o brasileira � gorda, no entanto, que sequer a outra parte est� acostumada a ver e conviver com estas pessoa, seja na praia, de f�rias, em aeroportos, em cima do palco fazendo sucesso. 

Todo exerc�cio de exist�ncia est�, portanto, em seguir, teimar, desobedecer, abusar da resili�ncia, do papel de sonsa, das horas no div�, dos amigues, da vontade de viver - e neste caso, sobretudo, de gozar as f�rias. Em paz, j� seria um cap�tulo separado. Aparentemente, nem a morte precoce permite isso. Ent�o, sigo escrevendo, como forma de luta, pra que alguns de n�s consigam, em algum momento, em vida. 

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