postado em 25/05/2020 04:00 / atualizado em 25/05/2020 07:59
Em 2013, as Jornadas de Julho deram vaz�o a um movimento social que acabou do por setores da direita (foto: Beto Magalh�es/EM/D.A Press %u2013 17/6/13)
Nas democracias, na esfera da vida privada muitos indiv�duos mant�m-se encerrados na vida familiar, no mundo do trabalho e nos relacionamentos, e em raz�o desse ego�smo moderado demonstram-se p�ssimos cidad�os na esfera dos assuntos p�blicos. Contudo seria uma infrut�fera cr�tica moral atribuir a esse conformismo moderado a causa do grande d�ficit de cidadania que tanto se observa de algum tempo a esta data em nossa vida democr�tica. Vivemos auges de participa��o cidad�: a “Campanha pelas Diretas, J�”, de 1984, a grande e cont�nua mobiliza��o pol�tica, social e cultural, durante tr�s anos, pela conquista da Assembleia Nacional Constituinte, at� a aprova��o da Carta Cidad�, em 1988, a campanha pelo impeachment do presidente Collor, em 1992, seguindo-se, ap�s grande intervalo, as Jornadas de Junho de 2013.
Nos �ltimos dois anos o que se assiste � o bolsonarismo radical nas ruas em provoca��o ostensiva contra a democracia, pedindo interven��o militar com Bolsonaro.
De regresso ao ponto de partida, provavelmente o d�ficit de participa��o seja consequ�ncia de outro, o d�ficit de representa��o pol�tica. Seja em raz�o de nossa permissiva legisla��o partid�ria (cerca de 30 partidos), seja em consequ�ncia do voto proporcional em vez do voto distrital misto ou puro (menos de 10% dos atuais deputados obtiveram vota��o igual ou maior que o quociente eleitoral), seja porque n�o adotamos a lista partid�ria de candidatos preferenciais com perfis de lideran�a e de forte representatividade no plano das ideias e do compromisso program�tico partid�rio, ou, em chave mais sociol�gica, porque, ap�s a era das lutas de classes e das grandes identidades pol�tico-ideol�gicas, nas sociedades p�s-industriais modernas o que se observa, e cada vez mais, � um processo de fragmenta��o social em identidades coletivas segmentadas, cada uma apaixonada pela sua “causa �nica”.
Vivenciamos uma esp�cie de crep�sculo da a��o coletiva com enfoque em um projeto nacional-democr�tico de mudan�as. Ao mesmo tempo em que os fatos assim se imp�em, nunca se observou tamanha escalada de ataques � pol�tica como tal, tamanho desprest�gio dos partidos e tamanha descren�a na vida p�blica. Onde h� fuma�a pode haver fogo. Temos um not�vel e sombrio d�ficit de sociedade civil organizada.
Uma breve cr�nica do “N�s contra Eles”
Afinal, a pr�tica da a��o pol�tica em nossa democracia tem sido objeto de intenso combate. Na d�cada de 1990, por exemplo, na aus�ncia de uma extrema direita e de uma direita democr�tica organizada o PT abriu guerra ideol�gica contra os governos da socialdemocracia, reivindicando-se a “�tica na pol�tica” contra a “corrup��o”. O enfoque do PT era a imposi��o da “sua” hegemonia.
At� o final daquela d�cada, vencera a guerra ideol�gica contra a socialdemocracia no governo, que, como partido, acovardara-se ao n�o defender as ideias e realiza��es do seu pr�prio governo. N�o h� como e n�o se deve esquecer o modo como o PT conduziu, na TV, a campanha presidencial de 2002, exibindo ratos roendo a bandeira nacional numa alus�o ignominiosa ao governo FHC.
Isso sem contar a sect�ria campanha do “Fora FHC”, de 1999. Tampouco se deve esquecer a abomin�vel campanha, antecipat�ria do “fake news”, que, uma vez mais, o PT desencadeou contra a candidata Marina Silva, em 2014, acusando-a de financiada pelo banco Ita�. Como se v�, o uso do fake news na disputa pol�tica tem, tamb�m �s esquerdas, hist�ria recente em nosso pa�s.
Embalada na Lava-Jato, a partir de 2014 a extrema-direita come�ava a se formar e certamente prestou aten��o ao jogo de “soma zero” da esquerda contra advers�rios de centro-esquerda. Na d�cada de 1990 o PT inventara o “N�s” ou a cidadela virtuosa da �tica na pol�tica contra “Eles” ou o mundo das elites corruptas, ou, por outras palavras, em chave mais atual, a “nova pol�tica” versus a “velha pol�tica”.
Penso que a prospec��o arqueol�gica da ancestralidade da disputa pol�tica como guerra por outros meios poder� projetar alguma luz sobre os acontecimentos atuais em nosso pa�s e desnudar as brechas por onde foi se insinuando o bolsonarismo, da “sa�da do arm�rio” � a��o pol�tica organizada.
Ah, ironia! Virtudes do primeiro governo nacional do PT � parte, em 2005 irrompia o “mensal�o”. A resposta do PT foi o sil�ncio complacente e obsequioso. Em nome da governabilidade e para conter a possibilidade do processo de impeachment, o Pal�cio do Planalto orquestrou uma santa alian�a no poder e para o poder em condom�nio com o “centr�o” e o MDB. A cumplicidade do PT com o que ficaria conhecido como o “centr�o” gerou g�meos: a governabilidade e, em gesta��o e pleno desenvolvimento delitivo, o “petrol�o”. Anos adiante seria objeto de investiga��o da Opera��o Lava-Jato, de 2014.
Por sua vez, a Lava-Jato gerou g�meos distintos: S�rgio Moro e Jair Bolsonaro. Saber�amos anos mais tarde que Moro e o lavajatismo iriam formar o embri�o de uma direita conservadora nacional em organiza��o, e que a candidatura de Jair Bolsonaro ensejaria a oportunidade de irrup��o e protagonismo de uma extrema direita nacional reacion�ria, banhada em autoritarismo e belicosidade. Encontraram-se no bolsonarismo no poder, e, uma vez no poder, romperam rela��es como “inimigos amarrados”.
De certa forma, essa � uma cr�nica do desencantamento dos cidad�os frente � pr�tica da pol�tica. A “�tica na pol�tica” sa�a de cena, amesquinhada, para ceder lugar, alguns anos adiante, em reedi��o da “vassoura” ou o combate � corrup��o prometido pelo ex-presidente J�nio Quadros (1961), ou da “ca�a aos maraj�s” do ex-presidente Fernando Collor (1989), ambos de triste figura. De posse da Lava-Jato como s�mbolo, o “bolsonarismo” emergente come�ava a ocupar os vazios de representa��o e de participa��o, vocalizando, no plano dos valores, tradi��es, costumes e expectativas de seguran�a, uma vez mais, o combate � corrup��o, em oportunista e facilitada simbiose com aquela Opera��o.
(foto: Paulinho Miranda)
Mais uma vez, a farsa na luta contra a corrup��o
A farsa se repete. Pois em menos de ano e meio de governo o presidente Bolsonaro tudo fez e faz para obstruir, no Rio de Janeiro, as investiga��es sobre a “rachadinha” praticada no gabinete do ent�o deputado estadual e hoje senador Fl�vio Bolsonaro, filho do presidente, ao ponto de em todo esse tempo empenhar-se na substitui��o do superintendente da Pol�cia Federal naquele estado. Nessa senda, deslocou do minist�rio da Justi�a e da Seguran�a P�blica a responsabilidade pelo comando do Coaf (Conselho de Acompanhamento Financeiro), instrumento institucional indispens�vel para “seguir o dinheiro” em casos de investiga��o de corrup��o. Ao mesmo tempo, persistia em substituir o diretor-geral da Pol�cia Federal para ali colocar algu�m que se sujeitasse a passar-lhe (ilegalmente) informa��es reservadas sobre o andamento de investiga��es vinculadas a inqu�ritos que transcorrem em segredo de Justi�a. Isso feito precisamente quando ao Supremo Tribunal Federal incumbira-se de presidir o processo investigativo sobre as “fake news”, por solicita��o do Congresso Nacional, al�m de tamb�m presidir o processo investigativo sobre as manifesta��es do movimento do “bolsonarismo” nas ruas e sua prega��o ostensiva de “interven��o militar com Bolsonaro” e “ditadura com Bolsonaro”.
Na sequ�ncia, ap�s guerra aberta de hostilidade unilateral contra o Congresso Nacional e o Supremo, o presidente, alvo de in�meras peti��es endere�adas � C�mara dos Deputados para a instaura��o de processo de impeachment, abre o Pal�cio do Planalto para recepcionar o novo e preferencial aliado parlamentar: o velho “centr�o” do “mensal�o” e do “petrol�o”. A fraude ideol�gica e o estelionato eleitoral se repetem. Os interlocutores do presidente, com os quais acerta a distribui��o de cargos no governo, s�o os mesmos que tramaram e organizaram o “mensal�o”, lado a lado com o PT, os condenados e presos Roberto Jefferson, do PTB, Valdemar da Costa Neto e Arthur Lira, atual l�der do “centr�o”, et caterva. Eis que a “nova pol�tica” sucumbe aos encantos da “velha pol�tica”, assim como, no passado, a “�tica na pol�tica” sucumbira �s “raz�es de estado”, isto �, a perpetua��o no poder, na era do lulismo.
A grande esquecida e banida da pol�tica: a participa��o
Paradoxo dos paradoxos observou-se sob o “lulismo” no poder o refluxo da t�o afian�ada quanto exaltada “participa��o” dos movimentos sociais e da sociedade civil em processos de tomada de decis�es sobre pol�ticas p�blicas. Na ocasi�o, quase dois mil l�deres sindicais e centenas de l�deres sociais trocaram a a��o na sociedade civil por posi��es de poder no governo, disso resultando o pior dos mundos: o eclipse da participa��o, uma das marcas origin�rias do PT, nos tempos quando a �poca ainda era uma �pica. Ap�s o primeiro governo Lula, o segundo Lula e a presidente Dilma Rousseff e, com ela, o PT, demonstraram-se alheios � ideia e refrat�rios � pr�tica da “participa��o”, antes um valor inscrito na cultura pol�tica origin�ria do partido. O governismo absorvia os movimentos sociais.
Todos os atores pol�ticos, �s esquerdas, ao centro e �s direitas – essas, ainda um tanto invis�veis –, e todos os atores sociais, lado a lado com cidad�os de todas as classes e idades, em junho de 2013 pela primeira vez deram-se o poder de voz e a vez da “participa��o”. Surpreenderam o poder e o PT, a sociedade e a si mesmos naquelas monumentais “Jornadas de Junho”, quando o Brasil dos brasis das bandeiras de cada um tomou as ruas em protesto geral, em inconformismo amplo, geral e irrestrito nascido das difusas aspira��es oriundas da “inclus�o pelo consumo” e da amplia��o de oportunidades geradas sob o lulismo.
O lulismo gerou g�meos: ele e a sua supera��o. Fato novo desde 1964, as direitas tamb�m tomaram as ruas naquele Junho de 2013. Quebraram o monop�lio das esquerdas em sua tradicional cidadela de protesto: as ruas. Rapidamente aprenderam o caminho e tomaram gosto. Decerto, o ano de 2012, tomado pelo julgamento do “mensal�o” sob a batuta do Supremo Tribunal Federal, sangrou na veia da sa�de do PT e abriu alas � geral ousadia nas ruas. O pior estava por vir: o PT sangrou na pr�pria veia da sa�de ao ignorar seus erros, recusar-se a uma autocr�tica e a empreender mudan�as. Encapsulou-se. Nas ruas de 2013 tamb�m come�ava a florescer a direita liberal-democr�tica no pa�s, adiante corporificada no Movimento Brasil Livre (MBL), liderado por jovens adeptos de um liberalismo atavicamente retr�grado na linhagem do “estado m�nimo” e de “todo poder ao mercado”. Bolsonaro come�ava a se movimentar como futuro candidato. Enxergou o vazio e dedicou-se a ocupar o indisputado e amplo espa�o do “lavajatismo” e do inconformismo difuso e sem rumo, adicionando-lhe os valores do tradicionalismo e, n�o sem raz�o, o clamor por seguran�a como um novo ingrediente dos direitos humanos.
Para uma arqueologia do bolsonarismo
O ano de 2014 exibiu dois fen�menos, simult�neos e concorrentes, a reelei��o da presidente Dilma Rousseff e o in�cio do protagonismo nacional da Opera��o Lava-Jato. A disputa final em segundo turno confrontou um candidato do PSDB que at� ent�o lograra ocultar os seus crimes de corrup��o nas brumas do privil�gio de foro, contra uma presidente cujo partido carregava sobre os ombros o manto de chumbo do “petrol�o”, com suas veias abertas pela Lava-Jato. O sil�ncio ensurdecedor do PT face � sua pr�tica de corrup��o sist�mica e sistem�tica amplificou a voz da Lava-Jato e entregou, de vez, a bandeira da legalidade e do combate � corrup��o �s direitas em forma��o.
Pela segunda vez as esquerdas entregavam a bandeira da legalidade �s direitas. A vez primeira culminou no golpe de 1964: � como a extrema-direita usa a legalidade! N�o bastasse, a presidente reeleita gerou da ideologia, por partenog�nese, a maior crise econ�mica desde a d�cada de 1980, uma prolongada recess�o e 13 milh�es de desempregados, a queda da renda m�dia da popula��o, a volta da pobreza absoluta, o retrocesso por compara��o aos �xitos sociais redistributivos do lulismo.
Seguiu-se o impeachment e a investidura presidencial de Michel Temer. A Lava-Jato destruiu o governo Temer quando ele apenas come�ava a al�ar voo pr�prio e colhia os primeiros �xitos decorrentes de uma eficiente gest�o da economia. Crise sobre crise e Lava-Jato. Em 2018 irrompe o candidato Jair Bolsonaro, de um quase nada, para dar voz a uma advent�cia extrema direita ultrarreacion�ria, na linhagem do “tradicionalismo”. Ali�s, com nenhuma afinidade eletiva com o “conservadorismo” como vis�o de mundo, cultura pol�tica e compromisso com a democracia. Seja como for, no vagalh�o da bipolariza��o nacional o “bolsonarismo” reacion�rio atraiu o nosso fr�gil conservadorismo e somou a seu favor o lavajatismo. Sem um projeto para o pa�s, n�o obstante, apresentou uma agenda, adiante comentada. Venceu.
*Soci�logo, ex-secret�rio de Educa��o de Minas Gerais e consultor em educa��o