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Estado de Minas MATERNIDADE

'Cora��o de m�e, se tivesse Sol no c�u, seria de le�o, com certeza'

Convidada por esta coluna, a cineasta e professora Ursula R�sele reflete acerca da import�ncia da constru��o dos afetos na inf�ncia


10/08/2021 06:00 - atualizado 10/08/2021 11:20

A amizade de Antônio e Clara(foto: Fernanda Oliveira/Divulgação)
A amizade de Ant�nio e Clara (foto: Fernanda Oliveira/Divulga��o)

 
*Texto escrito por Ursula R�sele, convidada especial da coluna desta semana para falar sobre maternidade 
 
Eu era pequena, uns nove, dez anos. Ganhei um kit de detetive, que continha uma lupa azul clara, um pozinho, uma folha para impress�es digitais serem registradas e poderem ser descobertas pelo tal p� m�gico. Peguei uma bolsa de pl�stico grosso, com quadriculados nas cores verde e branca.
 
Cheguei � escola empoderada, em busca de MH, minha melhor amiga na inf�ncia. Juntas descortinamos universos e dividimos o mesmo par de patins. Desc�amos, cada uma com um p�, de m�os dadas, as rampas que conectavam a casa de sua av� � sua. Pass�vamos pela parreira, que tanto abrigou nossos sonhos infantes, e l� ansi�vamos a menarca, planej�vamos festas com m�sicas dos anos 1960 e troc�vamos pap�is de carta.
 
A tal bolsa se tornou nosso segredo. Com ela and�vamos por todos os enormes p�tios daquela escola. Como se guard�ssemos uma identidade secreta, esculpimos os mist�rios que envolveram aquelas long�nquas manh�s, naquela que talvez tenha sido a d�cada mais cringe de todas: 1980.
 
Um dia fomos chamadas � sala da Supervisora, que nos aguardava com um sorriso solene, alto, empostada numa poss�vel roupa com ombreiras e cabelos cuidadosamente penteados para tr�s. Fomos inquiridas, n�o apenas aquela vez, das raz�es pela nossa insist�ncia em ficarmos somente as duas, sem socializar com nossas colegas. N�o sei dizer se aquela foi a primeira vez, mas certamente n�o foi a �nica. In�meras vezes questionaram nossa amizade, nosso ref�gio, os motivos pelos quais n�o partilh�vamos nossas fantasias com mais ningu�m.
 
De detetives a investigadas, como num virar de p�ginas t�pico de um desencanto que nossa tenra idade ainda n�o abarcava. Somos amigas at� hoje. Morei um tempo na Alemanha, e nem mesmo o Oceano Atl�ntico conseguiu nos separar. A vida adulta chegou e com ela uma s�rie de desilus�es. N�o me tornei agente do FBI, pianista, nem jogadora de v�lei.

Mas creio poder dizer que os devaneios que dividimos outrora, ainda encontram pouso em meu cora��o. Hoje sou um tanto de muita coisa, oscilando para l� e para c�. Professora de cinema, escritora, �s voltas com o fazer cinematogr�fico. Ironias do destino, fui me especializar em document�rio, talvez em busca de uma forma alternativa de elaborar minhas utopias.

Esta semana come�ou o segundo semestre na escola de meu filho. Construtivista, conceituada, considerada uma das melhores da cidade. Meio naquele esquema de santo que n�o bate, desde o in�cio, h� cerca de quatro anos, vivo alguns entreveros ali. 
 
Meu filho hoje tem seis anos. ''Tem s� ele?''. ''Sim, e ele � um universo inteiro''. O pequeno foi diagnosticado, h� cerca de tr�s anos, com uma condi��o chamada Transtorno do Processamento Sensorial (TPS). � um quadro no qual, c�rebro e sistema nervoso possuem certas dificuldades em organizar est�mulos. Algo como uma hipersensibilidade sensorial. H� quem julgue ser parte integrante do espectro autista, mas nem todos pacientes diagnosticados com o TPS fazem parte do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).

 Foi um diagn�stico suado, pois apesar de eu ter notado as circunst�ncias de sofrimento dele, no meu entorno todos diziam ser timidez, nada demais, que melhoraria com o tempo. Fato � que usar o liquidificador, o aspirador, furadeiras ou similares era um sufoco. Lev�-lo em anivers�rios se tornava motivo de ang�stia, pois ele temia justamente o t�o esperado ‘parab�ns’, por conta dos ru�dos das palmas e cantorias. Al�m disso, ele vomita com facilidade, tanto quando coloca uma grande quantidade de comida na boca, quanto estranha a textura de algum alimento. 
 

'Meu filho hoje tem seis anos. 'Tem s� ele?'. 'Sim, e ele � um universo inteiro'. O pequeno foi diagnosticado, h� cerca de tr�s anos, com uma condi��o chamada Transtorno do Processamento Sensorial (TPS). � um quadro no qual, c�rebro e sistema nervoso possuem certas dificuldades em organizar est�mulos. Algo como uma hipersensibilidade sensorial. H� quem julgue ser parte integrante do espectro autista, mas nem todos pacientes diagnosticados com o TPS fazem parte do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).'

 
 
Desde a sua adapta��o na escola, vivemos uma s�rie de reuni�es nas quais a narrativa de suas experi�ncias por l� me levavam �s l�grimas, � culpa, ao desejo de retorn�-lo ao meu ventre. Dan�a da festa junina? Um pavor. Brincadeiras ruidosas? Idem. Na primeira devolutiva da escola, em uma reuni�o com dire��o e professora � �poca, depois de ouvirmos uma s�rie de narrativas que pareciam relatar o estorvo que era t�-lo em sala, a diretora, em pleno 8 de mar�o, Dia Internacional da Mulher, chegou � conclus�o de que as dificuldades do pequeno se deviam ao fato de sua “simbiose comigo ser demais”. Ele tinha apenas um ano e oito meses e ainda amamentava. O pai saiu ileso daquela reuni�o.

Ap�s chorar copiosamente por dez dias, pedi uma conversa privada com ela, que admitiu ter sido um fiasco e pediu desculpas. No entanto, o peso daquelas palavras me levou a desmamar meu filho, por medo de atrapalh�-lo a viver o mundo e sua jornada do lado de fora.
 
Nesta semana soubemos que ele havia sido separado de sua melhor amiga. Agora, em tempos de pandemia, n�o d� para todos ficarem na mesma turma, logo, foram separados em bolhas. Um ano e cinco meses de pandemia depois. Depois de terem passado mais de um ano trancafiados em casa, a escola chegou � conclus�o de que os dois, ''encapsulados'' demais, ap�s terem passado pouco mais de dois meses juntos novamente, precisavam ser separados para estimularem a conviv�ncia com outros colegas.
 
Meu intuito n�o � crucificar a escola, que, bem-intencionada (quero crer), agiu num af� pedag�gico de ensin�-lo outras formas de socializa��o. � parte os absurdos ouvidos na recente reuni�o, que incluiu o fato dele sempre separar um lugar para a amiga nas brincadeiras, um n�o desgrudar do outro, e a amiga ter sa�do feliz abra�ada a outra colega no primeiro dia sem ele, quero mesmo � lembrar de Amor, Afeto, Empatia. Assim, com letra mai�scula.

Agosto de 2021. Estando esse texto no presente, creio que tal data dispensa maiores contextualiza��es. Hoje, no dia em que o escrevo, 1099 pessoas faleceram v�timas da COVID-19. 
 
Acordei, preparei o caf�, tomamos. Conversei com ele acerca do que se coloca de agora em diante, o encorajei a aproveitar a oportunidade de vivenciar novas experi�ncias com seus outros colegas, arrumei seu lanche e coloquei um biscoito amanteigado em forma de cora��o – “para que voc� saiba que o cora��o da mam�e est� sempre com voc�”. Ele foi. Calado no carro, olhando para o lado de fora do vidro.
 
Hoje, 1099 pessoas faleceram v�timas da COVID-19. Me recordo das primeiras imagens que circularam em minha rede social (n�o dou conta de mais de uma). Cantos de apartamentos, frestas de janelas, plantas, resqu�cios do sol l� fora. Da clausura, ao convite privilegiado da yoga online, da produ��o caseira de p�es e da medita��o.  
 
 

'Cora��o de m�e, se tivesse Sol no c�u, seria de le�o, com certeza. O instinto que senti ao ouvir as raz�es pela ruptura espacial a que meu filho e sua amiga foram impostos, talvez seja impublic�vel. Que sirva de crescimento, que possa fornecer outras formas de ajud�-lo a enfrentar as cores cinzas que tamb�m o aguardam.'

 
Lembro-me de vislumbrar sairmos melhores desse que tem sido o per�odo mais insano que j� sonhei(amos) viver. O amor ao cinema, apesar de bater forte pelo document�rio, tamb�m me convoca a devaneios ficcionais. As portas reabrindo, o retorno dos abra�os, podermos ressignificar tudo aquilo que deix�vamos para tr�s, no intuito de evitar lam�rias em nossos epit�fios.

Cora��o de m�e, se tivesse Sol no c�u, seria de le�o, com certeza. O instinto que senti ao ouvir as raz�es pela ruptura espacial a que meu filho e sua amiga foram impostos, talvez seja impublic�vel. Que sirva de crescimento, que possa fornecer outras formas de ajud�-lo a enfrentar as cores cinzas que tamb�m o aguardam.
 
Fico aqui com meus alfarr�bios, pensando nesse mundo que criamos. Fomos de n�o soltar as m�os de ningu�m a sequer poder toc�-las. E nem mesmo nesse protocolar retorno a um vislumbre do que j� fomos, conseguimos vislumbrar a grandeza de um afeto que se constr�i na inf�ncia

Hoje a m�e de outro coleguinha dele me acolheu e contou que seu filho disse a ela estar triste pelo meu. Mas que ele e outras duas coleguinhas ficariam perto dele, para que se sentisse melhor. Chorei alto. E l� no fundo, empurrando para o lado o ego que estava me consumindo, agradeci por ainda haver no mundo sementes de um amanh� melhor.
 

'Hoje a m�e de outro coleguinha dele me acolheu e contou que seu filho disse a ela estar triste pelo meu. Mas que ele e outras duas coleguinhas ficariam perto dele, para que se sentisse melhor. Chorei alto. E l� no fundo, empurrando para o lado o ego que estava me consumindo, agradeci por ainda haver no mundo sementes de um amanh� melhor.'

 
 
Tenho sentido medo de a pandemia n�o acabar, sabem? Principalmente quando vejo na secura de alguns olhos, que o que se apresenta no horizonte, � que a pandemia, meus amigos... somos n�s.

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