
Ja perdi as contas de quantas eu ouvi: “ah! como eu queria ter a sua coragem”. E essa frase sempre me incomodou, porque eu fiquei pensando: coragem do qu�, gente?
Eu tenho medo de est�tua, de lagartixa, de escuro. N�o salto de paraglider, n�o mergulho. Tenho p-a-v-o-r de bichos pe�onhentos.
Coragem, definitivamente, n�o � meu forte. Mas, os avisos, disfar�ados de elogios, chegam. “Voc� � t�o corajosa, queria ser como voc�”.
Demorei muito tempo pra entender de qual coragem falavam. E, quando entendi, fiquei profundamente triste.
Quando dizem isso ao me ver de cropped, short curto, biqu�ni, no fundo, querem dizer: admiro sua coragem de, gorda assim, usar esse tipo de roupa. E, dizem, na verdade, na capacidade de n�o me importar ou de suportar o que v�o dizer. Mas, esquecem que passa, inclusive, por esse lugar de falsa admira��o.
O que me est�o me dizendo n�o tem a ver com ousadia, mas com o fato de que eu sigo existindo, no meu corpo, apesar do tamanho dele, ent�o, essa frase n�o me chega como um elogio. Nunca. Mas como uma viol�ncia.
Ela imp�e, automaticamente, que eu seja forte. Que eu enfrente. Que eu desafie a l�gica. Que eu seja “especial” por n�o me constranger de ser quem eu sou e s� existir.
E, Deus me livre de querer essa for�a. Eu quero poder fracassar - falei sobre isso nessa coluna, inclusive.
Toda vez que algu�m aponta minha “coragem”, sobretudo por eu me sentir bem no meu coro, est� marcando um lugar dizendo que eu n�o deveria. � sempre uma tentativa, ainda que sofisticada, de constranger minha exist�ncia. De me lembrar que eu n�o sou magra o suficiente pra existir, mas que essa pessoa que enuncia admira meu esfor�o em teimar e, ainda sim, estar aqui, existindo.
Essa coragem, da qual dizem, � quase um pr�mio de consola��o, mas um lembrete do meu n�o pertencimento. Ela diz, nas entrelinhas: voc� at� se esfor�a, mas jamais ser� como n�s.
Me recuso, ent�o, a ser essa “pessoa corajosa”. Eu n�o quero ter que enfrentar nada. Eu j� disse e repito: eu s� quero existir. E, me marcar como corajosa � s� mais uma tentativa de anula��o.
Posar de lingerie na timeline n�o requer coragem, requer autoconhecimento e sensualidade. Chamar de coragem anula o trabalho que h� ali e convoca a uma posi��o de afronte que, n�o necessariamente, existe.
A coragem sup�e enfrentamento e eu n�o quero estar em batalha, ainda que poder existir no meu corpo seja estar sempre em disputa.
Que esta, narrativa, n�o seja batalha ganha!
Quando algu�m se posta diante da minha imaginaria “coragem” e me assiste tentar existir, h� uma passividade de quem se posta diante de uma jaula no zool�gico e assiste a uma foca fazer malabarismos.
� t�o passivo que parece que, pra justificar a pr�pria covardia diante da vida voc�s precisem dizer que temos coragem.
Paul Preciado, no texto “A coragem de ser voc� mesmo” refor�a isso:
“Quando voc�s v�o se cansar de nos tratar como alteridade para se tornar voc�s mesmos?”
Cad� vossa coragem? Eu perguntaria.
� mais c�modo dizer que sou corajosa - porque uso cropped, posto nudes, vivo minha sexualidade, n�o me furto �s experi�ncias da vida, escrevo a partir da autofic��o de quem sou - e me exponho mesmo. Defendo pautas sobre diversidade e caminho ao lado de quem, assim como eu, est� mais interessado em amar e botar os corpos pra jogo no que em toda essa regula��o - do que reconhecer que esse � meu lifestyle. N�o requer coragem pra viv�-lo, mas requer estar em paz com o fracasso. Estar em paz com a expectativa de agradar o status quo. Essa � a minha vida e eu vivo com desejo, matando a culpa diariamente. Vivo com alegria.
E n�o teria como voc�s saberem disso, j� que passam seu tempo odiando e/ou tentando justificar a suposta coragem que voc�s n�o tem - mas pensam que tenho.
N�o � sobre enfrentamento, mas sobre aceitar os riscos e fazer valer. � sobre a vida que se quer ter. E a minha inclui uma grande dose de fracasso e alegria.
Talvez seja mais f�cil chamar-me de corajosa a encarar que eu n�o tento mais caber: em roupas, espa�os, expectativas. Eu n�o me esfor�o pra ser como voc�s ou ter uma vida de mentira, parecida com a de voc�s. Eu criei meu mundo, minha vida. Convidei todos meus dem�nios pra entrar e servi-lhes um caf� fresco. Fizemos uma grande festa e isso n�o pediu coragem, mas desejo. Criei uma vida da qual, quem quer ser como eu - corajosa - n�o faz parte, porque essa vida nasce justamente do fracasso.
Meu fracasso � o seu pior pesadelo. Ele amea�a as fr�geis estruturas de um mundo distintivo, onde eu faria de tudo pra entrar e, sem conseguir, teria coragem pra enfrentar. Mas n�o, eu s� existo em outro mundo, com voc� do lado de fora dele.
A voc�s, desejo ent�o a coragem que enxergam. Usem-na pra malhar diariamente, pra fazer dietas insanas, pra perseguirem o que entendem como “corpo perfeito”, pra alcan�arem os d�gitos “ideais” na balan�a. Pra evitarem o fracasso. Pra amarem de forma reta, monog�mica e heterossexualizada. Pra julgarem ra�a. Pra empurrarem o �nico brigadeiro pro lado. Pra resistirem � alegria do segundo peda�o de pizza. Pra tentarem ser felizes � sua maneira.
Desejo-lhes a coragem de enxergam em mim pra viverem em seus corpos fabricados e sem prazer.
E a quem caminha comigo, que abra�a o fracasso, desejo-lhes a aus�ncia de coragem, o t�dio diante da normatividade, a falta de vontade de lutar guerras que n�o s�o nossas. Desejo que seus corpos existam no mundo - seja esse universo qual for - e que a sensualidade seja a arma quente dos dias em que seja poss�vel celebrar quem somos: fr�geis, fracos, desejosos, com fome de vida, de mundo e capazes de revolucionar nossas exist�ncias bem distante da mediocridade que encaixota os sonhos.
Desejo-lhes a liberdade de desejar e criar. Desejo-lhes todas as experi�ncias de afeto e revolu��o poss�veis nesses corpos.