
N�o � segredo para ningu�m que me l� nessa coluna que meu psicanalista morreu e eu estou enfrentando um luto brabo. Tanto � que ainda n�o consegui voltar a falar sobre corpo - ou gordofobia - como fazia aqui nesta coluna, muito embora, seja o luto, um atravessamento extremamente corporal, cuja dor extrapola o que sentimos de forma et�rea e se projeta no corpo. A puls�o pode ser sentida em cada cent�metro muito do corpo tanto: falta o ar, a press�o cai, a crise vem. D�i de formas inimagin�veis.
Sendo assim, minha necessidade � falar desta dor, que me corta o corpo, o imagin�rio e se projeta no real - mais real do que nunca: o pior que poderia me acontecer, aconteceu. Est� acontecendo e eu recorro a lutos “j� superados”, a tudo que posso para tentar entender como atravessar essa fase. E tudo me parece in�til.
O luto me transformou numa pessoa (ainda mais) pat�tica.
Eu j� recorri a um pouco de tudo: novos analistas, antigos analistas, grupo de vi�vas do div� no WhatsApp, escrita, sonhos on�ricos, umbanda, reiki, massagem terap�utica, acupuntura, dirigir horas na estrada sem rumo, cozinhar, m�sica, derivados da cannabis, porre, ofur�, festa, pega��o, evento liter�rio, leitura sobre luto, redes sociais, folga das redes sociais, campanha pol�tica, curso � dist�ncia, podcast: nada disso funciona. Onde quer que eu v�, a dor segue comigo, grudada no meu corpo.
Acordo na madrugada e meu pensamento �: como seguir existindo num mundo onde uma pessoa absolutamente incr�vel � s� uma mem�ria?!
E esse pensamento me persegue nas fileiras do supermercado, na quitanda, no a�ougue - onde eu ia pra paquerar e agora, tudo perdeu o sentido - enquanto dirijo, enquanto passeio com os pets, enquanto lavo a lou�a. Esse pensamento t� ali: como continuar?
Como eu posso continuar diante de tamanha aus�ncia. Ali�s, quanto pesa essa aus�ncia?
E a�, d�-lhe o tanto que me torno pat�tica. Escrevo estas colunas sobre isso, busco textos psicanal�ticos ou n�o sobre o tema, desabafo com amigos, fa�o sil�ncio, choro todos os dias enquanto fa�o as mais corriqueiras atividades, sou repetitiva pra caramba e me agarro ao luto como quem se agarra a um bote salva-vidas: se eu solt�-lo, pode ser que eu perca, pra sempre, o objeto que o provoca e tal objeto � uma pessoa sensacional. Como solt�-la?
Nesse paradoxo, me tornei a pessoa que busca sinais em quartos de crian�a e realmente acredita que h�, por a�, um fantasma al�m do meu pr�prio, que preciso atravessar. Enquanto dou risada do qu�o pat�tica sou: por que algu�m que j� morreu iria querer se comunicar justamente comigo?
A pessoa poderia mandar um recado pro Lula, pra pr�pria fam�lia, pra Rihanna que t� a�, gravid�ssima, pra Anitta, nossa diva pop que alcan�ou o Top 1 mundial, sei l�. Definitivamente, por que raios algu�m que n�o est� mais no mesmo plano que eu iria querer falar comigo?
Ainda sim, vejo um p�ster do Batman na parede - natural, afinal, a franquia acaba de lan�ar um filme novo - e penso: � um sinal. Recebo um telefonema de algu�m famoso em quest�o de minutos e penso: outro sinal. Ligo um porn� (me julguem) antes de dormir e t� l�, a garota do filme, vestindo uma fantasia do Batman. �, literalmente, uma fantasia sexual. Dou risada e penso na minha m� sorte ou no quanto o roteirista imagin�rio da minha vida � divertido - e um tanto s�dico, vale dizer.
Durmo e sonho com m�sicas do Cazuza do Leo Jaime e procuro, desesperadamente nas letras, algo que fa�a sentido e que possam se encaixar no meu dia a dia. Leio a coluna da Tati Bernardi e penso em como estamos cada dia mais parecidas, embora em universos totalmente apartados. Dou risada e sigo. Pe�o um caf� e gargalho sozinha: me entregam numa x�cara cujas cores s�o as mesmas da bandeira trans: outra pauta em comum.
Entro numa loja e compro chaveiros do Batman num impulso. Mais de um. N�o sei o que fazer com eles, mas compro um tanto. O luto tem dessas irracionalidades. Volto pra onde estou hospedada, um gato cor de laranja sobre no cap� do carro enquanto eu ainda estou dentro dele. Acho que � algum sinal.
Entro no quarto - de crian�a - em que estou hospedada e reparo num boneco do Darth Vader sobre a c�moda. Dou risada sozinha e penso: eu me tornei uma personagem de sitcom, vivendo minha dram�dia particular, buscando sinais em brinquedos infantis. Pa-t�-ti-ca.
Me pego pensando em como eu anseio desesperadamente por algo que d� algum sentido a essa aus�ncia que ocupa tanto espa�o, a esse luto que � totalmente descabido, a estes sonhos que ficaram t�o meus.
Almo�o e algu�m arrisca fazer meu mapa astral. A pessoa, sem saber de nada disso, joga na minha cara: voc� n�o acredita nos sinais, n�? Eu penso: como � que ela sabe? E tendo a acreditar que este tamb�m � um sinal.
Mas a�, lembro que n�o acredito em mapa astral, nem em sinais. A psican�lise acabou com um tanto do meu romantismo na vida. Ou�o Anavit�ria cantar “D� um rol�” e penso que a vida pode ser mais f�cil se seu seguir sendo ‘amor da cabe�a aos p�s’, a despeito de como o mundo tem sido um lugar dif�cil nos �ltimos anos e, ainda sim, encontro cada vez menos sentido nos meus livros na estante e cada vez mais nos encontros, afinal, quando o luto chega, � tudo que nos resta.
Ou�o um podcast sobre luto. Esque�o que meu analista morreu e penso em compartilhar com ele, clico em ‘encaminhar a mensagem’ e lembro. Essas pequenas lembran�as me congelam. Me fazem chorar de novo. Tem dias que mal d� tempo de chorar, mas enxugo ali rapidinho as l�grimas e continuo, entre um texto e um evento, derramo o que � poss�vel, troco mensagens e, pateticamente, posto frases e excertos de livros que acho que dizem algo sobre o luto, o amor psicanal�tico do qual Lacan falava e emanam mensagens que me fazem permanecer agarrada a qualquer coisa que me mostre que, de algum jeito, ainda vale a pena seguir aqui, embora, intimamente, eu lute pra acreditar nisso - com todas as minhas for�as - e duvide que realmente haja, afinal, � t�o, t�o, t�o injusto que ler coisas como ‘a vida continua’ e seguir me faz querer berrar a plenos pulm�es enquanto arranho o asfalto quente com a unha: continua pra quem?
Jamais entenderei o por qu� e isso me dilacera. Ali�s, tudo me dilacera. H� pouco mais de um m�s sou apenas um amontoado do que sobrou. Um Frankstein montado como um caleidosc�pio em que faltam pe�as. T� faltando um tanto delas e, mais recentemente, uma imensa e que me fazia encontrar um sentido qualquer pra essa bagun�a toda - e pat�tica que sou.
Dirijo muitos quil�metros com a minha playlist exclusiva de luto - sim, eu fiz uma - e choro o quanto consigo, sozinha. N�o sei se fico aliviada, mas, de algum jeito, sinto que t� chegando ao final de menos um dia. Seria ousadia da minha parte dizer que estou bem. Sigo postando frases feitas e prontas de instagram, trechos de poemas que dizem sobre intensidade, afeto e o pouco tempo que nos resta.
Retomo contatos perdidos h� anos. Pe�o perd�o inclusive por coisas que n�o fiz. Ligo pras pessoas que est�o distantes. Tento ser mais paciente. Trato as pessoas com mais amor. Penso que n�o sabemos o segundo seguinte. Tento compensar a dor que fica no meu corpo com amor. Recebo um tanto de volta e algumas patadas. Empatia � uma iguaria rara, pouco servida, dif�cil de ser encontrada e custa caro. Aposto tudo que d� por algumas gramas. Deixo os dramas desnecess�rios de lado e pego tudo que tenho de afeto para as rela��es que est�o aqui. Entoo Black Alien como uma ora��o: eu sou o agora.
Sei que canso meus amigos. Sou monotem�tica e isso � exaustivo para quem est� perto. Mas, juro, eu t� tentando. Vejo um arco-�ris e fot�grafo. H� uma amiga cujo luto me aproximou e que acredita que, com ela, a comunica��o se d� atrav�s das sete cores no c�u. Sempre gostei de arco-�ris. Sendo parte da sigla LGBTQIA, gosto ainda mais. E � imposs�vel n�o relacionar.
Assim, vou vivendo, dia a dia, anotando meus sonhos no bloco de notas do celular pra n�o esquecer, buscando, desesperadamente, o caderninho em que meu analista anotava meus sonhos - e tinha prometido me dar quando acabasse. Agora, esse � meu objeto a. Fa�o meu #di�riodoluto no Twitter e tento lidar com clientes que ficaram com raiva de mim porque, na pior semana da minha vida, n�o consegui atend�-los na velocidade insana (e pra ontem) que sempre atendi porque estava chorando diariamente, sem dormir, lidando com uma casa alagada, outro amigo em coma na UTI ap�s bater a cabe�a e a pior perda que poderia me acontecer no pior momento.
Penso e agrade�o mentalmente ao meu analista por ter me ensinado, na pr�tica, que dar o meu melhor � o meu melhor pra mim. Para algumas pessoas, nunca ser� o suficiente e, ainda sim, elas ser�o cru�is comigo. Ainda sim, basta que eu saiba que dei meu melhor. Digo um obrigada em voz alta e me pego, pateticamente, falando, mais uma vez com algu�m que j� morreu.
Acordo e decido que preciso parar de me jogar t�o freneticamente no luto. J� faz mais de um m�s e n�o � de bom tom que eu fique me arrastando - e postando, influencer que sou - quanto a isso por muito mais tempo. As pessoas esperam que eu esteja bem, que eu esteja sorrindo, que eu supere, afinal, eu fazia/fa�o an�lise pra isso, n�o �?
Vou levar meu pai para se vacinar - tomem as doses de refor�o, preciso dizer - e, ao entrar na sala de vacina, dou de cara com um Batman infantil num biombo. H� alguns meses, quando tomei minha dose mais recente, ele n�o estava. Foi colocado por causa da vacina��o infantil - e do filme novo da franquia, mas, teimo que � um sinal. E derrubo minha pr�pria regra: eu vou falar sobre meu luto sim. Eu vou viver cada dia da minha tristeza, da minha falta de ch�o, do meu medo de seguir, da injusti�a que � esse mundo. E vou falar sobre isso at� que eu esgote as palavras e seus significantes. At� que algum sentido seja poss�vel. At� que alguma elabora��o me tire desse limbo de dor - que me transpassa o corpo e agora, o mundo on�rico. Que me faz enxergar sinais em x�caras, em cores no c�u, em Batmans por todo canto, em Star Wars e at� em porn�s antes de dormir. Intensa que sou - e nunca neguei - vou me jogar totalmente. E agrade�o quem tem empatia e amor - da cabe�a aos p�s, pra seguir comigo.
S�o tempos dif�ceis e eu juro que adoraria estar escrevendo sobre coisas alegres e celebrativas e n�o sobre como virei parte de um epis�dio de Sex and The City, mas sem o glamour e o sal�rio da Carrie Bradshaw. “And just like this”, c� estou, contando do meu luto, em mais uma coluna.
Leio um texto da Ruth Manus no Instagram. Nele, ela conta sobre a perda do pai e sobre como descobriu uma das coisas mais chocantes do luto: que a gente n�o � especial por ter pedido algu�m. Ainda que este algu�m fosse muito especial na nossa exist�ncia.
O texto � extremamente franco e profundo e traz constata��es que fazem meu est�mago revirar como revirou no momento em que recebi a not�cia: a �nica forma da gente n�o perder algu�m � morrer antes deles. E �s vezes d� sim, essa vontade. Lembro que em 2015, quando perdi uma pessoa muito querida - mas que estava doente e tive algum tempo de me despedir e me ‘habituar’ com a ideia de que ela deixar esse mundo seria um jeito de ‘descansar’, eu disse que viver era acumular perdas. A cada dia, elas aumentam.
Perco a paci�ncia com uma amiga que quer sofrer por causa de macho e trazer o gozo dela pra nossa conversa. Estou absolutamente machucada. N�o quero lidar com algu�m se lamentando da saudade de algu�m que est� a uma liga��o de dist�ncia. Eu quero lamber minhas feridas de algu�m cuja liga��o nunca mais vou receber e de algu�m por quem eu daria tudo para ter mais alguns momentos junto e poder agradecer, dizer como foi importante pra mim e como eu amei incondicionalmente depois de me descobrir amada - e que esse amor me fez girar, inclusive, sintomaticamente.
Mas n�o d�. E n�o d� pra tanta coisa que, escrever e ser pat�tica s�o os recursos mais h�beis que possuo nestas semanas. E, a dureza das palavras da Ruth Manus me trazem pra realidade: eu n�o estou especial por isso.
Eu sou algu�m que est� tentando viver e lidar com uma perda repentina. Eu sou algu�m tentando entender qual meu lugar no mundo longe do lugar em que eu tinha um div� pra chorar e o olhar - sempre t�o acolhedor - do meu analista. E, ter que encontrar um novo lugar no mundo d�i bastante.
E esta sou eu, nesta vida. A mesma que eu produzo eventos, que eu fico b�bada, que eu transo com um desconhecido numa festa, que eu beijo uma garota na piscina, que eu compro entorpecentes, que eu pe�o um delivery de comida, que eu vou � feira, que eu beijo meu pet. � a mesma vida que eu procuro bat-sinais, que eu fa�o uma playlist de funk ao lado da de luto, que eu exibo, na rede social, um encontro com minhas amigas regado a �lcool e risadas e que eu n�o exibo, mas acontece: eu chorando, por horas, em posi��o fetal, ap�s ler o texto da Maria Homem quando do um ano da morte do Contardo Calligaris.
Me lembro das vezes que meu analista e eu falamos dos dois, da rela��o deles, recorremos aos textos do Contardo, vimos o curso da Maria Homem, rimos de piadas internas que criamos, falamos da morte do Contardo e de outro texto dela e, ironia ou n�o - aqui estou, sozinha e falando sozinha, sobre a morte do meu pr�prio analista.
Seria um pesadelo, mas � s� a vida acontecendo. Aquela que nunca imaginamos. Aquela que achamos que nunca vai acontecer, mas acontece. Aquela � que � injusta, dura e cruel. Aquela mesma que nos faz rir de perder o f�lego, ter esperan�a em beb�s sorridentes que esbarram conosco, aquela mesma que gozemos, lemos Freud, gritamos #ForaBolsonaro, tomamos vacina, tentamos permanecer vivos. E nem sempre d�.
E, quando n�o d�, aqui estou eu: desmoronando e sendo pat�tica. Mas, sorrindo, limpando o p� das flores (como diria Matilde Campilho) e empunhando as armas que me s�o poss�veis: palavra e afeto.
A �nica coisa que me resta �, enfim, ser pat�tica. E saber que s� posso s�-lo porque vivi uma rela��o incr�vel. Porque conheci algu�m que me fez enxergar o meu melhor lado. E que me amou, incondicionalmente, sem me julgar. � esse amor, justamente, que me faz ser pat�tica - e n�o ter medo de falar e expor isso. Que me faz rir de mim mesma, ao esbarrar nos ‘sinais’ que est�o por a�. Que me faz saber que n�o s�o sinais, mas, ainda sim, apreender algo deles, que � outra forma de dizer obrigada, sen�o, ao amor.
Que a gente possa, ent�o, sofrer nosso luto, assumir que podemos ser pat�ticas/os/es e que isso fa�a parte de quem somos: pessoas que amam.