
Descontada uma subnotifica��o da ordem estimada de at� 1 milh�o de casos de cont�gio e a subnotifica��o de um n�mero ainda indeterminado de mortes pela epidemia do Sars-COVID-19, em 7 de maio o Minist�rio da Sa�de informou a morte de quase 10 mil brasileiros pelo novo coronav�rus e quase 150 mil infectados, assintom�ticos ou que desenvolveram a doen�a.
Pela primeira vez o at� ent�o irresoluto ministro Nelson Teich admitiu a possibilidade do “lockdown”. Nesse dia, os estados do Par�, Maranh�o e Cear�, al�m do munic�pio de Niter�i, no Rio de Janeiro, j� haviam decretado o “lockdown”, isto �, o confinamento social geral e a redu��o da mobilidade ao rigorosamente essencial e sob controle mediante o uso de vigil�ncia policial.
Dada a progress�o exponencial do cont�gio, nos pr�ximos dias deveremos assistir aos estados do Amazonas, Amap�, Roraima, Pernambuco, Rio de Janeiro e S�o Paulo, ou pelo menos as suas regi�es metropolitanas, adotarem a medida extrema e imperiosa.
Ao temido colapso das redes hospitalares, como que em trama macabra seguiu-se em algumas capitais o colapso no funcionamento dos institutos de medicina legal, das funer�rias e dos cemit�rios.
A situa��o de horror estabelecida projetou em estado de indiz�vel dor, sofrimento f�sico e ps�quico, desamparo, ang�stia e d�vida sobre a humanidade dos humanos os familiares que vivenciaram esse funesto processo de morte em progress�o lenta e ag�nica dos seus entes queridos.
Reduzidos � impot�ncia em sua extrema fragilidade, em estado de consci�ncia viram-se submetidos a uma situa��o de agonia respirat�ria decorrente da falta de vagas em leitos de UTI. Vivenciaram lenta e agonicamente a pr�pria morte. Morriam por falta de acesso a um respirador ou ventilador pulmonar, ao tempo em que m�dicos e enfermeiros se viam premidos ao papel de um deus cruel, for�ados, nas circunst�ncias, a escolher quem ir� dispor da chance de sobreviver e quem ir� sofrer uma morte terr�vel.
N�o bastasse viver tamanho sofrimento emocional e ps�quico, que � psiquicamente viver em si a dor dilacerante do desamparo do outro, provavelmente em muitos casos uma dor irrevog�vel, os familiares ao desamparo assistiam os corpos j� sem vida dos seus parentes permanecerem por um tempo que n�o se mede em horas depositados em leitos e macas dispostas em corredores ou acumulados em cont�ineres adaptados como c�maras frias, � espera de uma incerta vaga no transporte funer�rio.
A cena dantesca ainda n�o estava completa. Iria culminar com uma esp�cie de aterramento de corpos depositados em caix�es, de madeira ou papel�o, dispostos lado a lado, �s dezenas, acumulados em grandes trincheiras escavadas por retroescavadeiras, seguindo-se, ap�s a deposi��o dos caix�es, o aterramento efetuado pelas m�quinas. � dist�ncia, impedidos por medida sanit�ria de conten��o at� do direito ao adeus derradeiro, os vivos vivenciavam, incr�dulos e horrorizados, a impiedade das impiedades, a impossibilidade de compartilhar a humana e singela compaix�o de uma despedida digna. O horror confundia-se com a vida.
M�dicos, sejam cl�nicos, pneumologistas, intensivistas e infectologistas, enfermeiros e auxiliares, fisioterapeutas, equipes do SAMU e de ambul�ncias t�m a gratid�o de todo um povo e da na��o, contudo insuficiente para oferecer-lhes reconhecimento � altura de sua grandiosa viv�ncia naqueles momentos de suprema doa��o ao outro em ato espont�neo de santidade, hero�smo e, no limite da generosidade humana, disposi��o a um mart�rio consciente. Um povo, uma na��o, n�o deixa ningu�m para tr�s, n�o pode permitir e tolerar a inf�mia do abandono na dor e na perda, at� do direito ao luto. Ainda que surpreendidos por um inimigo terr�vel, invis�vel, altamente contagioso e letal, em algum momento e em algum grau, falhamos.
Nessa hora que clama pela uni�o e pela pr�tica da solidariedade e da compaix�o, a na��o se descobre fragmentada, fragilizada, humilhada ao testemunhar a aus�ncia, o sil�ncio, a indiferen�a e o alheamento daquele de quem todos esperavam grandeza, eleva��o, compaix�o, exemplaridade e lideran�a: faltou-nos e prossegue nos faltando um presidente, um l�der que, mais que resoluto e possu�do de coragem moral, demonstre, sem exibir, sentir o sentimento do outro.
Enquanto no Brasil real o povo vive a ang�stia do medo da epidemia em expans�o, o presidente vive e transita e se compraz em uma realidade paralela, encorajando manifesta��es pol�ticas sect�rias, ofendendo a democracia e o estado de direito democr�tico, movendo guerra de atrito contra o Supremo e o Congresso Nacional, al�m de visitar quart�is e singularmente ocupar-se em prazerosa dedica��o do seu tempo em grava��es de “lives” dirigidas ao povo existente em seu mundo de uma realidade paralela, o povo de seguidores virtuais movidos a “perfis”, rob�s e por um ser despossu�do de qualquer compaix�o. Nisso reside, condensa-se e se esgota toda a paix�o do presidente.
Nesse 7 de maio e 10 mil mortos pela epidemia, o presidente irrompeu no Supremo Tribunal Federal � frente de uma passeata de uma dezena de empres�rios e outra dezena de ministros e deputados. Surpreso ante o inesperado de uma “visita” n�o agendada e de objetivo por ele ignorado, o presidente do Supremo, entre perplexo e incr�dulo, contudo impass�vel, assistiu o presidente da Rep�blica exibir-se em cena com grava��o premeditada, n�o solicitada ou autorizada, uma live ao vivo.
De olho na c�mara e sem olhar o interlocutor uma �nica vez, o presidente discursou para os ausentes enquanto ignorava o juiz, presente. A inten��o consistia em exibir-se aos ausentes e pressionar o Supremo, atribuir-lhe responsabilidade pelo ato de reconhecer aos governadores e aos prefeitos a prerrogativa constitucional de decidirem pela aplica��o do isolamento social como meio para conter uma r�pida expans�o da epidemia. No entanto, ali na sede do Supremo o presidente irrompera para condenar o pr�prio Supremo e os governadores e para sair em defesa de uma imediata interrup��o do isolamento social, em defesa dos empres�rios, da economia, da “normalidade”.
Sem o isolamento social, ali�s precarizado precisamente pela persistente oposi��o contra ele movida pelo pr�prio presidente, os mortos pela COVID-19 contariam 50 mil ou mais. Como mais de uma vez disse o presidente: “Fazer o qu�? N�o sou coveiro!” Esse 7 de maio, dia de ang�stia, tamb�m ficar� assinalado e demarcado na alma dos brasileiros como o dia da inf�mia.
Jo�o Batista Mares Guias � soci�logo, ex-secret�rio
de Educa��o de Minas Gerais e consultor em educa��o