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Estado de Minas CORPO TERRIT�RIO

A bailarina que n�o dancei

Como, na literatura, encontrei lugar pro meu corpo gordo no mundo


25/05/2022 06:00 - atualizado 25/05/2022 10:15

Jéssica Balbino veste saia vermelha e blusa bege, e está de frente para uma igreja e ao lado de um espelho d'água
J�ssica Balbino celebra o territ�rio da palavra criado pelo Festival Liter�rio e Cultural de Itu (Flic) (foto: Paulo Stucchi/Divulga��o)

 
Esse � um texto sobre a bailarina que n�o dancei. A bailarina que sonhei, mas n�o pude ser. Eu devia ter uns quatro anos e uma amiguinha que fazia bal�. Na �poca que meu corpo costumava ser meu, ao tentar acompanhar alguns passos, ca�. A culpa, claro, recaiu sobre meu corpo rechonchudo. S� descobri, na vida adulta: eu tinha uma barra �ssea nos p�s, o que os fazia serem chatos. N�o conseguiria, nessa vida, me equilibrar e rodopiar. Hoje, escrevo para essa bailarina. 

Isso. E mais algumas coisas, como a insist�ncia em fazer teatro aos 15 anos e a desist�ncia de subir nos palcos aos 17 anos marcaram minha exist�ncia nestes territ�rios negados aos corpos gordos. 

Como toda opress�o estrutural, a gordofobia disp�e de tantos tent�culos e formas sutis de regular nossa exist�ncia que s� me dei conta disso pelo menos uns 18 anos depois, quando, numa mesa sobre literatura e corpos, me perguntaram sobre a gordofobia enfrentada no mercado e editorial e eu me dei conta que ela � exatamente igual a toda gordofobia, mas que, at� ali, eu tinha dado um jeito de, atrav�s do jornalismo e da escrita, fazer meu nome chegar antes do meu corpo nos espa�os. 

Isso me custou o sonho de ser bailarina de saia de tutu e sapatilha rosa na inf�ncia. Me custou o sonho de ser atriz de teatro. E me rendeu muitas horas escrevendo e dando vida �s minhas neuroses e recalques todos atrav�s da palavra. 

S� percebi, aos 35 anos, que ali, naquele momento, eu fazia o esfor�o de chegar com corpo e palavra ao mesmo tempo nos espa�os. E que tarefa dif�cil essa de cavar territ�rios para conseguir existir. 
 
Jéssica Balbino usa vestido estampado e está sentado ao lado de outras duas mulheres na mesa de debates que trata de corpos
J�ssica Balbino na mesa de debate sobre corpos dissidentes (foto: Juca Ferreira/Divulga��o)
 
 
Por isso, t� fazendo esse texto: para celebrar o territ�rio da palavra criado pelo Festival Liter�rio e Cultural de Itu (Flic) durante o �ltimo final de semana em Itu (SP). Como consultora da festa, trabalhei por alguns meses numa equipe reduzida e sem qualquer investimento/patroc�nio para botar de p� o sonho do jornalista e escritor Paulo Stucchi: uma festa liter�ria nas ruas de Itu. 

Durante quatro dias, este corpo- territ�rio foi pura emo��o, choror� e vibra��o de vida na Pra�a do Carmo, no centro de Itu, por comungar da palavra e, sobretudo, estar vivo. H� um ano, no auge da segunda onda da pandemia, imaginei que morrer�amos todos de descaso do governo. Sem vacina, sem oxig�nio, sem capacidade de imaginar amanh�s. Chegamos at� aqui, ent�o celebremos: o SUS, a vacina, a ci�ncia e nossos mortos, que n�o conseguiram chegar conosco. 

Atravessamos, de alguma forma - n�o sem preju�zo e dores - o per�odo mais tenebroso desse tempo que nos tirou tanto, mas num esfor�o de projetar possibilidades po�ticas, colocamos (e aqui agrade�o quem n�o mediu esfor�os para isso Fernanda Vaz Rabello, Ana Squilanti, Raquel Aranha e B�rbara Schreurs - al�m do Paulo Stucchi, j� citado) de p� um festival liter�rio neste Brasil. 

Sem traquejo social, tanto quanto sem equil�brio pra bailarina que n�o dancei, n�o sei como voltar aos eventos: cumprimento de longe? abra�o? beijo no rosto? tiro a m�scara? coloco a m�scara? onde lavo a m�o? e se eu cansar de estar entre tanta gente? e se eu precisar de um momento sozinha? como que faz a mala pra passar tantos dias fora de casa? e se eu esquecer as calcinhas? e se eu voltar a ser s� aquela crian�a de 4 anos impedida de dan�ar? e se eu quiser subir no palco e interpretar uma personagem e achar que n�o posso por ser gorda? e se todos meus dilemas juvenis sa�rem debaixo da cama pra me assombrar? convido meus monstros e sombras pra um caf� ou fujo deles?

A pandemia me bagun�ou. Mas existe uma certeza: n�o me roubou o desejo da mudan�a atrav�s da literatura. Mentalmente, me agarro � frase: “minha palavra vale um tiro e eu tenho muita muni��o”. Assim, mergulho em quem fui pra ser quem me tornei e, na profundidade das minhas ra�zes, me reencontro. Fujo da mediocridade e da hipocrisia como quem abandona um pr�dio em chamas e t� tudo ali: a bailarina que n�o dancei, de m�os  dadas com a menina no final do corredor me assombrando. Elas me encaram e eu procuro a minha f� de 10 anos atr�s. 
 
Eduardo Suplicy fala ao microfone e é aplaudido por um homem e duas mulheres que estão ao seu lado no palco
Eduardo Suplicy participou da mesa 'Territ�rios em 2022: espa�os na escrita e fora dela que precisamos ocupar' (foto: Juca Ferreira/Divulga��o)

Encontro diante de mim, numa mesa em que sou a mediadora. Ou�o Monique Malcher (autora de “Flor de Gume”, vencedora do Jabuti em 2011) e Ana Squilanti descreverem suas personagens, suas escritas e seus lugares no mundo: o do desejo de explorar a complexidade das pessoas - e personagens gordas - em lugares outros que n�o s� o da dor. Ali, reencontro a bailarina que n�o pude ser. 

Nas palavras de quem precisou escrever para cavar seu lugar no mundo e, finalmente estar no palco, ali, naquela manh�, ao meu lado, existindo, numa luta que, sabemos, � pra l� de desigual. J� entramos no jogo com o placar � frente. Soterradas pelo que projetam em nossos corpos, temos nossa exist�ncia limitada aos quilos julgados excedentes e uma expectativa de uma escrita confessional e pouco elaborada ou sofisticada. 

� preciso que, colando nossos cacos, nos fa�amos novamente inteiras e consigamos, enfim, dizer do que nos atravessa - nossas dores, sim, mas tamb�m nossos prazeres todos. E � s� ali, tanto tempo depois de um in�cio cheio de percal�os que podemos, enfim, celebrar nossas exist�ncias a partir da escrita. 

Numa curadoria que traz uma refer�ncia � Semana de Arte Moderna de 1922 e celebra os modernistas, homenageando Pagu e questiona o que seria modernismo hoje, temas como mem�ria e territ�rio tamb�m reverberam em nossos corpos - a maioria deles, dissidentes - atrav�s das narrativas que contamos. 
 
Jéssica Balbino fala em microfone para um grupo de pessoas
J�ssica Balbino se apresenta no Festival Liter�rio e Cultural de Itu (Flic) durante o �ltimo final de semana em Itu (foto: Juca Ferreira/Divulga��o)
 
Como nos lembrou Mayra Sigwalt em sua fala na mesa “Territ�rios em 2022: espa�os na escrita e fora dela que precisamos ocupar”, que fez ao lado de Eduardo Suplicy, Caco Pontes e Maria Carolina Casati: “Ser origin�rio � ser ind�gena. Quero tirar a ideia do ind�gena de 1500, como se Itu, hoje, n�o fosse uma palavra ind�gena”. E assim, assinala o que acredita ser moderno em 2022. Tanto quanto a est�tica impressa por Caco Pontes e Suplicy ao entoarem versos da m�sica “O homem na estrada” (c� estou, novamente, citando Racionais MCs) numa base lo-fi e hipnotizando o p�blico - pro del�rio feliz do Paulo Stucchi que queria esse momento. 

Ao meu lado, Alexandre Ribeiro tamb�m nos lembra que ser modernista � ser perif�rico e criar a partir da total impossibilidade. Imaginar a po�tica a partir do luto, das perdas, das dores e assim, criar possibilidades e futuros. � o que ele narra em “Reservado”, seu primeiro romance. 

E, nessa linha, tal qual Pagu - nossa homenageada - Clara Averbuck e Renata Corr�a nos trazem um olhar sobre a raiva e a cria��o, usando esta como combust�vel para a pr�pria escrita, em um jeito de organizar a raiva e celebrar a alegria, a partir do nosso pr�prio corpo, que pode ser festa, felicidade, prazer, desejo e n�o s� o uma demanda pol�tica. 

Assim, o �ltimo dia do festival n�o � o fim, mas o come�o de uma revolu��o que come�a com nossos corpos celebrando, enfim - e novamente - a vida: os abra�os, os encontros, as cervejas nos cantos, a cachacinha pra livrar o fim, os flertes, os atravessamentos pela literatura, pela arte, as l�grimas que insistem em chegar, nos lembrando que perdemos tanto, tanto, tanto, mas que, de algum modo, ainda temos a capacidade de nos sentirmos vivos e de fazermos algo com isso. E que tal uma revolu��o? 

A mim, interessa a que come�a nos livros e nos sonhos. A Flic come�ou bem. Paulo, Nanda, Ana, Raquel e Babby: voc�s sabem o quanto eu curti e t� chorosa com tudo. Obrigada pela partilha do sonho e da realiza��o. Que nossas presen�as sigam enchendo pra�as. 
 
Ao final, ou come�o, como queiram, me encontro com a bailarina que n�o pude ser. A tiro pela m�o e rodopio, finalmente, pra�a afora. Sem tutu, sem la�o, sem sapatilha, mas absolutamente feliz: encontrei, na escrita, meu bal� perfeito. Minha dan�a se deu atrav�s das minhas palavras. Finalmente, meu corpo chegou junto com a minha escrita e eu pude, enfim, dan�ar. Livre. 

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