
Minha ideia inicial de artigo para este iniciozinho de ano sem assunto — ou de todos os assuntos esgotados — era de que o mundo n�o tem jeito.
Inspirado pelo filme sensa��o da Netflix que andou dando assunto para nove em dez articulistas no fim do ano.
N�o Olhe Para Cima � uma razo�vel met�fora do fim do mundo a partir do cen�rio perverso que constru�mos de polariza��o pol�tica, manipula��o midi�tica e �dio rec�proco.
Que s� tenderia a piorar, em especial nos nossos tr�picos, de crise presente e encomendada entre dois polos pol�ticos que n�o parecem nossa solu��o.
Mas, por�m, contudo, todavia… Navegar pelas retrospectivas e perspectivas abundantes nessa �poca me remeteu a uma ideia que vinha cozinhando a fogo lento na panela efervescente da nossa guerra cultural.
A de que as pessoas est�o concordando em discordar e que opini�es t�o radicalmente avessas sobre o mesmo tema s� podem levar a um equil�brio.
Ou: se cada lado acha que o outro est� errado, ent�o h� uma razo�vel probabilidade de que estejam ambos certos e ao mesmo tempo totalmente equivocados.
Vejamos algumas discord�ncias mais exuberantes no debate p�blico, de jornalistas, intelectuais e militantes, t�o possivelmente certas quanto erradas:
1) A direita chama a Imprensa de lulopetista, enquanto a esquerda est� certa de que � lavajatista e morista quanto aos interesses de seu �dolo.
2) A primeira est� convencida de que o STF protegeu Lula, ao passo que a segunda culpa o tribunal por seu inferno.
3) Uma acha que o Congresso s� atrapalha o governo, a outra que ele est� devidamente comprado para dar sustenta��o eleitoral a Jair Bolsonaro.
4) A Globo � a encarna��o do dem�nio contra o presidente da Rep�blica e, ao mesmo tempo, o dem�nio reencarnado que nunca deu espa�o suficiente a Lula.
5) Para uma, o Mercado Financeiro tem sido canalha como sempre ao dar sustenta��o a um governo insustent�vel. Para a outra, ele j� precificou a inviabilidade da terceira via e a vit�ria de Lula.
Quer dizer que nenhum dos cinco poderes de fato da Rep�blica — Imprensa, STF, Congresso, Globo e Mercado Financeiro — s�o t�o parciais quanto se pinta.
N�o podendo ser enquadrados com seguran�a na parcialidade de um lado, acabam de ser acusados de imparcialidade.
� algo que vai do macro ao micro e que, por isso mesmo, s� faz comprovar que n�o � poss�vel ter uma ideia segura sobre quase nada que se discute atualmente no pa�s. De vacinas a passeios presidenciais e a enchentes.
N�o se tem uma razo�vel seguran�a, por exemplo, sobre o que de fato houve no caso mais tormentoso do notici�rio pol�tico de fim de ano, de suposta recusa do governo brasileiro � oferta de ajuda argentina para os desabrigados na Bahia.
Depois de muito papel e muito pixel gasto numa guerra de vers�es em tese convincentes para colocar Bolsonaro no c�u ou no inferno, foi preciso que um observador externo trouxesse um m�nimo de luz confi�vel ao debate:
— Sinto, como um homem com experi�ncia pol�tica, que est�o distorcendo e interpretando mal a resposta dada pelo governo brasileiro � nossa ajuda. Quando eles simplesmente a agradeceram e disseram que a teriam em conta — disse o embaixador argentino Daniel Scioli.
Na manh� em que escrevo, o notici�rio est� coberto das primeiras vers�es sobre os reais motivos que levaram Bolsonaro a se internar �s pressas em S�o Paulo, para se tratar de um problema intestinal.
Sei que at� o fim da tarde, ele ser� contaminado por outra guerra de vers�es, de forma que, quando o artigo estiver publicado na manh� desta ter�a-feira, j� haver� um consenso seguro sobre a falta de consenso do que realmente aconteceu.
As primeiras vers�es que circulam agora, de obstru��o ou simples intoxica��o alimentar, j� estar�o embaralhadas em v�rias outras de cunho pol�tico e eleitoral.
Como sempre, teorias conspirat�rias recuperando a facada fat�dica que o elegeu junto a an�lises conflitantes de conveni�ncia de como, por quem — e se — ele deve ser examinado, tratado e operado, com reflexos v�rios nas elei��es no futuro do pa�s.
Em boa parte alimentada pelo pr�prio Bolsonaro, que j� tem doutorado com Trump, Steve Bannon e Carlos Bolsonaro em provoca��o midi�tica para se manter na onda. Quando n�o ele, algu�m dele ou da oposi��o se encarrega de provocar.
O que n�o �, por fim, de todo mal. Se nada do que se diz � confi�vel, significa que a situa��o pode n�o ser t�o ruim quanto parece e nem o futuro t�o mal quanto se pinta. Nem t�o bom quanto devem vender os candidatos ou pol�ticos e articulistas engajados.
E todo o desespero que vivemos, diante dos pre�os dos supermercados, do desemprego e da viol�ncia pol�tica, s� � real agora.
Melhor viv�-lo, ao inv�s de comprar mais problemas que ainda vir�o, se � que vir�o. E se � que ser�o do tamanho do meteoro do filme da Netflix.
Como se diz, a cada dia a sua agonia. N�o leve a s�rio o debate p�blico na imprensa e nas redes sociais, n�o.