
Eu sou fracassada. Isso mesmo. Um fracasso. No melhor estilo da express�o que eu acho t�o engra�ada: “fracassei miseravelmente”. E quero falar sobre como essa palavra que tanto nos aprisiona pode ser tamb�m um trampolim para a liberdade.
Poucas coisas s�o como o fracasso na tentativa de nos humanizar. O fracasso nos torna iguais. Todo mundo, mais dia, menos dia, fracassa. E o bonito da vida, talvez, seja justamente isso.
Falhar, se perceber como todas as outras pessoas, errar. N�o dar conta, n�o cumprir o que prometeu, n�o entregar o que combinou. Sumir, desaparecer, insistir, aparecer demais. Simplesmente fracassar diante do que � inalcan��vel: uma promessa.
Fracassar � inerente ao processo da exist�ncia e, sem o esfor�o imenso para n�o faz�-lo, podemos fazer qualquer coisa, dentre elas, ser o que queremos ser.
Eu fracassei enquanto corpo no mundo. Desobedeci � norma, n�o segui o que esperam de mim: dieta, tristeza e um corpo encaixotado no padr�o. Me faltou coragem para ser normativa. Me sobrou desejo de ser dissidente. A dissid�ncia aqui, inclusive, pode ser lida como um fracasso.
Fracassei na exist�ncia como humana. Me bestializei ao ‘escolher’ viver em um corpo marginalizado. E isso me ferra todos os dias. Mas me liberta de n�o querer estar no padr�o, de n�o precisar me esfor�ar, cotidianamente, por isso. Ser uma besta, talvez, seja o lugar de m�ximo conforto para algu�m que fica confort�vel com o fracasso.
J� n�o esperam nada de mim. Que eu emagre�a, que eu tome shakes, que eu compre suplementos, que eu fa�a dietas restritivas, que eu procure nutricionistas e saia de l� contando calorias e medindo a cintura com a fita m�trica. A mim, desejam a morte - e de forma sofrida, sem acesso � sa�de. E, apesar de todos os problemas que isso possa causar, o fracasso � o que viabiliza a minha exist�ncia.
A leitura social de um corpo falho me permite, imediatamente, ser tudo que eu quiser. E esse tudo inclui ser quem eu quiser, ainda que desumanizada. Inclui n�o me punir por ter o corpo que tenho, mas celebr�-lo. Ser um fracasso me permite n�o precisar lutar por um lugar qualquer, mas me esparramar onde der - e eu couber e, ali, ser o que me for poss�vel.
E que bonito que � ser o que der pra ser, sem que precise existir algum esfor�o em convencer outras pessoas, a sociedade, voc� que me l�, o mundo, de que eu valho alguma/qualquer coisa. Ser um corpo cravado no fracasso � ser livre. � me ver distante de qualquer tipo de p�dio e pr�xima da derrota, lambendo as feridas, sem, contudo, ter que lidar com a ang�stia do inalcan��vel e, tampouco, com o desespero pela valida��o.
Viver como uma fracassada, me permite, inclusive, escapar do olhar do outro. Se eu fracassar, n�o existo. Sendo um fantasma, imensa e invis�vel, n�o preciso me preocupar com as formas de morrer: eu n�o existo.
E, se meu nome n�o estiver inscrito em lugar algum, tal qual meu corpo, tudo � permitido, inclusive viver. Viver, desde lugar, pode ser estranho, mas remonta possibilidades tantas. A de descanso para um corpo e uma exist�ncia exaustas, a da vulnerabilidade - e quer beleza maior do que esta: poder estar vulner�vel?
Sendo um corpo fracassado, posso ser um corpo que grita e n�o preciso fazer o sil�ncio, t�o prezado pela normatividade. Sendo um fracasso que habita o lado de fora, de c�, das margens, posso dizer de tudo que me d�i. Se vou ser ouvida, � outra quest�o. Mas, vou dizer.
E voc�, que transforma tudo isso num inferno, vai ter a oportunidade de me ouvir - ou ler. E, a mim, pouco importa. N�o vou entregar mais do que meu fracasso.
Ser uma mulher fracassada - bem como uma feminista fracassada, como j� escrevi aqui - me permite falar alto, sentar com as pernas abertas e fazer o que eu quero, inclusive arder em chamas, com meu corpo abjeto.
Outros fracassos
Logo que chegou � casa do BBB 22, a Linn da Quebrada se apresentou como travesti e quebrou a internet ao fazer um discurso sobre o fracasso. “Eu fracassei. Sou o fracasso de tudo aquilo que esperavam que eu fosse, n�o sou homem, n�o sou mulher, sou travesti (...)”.
Discurso esse que colide com o trabalho de Luan Okun sobre o fracasso. Ou com o texto de Paul Preciado, sobre “A coragem de ser voc� mesmo”.
Meu desejo � que possamos ser fracos. Que possamos falhar, fracassar. E, nos reconhecendo, assim, exist�ncias. E um dia, isso ser� tudo.