
Eu sou bonita, mas estou fora do padr�o. E isso me faz estar exausta. Sim. Eu comecei a coluna fazendo uma alus�o ao texto Eu sou bonita, mas estou cansada, da Tati Bernardi, hit absoluto da escritora publicado h� quase um ano. � �poca, ensaiei uma resposta no melhor estilo ‘diss’ para ela, que � uma profissional que eu sigo o trabalho nas mais diferentes plataformas e adoro, mas que, com esse texto, s� evidenciou a minha exaust�o.
Talvez eu tenha demorado tanto a responder, inclusive, porque estou exausta. Eu sou bonita, mas sou gorda. E isso me deixa cansada. N�o s� dos meus v�rios trabalhos e da remunera��o que nunca � suficiente; da pandemia; do governo genocida que temos. Disso, estamos todos saturados.
Quero aqui, trocar uma ideia sobre esse cansa�o. E veja bem, eu n�o estou falando sobre as pessoas que convivem com voc�: eu estou falando com voc�.
Eu t� exausta de ver, num pa�s onde 84,9 milh�es de pessoas - segundo dados da Pesquisa de Or�amentos Familiares (POF) divulgada em agosto deste ano pelo IBGE - convivem com fome ou algum grau de inseguran�a alimentar e fazem fila para se digladiarem por comida em torno de caminh�es de coleta de lixo, as pessoas magras chamando comidas com caloria de lixo e debochando de quem come doces ou carboidratos, chamando de ‘gordice’. Eu t� exausta da desigualdade que voc� celebra diariamente ao relativizar que as pessoas n�o t�m o que comer.
Mas, voltando ao texto do cansa�o da Tati, ela afirma: “N�o me sobra tempo ou saco pra fazer exerc�cio. E eu respeito se voc� acha que um corpo pode ser bonito com qualquer forma. E eu admiro se voc� milita a favor desse corpo que n�o queima calorias. Mas eu estou com medo de a camada de adiposidade do meu abd�men me causar problemas no cora��o. Porque n�o se cuidar � um veneno, e eu bebo dele todos os dias da minha vida sobrecarregada”.
"Eu t� exausta de ver, num pa�s onde 84,9 milh�es de pessoas convivem com fome ou algum grau de inseguran�a alimentar e fazem fila para se digladiarem por comida em torno de caminh�es de coleta de lixo, as pessoas magras chamando comidas com caloria de lixo e debochando de quem come doces ou carboidratos"
Ora, sabe o que me cansa, Tati? Posturas como a sua. Fazer exerc�cio n�o � atividade inerente apenas �s pessoas magras. E n�o, Tati, voc� n�o respeita quem acha que um corpo pode ser bonito com qualquer forma. Respeitasse, n�o teria destacado um par�grafo inteiro para falar disso. Voc� n�o admira quem � a favor desse corpo gordo que sim, queima calorias. Voc� n�o s� n�o admira, como queima n�o s� as calorias, mas o corpo inteiro na sua fogueira de meias verdades e achismos.
Sabe, Tati, eu acredito que voc� deva estar cansada. E estar cansada te transformou num ser humano p�ssimo ao escrever o texto. T�o horr�vel a ponto de relacionar gordura no abd�men com luta antigordofobia promovida pelas pessoas como eu, que s� querem existir. Entendo que foi seu jeito �nico, sofisticado e intelig�vel de dizer que pessoas gordas que se amam ‘romantizam a gordura corporal’.
Voc� est� cansada, Tati. Eu reconhe�o. E, estando cansada, voc� encontrou um jeito para externar sua gordofobia, oprimir outras mulheres e chamar isso de sororidade, de identifica��o, de sobrecarga. E todas minhas amigas, que comentam ‘maravilhosa’ nas minhas fotos, concordaram com voc�, Tati.
N�o satisfeita, Tati, voc� disse que a gordura pode causar problemas no cora��o e que n�o se cuidar � um veneno. Sabe o que mais envenena, Tati? A gordofobia. A limita��o da minha exist�ncia e de corpos como o meu, que voc� aponta como desleixo no seu texto. Sabe o que mata? Essas posturas, que parecem sutis, vem ali, no meio da fala, do texto, do cotidiano, mas dilaceram, porque reafirmam, num luminoso que paira sobre a cabe�a das pessoas padr�o que oprimem que est� fora da norma: VOC� N�O MERECE EXISTIR!
"E n�o aguento mais precisar apagar inc�ndios enquanto nossos corpos seguem sendo queimados por nossas %u2018pares'"
Eu n�o t� cansada, Tati. Eu t� exausta. Eu j� falei, nesse texto, que estou absolutamente exaurida? E eu n�o quero um tempo pra mim, sabe? Eu s� quero existir sem o fogo amigo que voc�s - mulheres magras - ateiam sobre o meu corpo gordo diariamente.
Sabe o que me cansa, Tati. � que seu texto alimenta narrativas como a da minha amiga de faculdade, que, ao ver uma foto tirada em 2006 numa viagem de formatura para Porto Seguro, comenta: “Tirando o corpinho que tava zerada a barriga, n�o aproveita nada. se bem que depois que fiquei doente t� com o mesmo peso”.
Seria s� uma fala boba se esta amiga n�o estivesse se recuperando de um c�ncer e de muitas sess�es de quimioterapia e radioterapia. E sim, ela celebrou o fato de em 2021, depois do c�ncer, estar com a barriga zerada como na foto feita h� quase 15 anos.
Seria impens�vel, se eu n�o tivesse feito uma cena e abandonado o grupo, em que eu sei que as pessoas, inclusive esta amiga, me amam, mas n�o me respeitam. E, como existir num mundo onde sua exist�ncia � colocada � prova a todo instante. Onde a �nica possibilidade de exist�ncia � com a barriga zerada, mesmo depois de um c�ncer?

E n�o aguento mais precisar apagar inc�ndios enquanto nossos corpos seguem sendo queimados por nossas ‘pares’. E n�o, eu n�o quero conversar sobre isso. Eu quero que voc� leia o que escrevo, que ou�a o que eu digo e que se pergunte, antes de se defender: ser� que estou sendo gordof�bica?
E a resposta, invariavelmente, ser� sim. Est�. Est� sim.
Dizer: n�o foi por mal ou n�o tive a inten��o, n�o atenua, em nada, o sentimento de inadequa��o que se abate sobre as pessoas gordas. E � esse sentimento, que escancara a forma como as opress�es cansam, que torna tudo t�o insuport�vel.
Hoje chorei no tr�nsito, enquanto ia para o pod�logo. Dia desses, tive uma crise de choro no banho. E, h� menos de uma semana, chorei depois de uma entrevista. Me sinto vulneravelmente exausta. E, apesar de bonita, tenho medo dessa exaust�o.
E a exaust�o da mulher gorda n�o � sobre trabalhar, ser m�e, dormir sem tomar banho, correr para ir ao supermercado, pagar conta, esquecer de fazer depila��o, limpeza de pele, etc. � para existir.
"E a exaust�o da mulher gorda n�o � sobre trabalhar, ser m�e, dormir sem tomar banho, correr para ir ao supermercado, pagar conta, esquecer de fazer depila��o, limpeza de pele, etc. � para existir"
Meu cotidiano est� dividido entre existir e lutar contra a raiva que me pede para p�r fogo em tudo - coisas, pessoas, estabelecimentos, leis, pol�ticos, mundo - que dizem que eu n�o posso existir como sou.
Eu sou linda, mas existir n�o � pra mim. E nem pro meu corpo. Pessoas gordas, bonitas e exaustas n�o s�o pessoas. S�o camadas de adiposidade abdominal que voc�, Tati, quer se livrar.
Meus amigos dizem ter saudade de quando eu era mais ‘leve’, brincalhona e divertida. Mas o problema � que eu estou exausta. Exausta deles concordando com o par�grafo merda do texto merda que Tati escreveu - eu canalizei toda minha raiva pra ele, porque, confesso, esperava mais empatia de algu�m t�o interessante. Exausta deles segurando as barrigas imagin�rias e dizendo que v�o queimar bacon na academia. E eu n�o consigo mais rir junto. As piadas dos meus amigos amea�am a minha exist�ncia.
� a dor da impossibilidade de exist�ncia que me deixa exausta.
Exausto, inclusive, deve estar o meu analista que houve, semanalmente, por horas, dizer que estou cansada. Que n�o aguento mais n�o aguentar mais. E � verdade. Existir num mundo que me diz, o tempo todo, de todas as formas poss�veis, que eu n�o mere�o estar aqui, sendo quem eu sou, � n�o s� cansativo, como desesperador em boa parte do tempo.
O que fazer num tempo-espa�o-imagin�rio em que n�o caibo e n�o sou bem vista/vinda?
Embora este pare�a um texto bastante pessoal - e � - � tamb�m de uma dor coletiva. Como n�o estar exausta quando o �udio veiculado em todo pa�s na ter�a-feira (19) mostra uma suposta recrutadora de RH de uma rede de farm�cias dizendo para que , na hora da contrata��o de novos colaboradores, “cuidem das apar�ncias, feio e bonito � o mesmo pre�o, ent�o vamos contratar pessoas bonitas”, ap�s elencar que n�o se deve empregar pessoas gordas, tatuadas e LGBTQIA%2b.
“Pessoas muito tatuadas a empresa n�o gosta, piercing na l�ngua, no nariz, na testa, enfim. N�o pode, a gente lida com sa�de”, diz a recrutadora. Ela ainda pede cuidado com pessoas “muito gordas”.
"Como eu j� disse nesta coluna, a aplicabilidade de leis que nos protejam da gordofobia � algo positivo, mas respeito pela nossa exist�ncia, seria melhor"
O discurso homof�bico tamb�m est� presente no �udio: “Se pegar algu�m, com todo respeito, 'viado', tem que ser uma pessoa alinhada, que n�o ‘desmunheque’”. Ela conclui a mensagem refor�ando para que “cuidem as apar�ncias” na hora das contrata��es.
Conforme o advogado Tadeu Rodrigues, exig�ncias ligadas a apar�ncia como as feitas pela recrutadora que dizem respeito a orienta��o sexual, identidade, corpo, etc, podem ser criminilizadas por discrimina��o, sobretudo pela manifesta��o LGBIQIA f�bica.
“A manifesta��o contra pessoas pertencentes � sigla LGBTQIA e a isso pode vir, no futuro, se estender a todos preconceitos”, explicou.
A rede de farm�cias alega que o �udio � falso e que vai investigar.
Como eu j� disse nesta coluna, a aplicabilidade de leis que nos protejam da gordofobia � algo positivo, mas respeito pela nossa exist�ncia, seria melhor, j� que, falso ou n�o o �udio, a n�o contrata��o de pessoas gordas � uma realidade. Tamb�m hoje, depois de chorar no tr�nsito e antes de ouvir esse �udio, recebi uma mensagem de uma seguidora me pedindo para falar sobre a falta de mercado de trabalho para pessoas gordas, que n�o s�o contratadas por causa da apar�ncia.
Como existir sem a dignidade do direito ao trabalho?
E a�, eu digo: como � insano ser bonita, trabalhar 12h por dia, escrever colunas, dar aulas, estudar psican�lise, ter amigues, tentar ter algum relacionamento afetivo, produzir conte�do, ser podcaster, mas estar exausta e n�o � de nada disso, mas � da batalha por nada disso - ah�, temos uma contradi��o aqui - ser suficiente. Eu t� exausta de ser bonita, mas ter que brigar pra existir sendo, tamb�m, gorda.