
Passou em parte da historiografia nacional como traidor do bem, por ter tomado o que seria o lado certo. O da administra��o revolucion�ria que, pelo menos nos primeiros anos, entre 1637 e 1643, sob comando de Maur�cio de Nassau, recuperou a economia e transformou Recife numa metr�pole moderna de ruas largas e limpas, pontes, afluentes despolu�dos, tr�nsito de artistas e cientistas.
Debaixo da opress�o do regime militar, sob censura severa, usaram o anti-hero�smo para questionar a hist�ria oficial, defender a trai��o como causa ("N�o existe pecado do lado debaixo do Equador") e dar curso � ideia de qu�o bom poderia ter sido o Nordeste ou talvez o Brasil se os holandeses o tivessem tomado dos portugueses.
"Um dia este pa�s h� de ser independente. Dos holandeses, dos espanh�is, dos portugueses… Um dia todos os pa�ses poder�o ser independentes, seja l� do que for. Mas isso requer muito traidor. Muito Calabar”.
Ou pelo menos o Nordeste, um quase pa�s de sol calcinante e pouca �gua, poderia ter se dado melhor se tivesse cuidado da pr�pria vida. Entregue a qualquer outro invasor que n�o o do patrimonialismo e da inc�ria dos pol�ticos portugueses e dos seus sucessores brasileiros.
Um de quatro outros, de quatro climas e culturas diferentes que caberiam muito confortavelmente — e certamente com mais efici�ncia — e bem acomodados nesses 8,5 milh�es de quil�metros quadrados, mal aproveitados por uma elite predat�ria desde 1500.
A ideia de que esse gigante bobo e atrasado, amarrado numa administra��o centralizada em 500 anos de tentativas e erros, mais erros que tentativas, me ocorreu na leitura, nesta semana, de duas grandes entrevistas de um dos nossos maiores historiadores vivos, Jos� Murilo de Carvalho.
Autor de um livro entusiasmado com a vis�o de mundo do imperador Pedro II, admite, por�m estar profundamente desanimado com o fracasso das tentativas de desenvolver um projeto de na��o nesses tr�picos, desde a Independ�ncia.
Chega a sugerir que o pa�s talvez estivesse melhor se tivessem dado certo os movimentos separatistas do s�culo XIX, como disse ao jornal portugu�s P�blico:
— � uma pergunta que sempre me fa�o e n�o consigo responder. O que foi melhor? Permanecer esse monstro unido, ou teria sido melhor se separar em v�rios pa�ses? Um fator muito forte da identidade nacional � o tamanho gigante e as riquezas naturais do pa�s, o “motivo ed�nico”. Ter orgulho do Brasil pela Amaz�nia, mas jamais por nossas lutas. Em mat�ria de mem�ria, sofremos um Alzheimer coletivo. A unidade foi uma vantagem? Talvez sim. A l�ngua � uma s�.
S�. Trata o tema de rasp�o e n�o chega a sugerir qualquer tipo de divis�o, como a que me ocorre, a partir desses mesmos movimentos separatistas que pipocaram em diferentes partes, de norte a sul, em torno de 30 anos, em rea��o � Coroa Portuguesa, entre 1817 e 1850.
Tivessem dado certo, ter�amos mais tr�s pa�ses al�m do dominado por Dom Jo�o VI em sua r�pida hospedagem aqui e por seus Pedros I e II: o que corresponderia aos quatro estados que exploraram desde o descobrimento, pela ordem: Bahia, Rio, Minas e S�o Paulo, sem muito interesse pelo restante.
Esse pa�s de praias, cacaueiros, montanhas e cafezais, sim, estaria comemorando seus 200 anos de Independ�ncia nesta quarta-feira (7/9), com ou sem a necrofilia do cora��o in vitro de seu proclamador.
Talvez at� recebendo em festa os presidentes de seus tr�s territ�rios vizinhos ilustres, nascidos de sua costela, nos movimentos de emancipa��o inspirados nos ideais iluministas da Revolu��o Francesa contra o absolutismo e a obriga��o de mandar dinheiro para a Coroa. Tamb�m pela ordem:
1 - O pa�s de Pernambuco ou Olinda, emancipado em pelo menos uma das tr�s guerras internas que travaram contra a Coroa, sob Jo�o VI e os Pedros, por mais de tr�s d�cadas: Revolu��o Pernambucana, Confedera��o do Equador e Revolu��o Praieira.
Mais rica regi�o do pa�s, englobaria o Nordeste a partir de Alagoas at� o Cear�. Tivesse se libertado na primeira tentativa, que eclodiu em 6 de mar�o de 1817, teria comemorado seus 200 anos de independ�ncia em 2017, possivelmente com partes preservadas de seus padres enforcados.
2 - O pa�s da Amaz�nia, expandido a partir das lutas de �ndios, negros e mesti�os das cabanas � beira do rio, os cabanos do movimento conhecido como Cabanagem. Espalhou-se do Par� — onde a not�cia da Independ�ncia de Pedro I sequer chegou num primeiro momento — por Amaz�nia, Amap�, Roraima e Rond�nia.
Seus 200 anos de independ�ncia seriam comemorados a 3 de janeiro de 2035, 200 anos depois do estopim do conflito que durou cinco anos e poderia ter arrastado junto o Acre e o centro-oeste, com quem tem afinidades ecol�gicas, se o ex�rcito da Coroa n�o tivesse dizimado 40% da popula��o do estado l�der, Par�.
3 - O pa�s ou Rep�blica Rio-Grandense abrangeria os estados do Paran�, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a partir da proclama��o da independ�ncia da Rep�blica de S�o Pedro do Rio Grande do Sul, ao cabo das batalhas da chamada Guerra dos Farrapos ou Revolu��o Farroupilha.
Tivesse vencido, os 200 anos de sua emancipa��o seriam comemorados tamb�m em 2035, no 20 de setembro que marcou, tamb�m em 1835, a deflagra��o do movimento que durou ent�o dez anos.
Determinismo retroativo como o que fa�o aqui n�o serve para nada, mas � doce especula��o filos�fica para falar mal do pa�s que nos traiu, a mim e a Murilo de Carvalho, pelo menos. Para refletir que estariam melhores se tivessem que se haver com a pr�pria vida e a pr�pria hist�ria, num espa�o territorial menor e mais administr�vel.
Em que as potencialidades do litoral nordestino, da explora��o econ�mica da floresta amaz�nica e da imigra��o europeia do sul, cada uma no seu quadrado, poderiam ter sido descobertas algumas d�cadas ou s�culos antes, n�o tivessem ficado dependendo das pernas atabalhoadas do distante poder central.
Que nunca foi competente para administrar sequer os quatro estados de origem. Sufocado por suas pr�prias guerras internas — Inconfid�ncia Mineira, Conjura��o Baiana, Conjura��o Fluminense, Revolu��o Constitucionalista — e pela urbaniza��o selvagem que destruiu o ambiente, as cidades, as institui��es.
Murilo de Carvalho diz que desperdi�amos todas as grandes oportunidades de construir um projeto de na��o. A Independ�ncia, a Proclama��o da Rep�blica e a Revolu��o de 30, para ficar nas maiores, foram grandes arranjos de elite para mudar tudo sem mudar nada.
— H� uma sensa��o de fracasso. N�o temos como nos transformar numa grande pot�ncia. Como disse Jos� Bonif�cio, o sonho da Independ�ncia foi que, pelo tamanho e pela popula��o, t�nhamos condi��es de nos transformar num “grande imp�rio”. Mas quem conseguiu? A China. Qual pa�s vindo da tradi��o portuguesa ou espanhola teve �xito? Isso faz com que comecemos a perguntar: o que deu errado?
Anda desalentado com nossa jovem democracia, de apenas 37 anos a contar do final do regime militar, em 1985, que s� teve povo a partir dos anos 50, depois da ditadura do Estado Novo e �s v�speras de outra, a de 1964. Horrorizado em especial com a disparidade que provocamos.
— O que me intriga � que vivemos em uma democracia, as pessoas votam. Mas o produto deste voto � um Congresso, uma elite, med�ocre, preocupada com reelei��o, em conseguir dinheiro, com o financiamento de milh�es para os pleitos, mas n�o se passa legisla��o que afete a desigualdade.
N�o s�. Essa elite sem vis�o de futuro, que sempre administrou mal a fronteira de seus pr�prios gabinetes entupidos de funcion�rios filhos do patrimonialismo, sentada desde sempre em cemit�rios de obras que n�o acabam, se meteu a inspirar Pedro II a expandir as fronteiras do gigant�o a ferro a fogo.
Sempre deu muito errado com as mais distantes, o nordeste e a Amaz�nia, sobretudo, onde todos os governos falharam miseravelmente em proteger os mais pobres e produzir riqueza. E mais ou menos no sul, salvo pela coloniza��o europeia, pela baixa imigra��o interna e, por sorte deles, pouco interesse do poder central.
Foi mal e porca e especialmente no pr�prio terreiro, o eixo central do tri�ngulo Rio, Minas e S�o Paulo, onde sobrevivemos em p�ssima qualidade de vida, numa viol�ncia cotidiana de mal podermos sair �s ruas.
Se nossos imperadores tivessem se consolado em ficar s� por aqui, com menos territ�rio para exercitar sua inapet�ncia, � bem poss�vel que tiv�ssemos melhores condi��es de vida. Nem que fosse, por propor��o obrigat�ria, um congresso bem menor, de metade ou um ter�o do tamanho atual.
J� seria um grande motivo de comemora��o nesta quarta-feira.