
Elize Matsunaga saiu para passear em 2019, pouco mais de seis anos depois de presa por ter matado e esquartejado friamente o marido, Marcos, dono da Yoki.
No passeio, que viria a se repetir em dezembro de 2020 junto a outras duas assassinas famosas — Ana Jatob� e Suzane Richthofen — virou s�rie da Netflix que a romantiza como gata borralheira .
Nos EUA, por muito menos, tomaria perp�tua com apenas direito a sol, se tivesse a sorte de n�o ir para a cadeira el�trica. Veja na Netflix o document�rio Mulheres Assassinas, de Piers Morgan.
Ela pegou s� 19 anos e uns quebrados em 2012, reduzidos depois para 16 e poucos, gra�as � dificuldade da acusa��o de convencer sobre as circunst�ncias de premedita��o e a compet�ncia da defesa para contar um conto de fadas em que prevaleceu apenas a vers�o dela.
O j�ri admitiu sua tese em prantos de leg�tima defesa e n�o viu motivo torpe no esquartejamento, j� que ele estava morto mesmo depois do tiro que entrou pela fronte e saiu pela boca.
Alegou que vinha sendo humilhada por um cara que n�o tinha perfil de agressivo, segundo depoimentos de amigos, e apesar do laudo t�cnico comprovar que ela havia atirado de cima para baixo, de perto, em algu�m sem direito de defesa.
Num clima de piedade indiscut�vel, o j�ri tamb�m n�o levou em conta antecedentes de uma personagem fria.
Ca�adora, aprendeu atirar com o marido, que mantinha um arsenal de 33 armas, e a desossar animais abatidos, onde pode ter desenvolvido suas t�cnicas de separar cabe�a e membros de um corpo.
Como o veadinho de cabe�a empalhada na sala, de que tirou o lombinho para um assado com ervas finas.
— Estava uma del�cia — diz.
Mantinha tamb�m uma cobra de estima��o, a Gigi, que lhe divertia na ca�a de um rato indefeso, dentro de uma caixa, num dos v�deos da fase doce lar do casal.
O clima de boa vontade em torno da menina pobre oprimida diante de um macho agressivo que a tra�a se ampliou no document�rio, que omitiu os sinais mais evidentes de frieza e premedita��o, que est� no num document�rio mais t�cnico, Investiga��o Criminal, dispon�vel no Youtube, tamb�m dirigido por uma mulher, Carla Albuquerque.
Comprou uma serra el�trica na v�spera, trocou o cano do rev�lver antes do tiro, decapitou-o ainda vivo, deixou o corpo num quarto fechado entre o desossamento de um membro e outro, para ir dar comida � filha. Tamb�m se passou por ele em mensagem de celular para a fam�lia e mandou a empregada depositar dinheiro em sua conta, de forma a refor�ar as suspeitas de sequestro.
Sendo verdade ou n�o, a sequ�ncia dificultaria o vi�s de romantiza��o que a diretora Eliza Capai acabou empregando, numa tentativa de criar empatia com a personagem, como ela mesmo admitiu em entrevista ao Estad�o.
— Eu queria refletir por que esses crimes ocorrem e como a sociedade e a m�dia lidam com eles. O desafio foi fazer uma edi��o que n�o esbarrasse no sensacionalismo e que tratasse o caso com empatia e curiosidade a fim de entender a viol�ncia de uma forma mais complexa.
Foi com empatia que ela contornou as resist�ncias de Elize a dar o depoimento, em 18 meses de negocia��o conduzidos com a rep�rter investigativa Tha�s Nunes, e criou o clima com uma equipe s� de mulheres que a deixasse � vontade em cena. Visitaram com ela a casa da av� para as cenas inevit�veis de l�grimas.
Diretora de dois document�rios de g�nero, com foco sobretudo em mulheres v�timas da viol�ncia, ela admite que procurou trazer para a s�rie “a discuss�o do machismo na nossa sociedade”.
Seu inc�modo seria a abordagem machista da m�dia e da defesa, que apelariam a seu passado de garoto de programa para desqualific�-la.
Acabou por�m fazendo o contr�rio, ao criminalizar de alguma forma a v�tima indefesa, ainda que tenha se esfor�ado para “ouvir os dois lados”. O advogado da fam�lia admite que o tratamento foi equilibrado, ainda que ressalve algumas das omiss�es.
Artistas — escritores, roteiristas e diretores de cinema e TV — s�o assim mesmo. T�m isso de procurar “o lado humano do personagem”, aprofundar nas suas motiva��es em busca de empatia e entretenimento.
Sendo competente a abordagem, nos encantamos com anti-her�is como o Odorico Paraguassu de O Bem Amado, o Vito Corleone de O Poderoso Chef�o, o Walter White de Breaking Bad.
E nossos artistas, em especial, j� v�m h� algum tempo projetando tudo no mundo sob o prisma da luta de classes, que dificulta bastante - quando n�o deturpa - a compreens�o da realidade.
Como aqui, em que se trata de vida real e de um document�rio que opera, n�o no plano da fic��o, mas da isen��o ou de tentativa dela, at� onde ela � poss�vel. Diretores trabalham com escolhas na montagem, como jornalistas no encaminhamento de fatos e manchetes.
Em obras de fic��o, a manipula��o para encantar � elogio. Em produtos de objetivo jornal�stico, como document�rios, � alto o risco de ser desonesto.
Da forma como ficou, as op��es pol�ticas da diretora acabaram ficando mais importantes que o fato, como sempre ocorre nesses casos.
E tornou menor ou irrelevante a quest�o para mim maior, a de um sistema de leis e judicial lenientes, possivelmente tamb�m influenciado pela luta de classes, que, entre outras coisas, facilita a vida de artistas que querem fazer revolu��o cultural com quem s� deveria ter o direito apenas de tomar sol no p�tio.
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