
“Liberdade sempre significa liberdade para os que pensam diferente”: assim pensava e agia Rosa Luxemburgo, fil�sofa e l�der revolucion�ria socialista polaco-alem�, assassinada no in�cio de 1919, em Berlim. Marxista, opunha-se ferreamente � ideia de uma “ditadura do proletariado”, a tese central do l�der revolucion�rio russo L�nin. A ditadura do proletariado resultaria em totalitarismo. Castro a praticou em Cuba. Apoiou a aniquila��o da “Primavera de Praga” pela URSS. Guevara, te�rico e testament�rio de uma sociedade socialista militarizada constitu�da de “homens novos” sacrificiais, iguais, abdicantes e, em ascese, dedicados � revolu��o permanente mundial, era entusiasta da tese leninista e da pr�tica da ditadura do proletariado.
O pre�o da presumida igualdade geral seria o sufocamento da liberdade em nome da seguran�a da revolu��o. Rosa Luxemburgo, ardorosa defensora da revolu��o socialista e dos conselhos de oper�rios e soldados, a democracia direta dos trabalhadores, teria se colocado ao lado da “Primavera de Praga”, a experi�ncia do “socialismo em liberdade” da ent�o Tchecoslov�quia, tiranizada pelos tanques da URSS. As experi�ncias do socialismo real demonstraram-se hostis a valores fundamentais como liberdade e toler�ncia. Fracassaram.
Da proposi��o de Rosa Luxemburgo se deduz que a toler�ncia com o diferente, o divergente, o opositor, n�o deveria ter limites? Em outra �poca, na aurora do Iluminismo, o fil�sofo ingl�s John Locke, em oposi��o ao absolutismo mon�rquico e, em geral, � tirania, para legitimar a Revolu��o Gloriosa de 1688, que transferiu o controle do Ex�rcito da autoridade do Rei para a do Parlamento e expulsou os cat�licos Stuarts do poder, sustentou, como naturais, os direitos do indiv�duo � vida, � propriedade, � felicidade e � rebeli�o contra a tirania.
Para ele, a sociedade, fundada para salvaguardar a autonomia do indiv�duo, repousava sobre um acordo entre o povo soberano e o governo, que s� usaria seu poder para garantir os direitos irrevog�veis conferidos ao indiv�duo pela divindade arquiteta do universo (de�smo). Os �dios rec�procos haviam resultado em sangue na guerra civil entre cat�licos e huguenotes na Fran�a do s�culo XVI e em guerra civil na Inglaterra do XVII. Tornando toler�vel a vida da minoria de cat�licos na Inglaterra, contudo, Locke n�o advogou-lhes plena liberdade de dissentir.
Na Am�rica do Norte, ex-col�nia inglesa, os “Pais da P�tria” e os autores de O Federalista (James Madison, Alexander Hamilton e John Jay) tamb�m proclamaram, n�o sem as reservas c�ticas de Hamilton, os direitos naturais do homem na presen�a do Ser Supremo. Por eles e em seu nome, fizeram a Revolu��o Americana de 1776 e a Constitui��o Republicana de 1787.
Para os americanos, fez-se “indispens�vel (a) necessidade de um governo” porque o governo em si � “a maior de todas as cr�ticas � natureza humana” (segundo eles, possessiva, ego�sta). Em forma de debate p�blico, O Federalista desenvolve algo como o construtivismo pol�tico de institui��es e de processos concernentes � organiza��o do governo republicano (representativo) exigidos para preserva��o da liberdade, bem como das rela��es dessas institui��es e processos com a complexa conduta dos indiv�duos, dos grupos sociais, das “fac��es” e das classes sociais (Madison) em uma sociedade organizada.
O “governo popular” tem acompanhantes essenciais: a liberdade de opini�o e o direito de discordar. Freios e contrapesos institucionais, como a separa��o dos tr�s Poderes em um sistema de controles m�tuos, s�o defesas da liberdade e da estabilidade, sendo o Poder Judici�rio o guardi�o da Constitui��o (Hamilton), e somente ele (constitucionalismo americano). At� hoje, a liberdade de opini�o � um valor absoluto na democracia americana, e esse “absoluto” expressa-se na ilimitada liberdade de imprensa. Naquele pa�s, nem o argumento da “seguran�a” limita a liberdade de opini�o. Logo, n�o h� crime de opini�o, n�o h� crime de consci�ncia ou de inten��o na democracia fundada pela Revolu��o de 1776. Pessoas e grupos podem, sem restri��es, associar-se politicamente e disputar elei��es e o poder.
Se observasse o funcionamento da democracia na Am�rica provavelmente o fil�sofo Karl Popper seria tomado por grande inquieta��o do esp�rito, vez que, segundo ele, “a liberdade irrestrita leva ao fim da liberdade”. Essa proposi��o ficou conhecida como o paradoxo de Popper. Para ele, “a toler�ncia ilimitada leva ao desaparecimento da toler�ncia. [...] e se n�o estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intoler�ncia, os tolerantes ser�o destru�dos e a toler�ncia com eles”. Logo, “em nome da toler�ncia, (defendia) o direito de n�o tolerar o intolerante”.
Interpretado livremente, o paradoxo de Popper daria raz�o aos intolerantes que, no Brasil, em 1947, apenas um ano ap�s a promulga��o da Constitui��o democr�tica de 1946, condenaram o Partido Comunista Brasileiro (PCB) � ilegalidade, e os deputados federais e o senador que elegera, � perda dos mandatos, seguindo-se a persegui��o policial. Nas d�cadas de 1950 e at� 1964, Carlos Lacerda, da UDN, teria sido sucessivamente processado, condenado e preso pela prega��o continuada do golpe militar contra a democracia.
Nos dias de hoje, uma coisa � um grupo paramilitar lan�ar roj�es contra a sede do Supremo Tribunal Federal, em incita��o simb�lica a um esp�cie de “inc�ndio do Reichstag” (o parlamento alem�o incendiado pelos nazistas em 1933). � crime, em ato. A prop�sito, a Rep�blica de Weimar (1919-1933) confundiu toler�ncia com permissividade, ao ponto de “tolerar” a forma��o de “ex�rcitos” partid�rios, como as SA nazistas praticando viol�ncia nas ruas contra os advers�rios, abertamente, em toda Alemanha. Tipifica crime. Outra coisa �, no Brasil atual, os bolsonaristas irem �s ruas portando faixas que pedem “Interven��o militar com Bolsonaro”. Coisa de fascistas, desprez�veis, contudo no campo do direito de opini�o e de manifesta��o.
O argumento do fil�sofo americano John Rawls, autor de “Uma teoria da Justi�a”, segue em dire��o mais genuinamente democr�tica e republicana. Pensa que uma sociedade justa deve tolerar o intolerante, caso contr�rio a sociedade seria ent�o ela pr�pria intolerante, e portanto, injusta. Para ele, a pr�tica da Justi�a � o fundamento moral para a coordena��o (governo e institui��es) e a efici�ncia, do que resulta maior coes�o social. No entanto, ele prop�e, outra coisa � o direito de autopreserva��o da democracia, que supera o princ�pio da toler�ncia. � como penso. Contudo, qual deve ser o limite?
Que a extrema-direita bolsonarista, na legalidade, tenha a mesma liberdade de opini�o e de manifesta��o que pratico! Outra coisa � a a��o golpista. A� � processo, julgamento e cadeia.