
Outro dia, quando fui cal�ar uma de minhas botas, percebi que a estampa sobre o couro sint�tico do qual ela � feita est� soltando, esfarinhando, desfazendo a imagem linda de um gato e sua apetitosa refei��o de espinhas de peixe. Acredito que em pouco tempo estar� toda descascada por cima, ao mesmo tempo em que o solado estar� quase todo intacto. Me pus a rir de mim mesma, pois estava provando de meu pr�prio veneno. Algo bastante previs�vel que poderia ter sido evitado, n�o o desgaste natural, mas o desperd�cio.
Na tentativa de faz�-la durar muito, acabei destruindo o que ela tinha a me oferecer. Ou seja, gostava tanto dela que escolhi guard�-la para momentos mais especiais que o especial cotidiano me oferece. N�o quis us�-la e agora n�o terei outra op��o al�m de me desfazer dela. Costumo dizer que aquilo que n�o usamos, n�o temos de fato.
Quando crian�a, meu pai me provocava dizendo, sempre que eu fazia hora para comer algo gostoso que ele me dava: “Cuidado! Poupando deste jeito voc� vai ficar sem”. At� que um dia ele abocanhou minha guloseima e eu fiquei a ver navios, em rios de l�grimas, claro, pois eu n�o perdia a chance de chorar sempre que podia.
Pode parecer maldade, mas ele tentava me mostrar uma realidade. Devemos saber poupar, mas principalmente saber o que e como faz�-lo. E poupar o essencial, pensar no futuro, isso ele soube fazer muito bem, sem abrir m�o de coisas que amava fazer, como praticar esporte, ir ao Minas e viajar. Lembrei-me dele na hora em que percebi que a bota era um caso perdido, perdido por pura mesquinhez minha. Nessa hora, seria meu pai a rir de mim.
Me recordo tamb�m de uma vez em que fui buscar algumas doa��es na casa de uma senhora que falecera. As roupas nos foram entregues para fazer um bazar beneficente. Havia uma bata indiana maravilhosa, original, do final da d�cada de 1960. Parecia sa�da do Festival de Woodstock. Ao retirar o cabide do arm�rio, os ombros da bata se desfizeram como num passe de m�gica.
Era como se a imobilidade a tivesse mantido ali durante d�cadas e o simples movimento de retirar o cabide do lugar deu � pe�a a liberdade que ela tanto desejou. Desfeitos os ombros, ela caiu no ch�o, soltando tudo o que pu�ra, se transformando em poeira, literalmente falando.
Confesso que essa imagem me impressionou muito, a ponto de ser transformada em um par�metro para minha vida. O que justifica eu ter rido tanto de mim mesma e considerar que provei de meu pr�prio veneno atrav�s de minhas botas. Nada como a vida para nos ensinar que podemos esquecer de nos vigiar, mas ela – a vida – nunca se esquece. Est� sempre indicando nossos pr�prios erros atrav�s de coisas que, de t�o simples e sutis, muitas vezes n�o enxergamos.