
Queria conferir a fascinante engenharia de manipula��o do roteiro que faz com que um filme seja mais impactante do que outros. E especular de que forma minhas considera��es podem ajudar jovens como ela a diferenciar fantasia de realidade, fic��o de hist�ria, pol�tica de literatura, milit�ncia de reflex�o.
Carlos Marighella, pol�tico e escritor que optou pela luta armada contra a contemporiza��o de parte de seus companheiros no PCB, � apresentado como o m�rtir que enfrentou a ditadura militar no in�cio de sua fase mais brutal, entre 1968 e 69, a custo de sacrificar carreira, amigos e fam�lia em nome do ideal de salvar a p�tria.
Como nos melhores arrasa-quarteir�o, � a jornada do her�i compelido a sair de sua zona de conforto por uma situa��o injusta e posto diante das piores prova��es at� o fundo do po�o. De onde emergir� at� o cl�max em que ter� que decidir seu destino para um final n�o necessariamente feliz, mas sempre moral.
Tem todas as manhas de roteiro hollywoodiano, com seus pontos de virada nos lugares certos, liberdades po�ticas para ajeitar um pouco a hist�ria e o tempero dos conflitos que levam pessoas como a minha sobrinha �s l�grimas, independente de que tenha ou professe alguma ideologia.
H� o apelo dram�tico da ruptura inevit�vel em nome do ideal com a mulher apaixonada e o filho apaixonante. O lar perfeito a que, como em toda grande hist�ria, tentar� voltar quando j� n�o � mais poss�vel, porque todas as pontes foram implodidas.
Tamb�m como em todo melodrama de cortar os pulsos, carrega a m�o no drama com o filho que ter� que abandonar, em nome de sua seguran�a, depois de momentos id�licos na praia. Ou nas cenas em que este assiste � pris�o truculenta do pai ou o impede de novamente ser preso, quando percebe que o havia atra�do para uma armadilha.
Com algumas das liberdades po�ticas, mal ou bem intencionadas. O filho n�o era mais crian�a (16 anos) no tempo em que o ensina a nadar no filme e n�o assistiu sua pris�o. Armado, ele teria reagido ao cerco final que resultou em duas mortes e uma pessoa ferida, apesar de sozinho, e n�o sido metralhado unilateralmente.
Para acentuar a crueldade do mundo mau (a ditadura militar) contra o her�i idealista, amoroso com a fam�lia, leal com seus camaradas e generoso a ponto de aconselhar casados a desistirem, h� o contraponto indispens�vel do antagonista bruto.
O delegado mau como picapau, que prende, espanca ou mata, jovens, velhos ou padres, na presen�a ou n�o de crian�as, que tamb�m costuma torturar. Sem fam�lia, sem d�vidas, sem generosidade com os colegas tratados a tabefes, sem nuances. Profundo como um pires.
� um filme indiscutivelmente competente, em que tudo funciona redondo, do ritmo ao elenco afiado, num cen�rio de �poca e figurinos cuidadosos, para arrebatar mentes e cora��es em seu projeto pol�tico.
Que � do que se trata, com todos os recursos dram�ticos � disposi��o, de forma a tornar mais eficiente a den�ncia contra a opress�o e a tortura de fato brutal da ditadura militar, no seu per�odo de maior recrudescimento.
Seu pequeno equ�voco como pe�a pol�tica foi ter optado por um ator negro no papel do protagonista, na vida real descendente de um italiano com m�e filha de escravos, mais para branco do que para negro.
N�o haveria problema na op��o se atendesse, como se informou, � vontade de dar o papel a Seu Jorge, arrasador. Mas n�o para fazer apologia de justi�a racial, que n�o estava em quest�o e n�o cabe no prop�sito de den�ncia do filme.
H� um di�logo longo e desnecess�rio, de um dos padres c�mplices, ensinando que Jesus foi embranqui�ado pelos interesses dominadores do Ocidente. Um ap�ndice sem nenhuma rela��o com a luta pol�tica, as rela��es da �poca e a cr�tica da ditadura, a que se prop�e.
Seu grande equ�voco como pe�a dram�tica foi dar o car�ter de vil�o de desenho animado ao delegado malvado, no objetivo de amplificar a maldade para acentuar a injusti�a contra seu her�i martirizado.
Acabou num tom manique�sta de obra para ser assistida e entendida em jardim de inf�ncia, n�o fosse a viol�ncia obrigat�ria, e sem espa�o para d�vidas sobre a natureza pol�tica e militante de suas inten��es art�sticas.
N�o h� problema nisso. H� grandes diretores de fic��o claramente militantes e revisionistas hist�ricos sem medo de parecer parcial, como Oliver Stone, de Platoon, Nascido a 4 de Julho ou JFK, entre tantos outros.
� o caso de Moura, disposto a acrescentar mais uma �s tantas obras de revisionismo do per�odo militar, mais do que revisado em livros, document�rios e muita fic��o de qualidade, mais ou menos no seu mesmo tom de reescrever a biografia de perseguidos pelo regime. Com mais ou menos hero�smo.
(D� para contar em um s� dedo o n�mero de obras dispostas a uma an�lise das raz�es do regime, como "1964 - O Brasil entre Armas e Livros", da Brasil Paralelo, em que se enfatiza que Jo�o Goulart foi derrubado por civis, n�o pelos militares, como informa o filme no letreiro inicial. Os militares embarcaram em seguida.)
Se n�o h� problema, tamb�m � verdade que coloca em perspectiva a sua limita��o de diretor, ex grande ator que deu vida a anti her�is de carne, osso e nuances psicol�gicas, como o Capit�o Nascimento de Tropa de Elite e o Pablo Escobar, de Narcos.
Fosse t�o sofisticado quanto o ator, optaria por um vil�o mais humano no seu filme, a fim de fazer uma aut�psia mais abrangente da ditadura, em que n�o haveria s� bandidos e mocinhos. Mas v�timas em geral de um per�odo obscuro.
� o que tenta por exemplo com mais generosidade O Que � Isso, Companheiro?, de Bruno Barreto, adaptado do livro em que Fernando Gabeira, ex-guerrilheiro e um escritor alguns decib�is mais honesto do que Wagner Moura, faz uma autocr�tica de sua gera��o.
O quanto seria enriquecedor tentar abordar, mesmo que de passagem, as motiva��es dos torturadores, que se sentiam t�o ou mais patriotas que os terroristas. Que tamb�m rezavam, ouviam m�sica ou pensavam nas crian�as, como o de Os Campe�es do Mundo, da grande pe�a teatral do grande comunista Dias Gomes.
Que conjunto de cren�as ou que metabolismo psicol�gico leva pessoas de carne e osso, chefes de fam�lia comuns, �s maiores barbaridades? Como no nazi-facismo, com que ele certamente gostaria de relacionar, como alus�o ao governo Bolsonaro a que tem desancado nas entrevistas.
Obras de alto quilate colocam o protagonista, mas tamb�m o antagonista, no confronto com suas ilus�es. O premiado Sargento Get�lio, de Jo�o Ubaldo Ribeiro (filme de Hermanno Penna com Lima Duarte), � a hist�ria de um capanga honrado que leva preso o advers�rio de seu coronel, at� o meio caminho em que recebe uma contra ordem e se confunde com as raz�es male�veis da pol�tica.
O delegado vivido com igual compet�ncia por Bruno Gagliasso ganharia muito em estatura e efeito denunciante se fosse apanhado em seus conflitos, seus aprendizados, suas ilus�es. Como Moura faz mais ou menos com Marighella, mais para menos, aferrado que est� em coloc�-lo como um idealista sem d�vidas.
Agregaria mais drama e reflex�o de alto quilate sobre a devasta��o moral do regime sobre homens e mulheres decisivos ao destino do pa�s em determinado ponto da hist�ria, no topo ou no p� da pir�mide, do lado de dentro ou de fora do c�rcere, apesar do desenvolvimento material que capitaneava.
Perderia, naturalmente, o tom pol�tico, que � a inten��o primeira do grande ator que estreia na dire��o. Com m�o firme, competente, mas carregada de apelos sentimentais e milit�ncia para, como Marighella, consertar o pa�s � sua imagem e semelhan�a.
Ser� benvindo que fa�a outros, mesmo que seja no tom. H� muitas encruzilhadas cruciais a eviscerar com sua narrativa bem orquestrada de anti her�is na contram�o da hist�ria. Antes e depois do regime militar, nos governos de antes ou depois, de direita ou de esquerda.
Desde que seja minimamente honesto e estejamos atentos para entender suas verdadeiras inten��es e separar verdade de liberdade po�tica para fazer milit�ncia.