
A not�cia
Quatro passageiros morrem em cruzeiro Zaandam
, ancorado na costa do Panam�, publicada em 23 de mar�o de 2020 neste jornal foi o disparador de uma pesquisa da jornalista e escritora Vanessa Ratton, que resultou na publica��o do livro “Encontros � Hora Morta”, em parceria com a premiada escritora Maria Val�ria Rezende.
A obra, lan�ada neste m�s e que ser� apresentada numa live no dia 31 - viva o Halloween ou Dia do Saci ou Dia das Bruxas, como preferirem - com a presen�a das editoras num bate-papo com Ricardo Dalai na editora Florerar Livros, tem 196 p�ginas em que investiga e entrega, em forma de contos, lendas urbanas da cidades de Santos e apresenta aos leitores - indicados a partir dos 14 anos - fantasmas destas mulheres que foram assassinadas ou violentadas pela moral social e pol�tica da �poca dos crimes.
De acordo com Vanessa Ratton, ela leu a not�cia sobre o navio que estava em alto mar, com passageiros infectados por Covid-19 e que diversos portos da Am�rica do Sul recusaram que o mesmo atracasse, justamente por causa da pandemia, que ainda estava no in�cio. Da�, veio a necessidade de escrever sobre a situa��o, o que originou mais pesquisas sobre portos e terminou desembocando nas mem�rias de tantas mulheres mortas.
“Escrevendo eu percebi que havia um entrela�amento invis�vel entre as hist�rias dos crimes, lendas urbanas e mist�rios, a viol�ncia contra a mulher era a liga��o do sobrenatural com a hist�ria real que acontece no livro”, contou.
'por que a maior parte das lendas urbanas da cidade portu�ria s�o protagonizadas por mulheres e, por que todas elas foram mortas de formas violentas em raz�o da viol�ncia de g�nero'
Assim, as fantasmas que aparecem para a protagonista do livro e encontram o personagem que chega ao Brasil ap�s vagar, com Covid-19, em alto mar, num navio sem conseguir atracar, d�o o contorno a uma hist�ria ainda mais macabra do que a que a fic��o d� conta: a que n�o permite que mulheres existam sendo quem s�o, em seus corpos.
O grande questionamento que surge da� �: por que a maior parte das lendas urbanas da cidade portu�ria s�o protagonizadas por mulheres e, por que todas elas foram mortas de formas violentas em raz�o da viol�ncia de g�nero.
Aqui, volto a um debate que j� me persegue h� algum tempo: nosso fetiche quase obsessivo pela viol�ncia contra os corpos das mulheres.
Escrevi sobre isso na coluna de estreia
e tal afirma��o se mostra cada dia mais evidente. Temos prazer nas hist�rias em que nossos corpos s�o violados, decepados, fatiados, estuprados, silenciados e, se poss�vel, apagados. Temos fasc�nio pelas fantasmas que nos tornamos e passamos a habitar estes imagin�rios, onde o �nico corpo feminino poss�vel � et�reo. E n�o existe.
Os encontros com estas mulheres, assim como os propostos pelas autoras no livro, ocorreriam apenas � hora morta, por volta das 3h da madrugada, quando, como j� relatei aqui, corpos como o meu,
estridentes demais para serem vistos - e tamb�m para sair pelos fundos
, ou em hor�rios mortos, que � quando ningu�m mais al�m de quem tem o prazer secreto com ele pode v�-lo e/ou ser visto neste del�rio de acompanhamento do corpo proibido.
O livros das autoras traz ainda as hist�rias de horror do Navio Raul Soares, um lugar de tortura durante o regime militar brasileiro no Porto de Santos. A obra, que brinca com o realismo m�gico e fatos hist�ricos, � dedicada a Patr�cia Galv�o, conhecida como Pagu, a primeira mulher presa pol�tica na era Vargas.
Mas, n�o � s� este o cen�rio. Santos � o cen�rio dos contos, que conduzem o leitor a locais como a Santa Casa de Miseric�rdia, Paquet� e o Teatro Br�s Cubas, al�m de trazer lendas mais contempor�neas e nacionais, como a da inesquec�vel Loira de Banheiro.
'nossos corpos est�o sempre vulner�veis nas ruas, na vida, nas horas mortas e nas que nos querem fantasmag�ricas, transparentes, vagando e assombrando outras vidas, numa tentativa quase insana de fazer parte de um mundo do qual se � expulsa o tempo todo'
Sejam representatividades pol�ticas ou lendas que acompanham gera��es - e metem medo (eu, por exemplo, at� hoje sonho com a Loira do Banheiro, mas isso � assunto pra outra coluna), nossos corpos est�o sempre vulner�veis nas ruas, na vida, nas horas mortas e nas que nos querem fantasmag�ricas, transparentes, vagando e assombrando outras vidas, numa tentativa quase insana de fazer parte de um mundo do qual se � expulsa o tempo todo.
Por aqui, as hist�rias de horror s�o parte do cotidiano. Ser mulher � viver em estado permanente de vig�lia, medo, tens�o. E, quanto mais opress�es acumulamos em nossos corpos, mais dif�cil � permanecer viva. Pode parecer que digo coisas violentas, inclusive, mas, pensemos no caso da apresentadora Lu�sa Mell, que
ao despertar de um procedimento est�tico descobriu que havia sido operada sem consentimento, apenas com autoriza��o do marido.
Pensemos na cria��o de dispositivos que tentam nos fazer desaparecer, nas baladas que n�o aceitam nossos corpos, da felicidade imposs�vel �s mulheres gordas, da viol�ncias �s mulheres LGBTQIA%2b, pretas, m�es, nordestinas. O horror cerca tudo que nos perpassa. Quantas e quantas vezes somos obrigadas a nos bestializar para sobreviver, afinal, s� o horror tamb�m permite que passemos despercebidas. Se formos fantasmag�ricas, monstruosas ou grandes demais, somos invis�veis ou repugnantes o suficiente para que fiquemos, de algum modo, blindadas da viol�ncia.
Ser mulher � uma linha de vai-e-v�m na esteira da desumaniza��o. Quanto menos parecida com uma mulher, melhor � uma mulher. Controverso, mas real.
O livro “Encontros � Hora Morta” n�o � o �nico que me faz pensar nisso. O “O corpo dela e outras farras”, da Carmem Maria Machado me faz refletir sobre a espetaculariza��o da viol�ncia sobre os corpos de mulheres - que s�o o play para todos os contos - � o principal questionamento inerente � obra da autora que tem origens cubanas e vive no EUA, diz de estupros em s�rie, mulheres que ouvem vozes, escritoras casadas com outras mulheres e a terr�vel
obsess�o pelo sil�ncio feminino, j� tratada, inclusive, nesta coluna.
Ela questiona, inclusive, uma franquia da s�rie Law & Order que trata, exclusivamente, de viol�ncia sexual contra mulheres e que esta � - sem surpresas - a que mais possui audi�ncia e epis�dios. Isso fez a autora - e esta colunista que vos escreve - refletir sobre como n�o basta nosso sofrimento em si, criar narrativas que explorem isso de formas palat�veis e excitantes s�o pr�ticas t�o arraigadas que sequer percebemos.
Eu n�o consigo assistir “The Handsmaid´s Tale”, embora goste dos livros, justamente porque a viol�ncia � absurda e em n�veis t�o crus quanto a realidade na esquina de casa. Assim como a espetaculariza��o da pobreza, da escravid�o, de dores que latejam quando s�o tocadas.
Mas, voltando ao ponto observado pela Carmem Maria Machado. O que h� por tr�s disso e como podemos lidar? Desconfio que, com o realismo m�gico - o terror, o Black Mirror feminista, o ins�lito torna-se o lugar comum mais ‘confort�vel’ para que narremos casos como o da Maria F�a Mercedes, famosa pelo “Crime da Mala” no Porto de Santos e
recontado ano passado, com outra protagonista, no bairro Cana�, em Belo Horizonte
.
Seguimos vulner�veis nas nossas vidas ins�litas, cujo funcionamento ‘natural’ das coisas est� com a respira��o suspensa cada vez que vivemos e celebramos isso - sobretudo nos nossos corpos que podem ser mais compar�veis a parques de divers�es do a que templos, como gosto de pensar - de forma a horrorizar quem est� no nosso entorno. Existir provoca nossa morte.
Deste modo, o macabro se torna talvez a �nica alternativa poss�vel para a narrativa de horror aos nossos corpos, cujo destino, na melhor das hip�teses, � vagar por a� contando hist�rias do dia em que fomos vivas - e lutamos contra ditadores. Ou contra homens que nos queriam eterna - e mortas.