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Estado de Minas DIVERSIDADE

A mulher limpa e o ide�rio de beleza das mulheres

''A limpeza vem sempre atrelada a uma ideia de bondade, de aceita��o, de obedi�ncia''


27/07/2021 04:00 - atualizado 26/07/2021 16:55

''O ideário de beleza das mulheres há muito é composto pela alternância de padrões, que seguem a cartilha do objeto de desejo''(foto: Freepik)
''O ide�rio de beleza das mulheres h� muito � composto pela altern�ncia de padr�es, que seguem a cartilha do objeto de desejo'' (foto: Freepik)

Esses dias eu estava relendo “Um �tero � do tamanho de um punho”, da Ang�lica Freitas, um dos meus livros favoritos. Tudo ali � maravilhoso; desafia nossa percep��o po�tica, revira nossas ang�stias, afaga, aperta e d�i. O poema de abertura come�a assim: “porque uma mulher boa/� uma mulher limpa/e se ela � uma mulher limpa/ela � uma mulher boa”. Como uma pequena explos�o de sentidos, esses quatro versos nos dizem de toda uma constru��o social sobre a m�tica da limpeza da mulher, desde a mais cotidiana e tomada como natural, at� as suas met�foras mais sofisticadas.

O ide�rio de beleza das mulheres h� muito � composto pela altern�ncia de padr�es, que seguem a cartilha do objeto de desejo: alva, pura, sem pelos, sem imperfei��es, delicada, limpa. Desde muito cedo os cuidados com o que chamamos, indiscriminadamente, de higiene pessoal � uma tarefa rigorosa para as mulheres; come�a pelo sangue menstrual, uma m�cula vermelha que precisa ser contida e escondida.

Em seguida v�m os pelos, que devem ser aparados, retirados, camuflados. Ao menor sinal da sua presen�a, a tal feminilidade parece estar irremediavelmente perdida. O pelo � um marcador masculino e, como tal, uma propriedade privada e intransfer�vel. N�o tardam em chegar as demandas pelas corre��es na pele, as espinhas disfar�adas pela maquiagem, o rosto impec�vel, festivo.

Descendo um pouco mais nos nossos corpos-recept�culos, � preciso impedir que as celulites se proliferem lan�ando m�o de procedimentos que tapem todos os nossos furos. As estrias na barriga e nos seios tamb�m devem ser combatidas – desde cedo, dizem eles – e essa � uma luta dif�cil. Tem laser, tem creme, tem medo de engordar, de engravidar, de contribuir para que um novo risco avermelhado invada um peda�o de pele.

Se a escolha � por engravidar, a exig�ncia � perseguir a ilus�o do corpo de antes. N�o engorde muito, para perder o peso bem depressa. N�o fique desleixada com sua apar�ncia, porque ningu�m gosta de mulher assim. E por falar em desleixo, tem tamb�m o cabelo sempre muito bem pintado, os fios brancos que devem ser imediatamente cobertos porque cabelo grisalho � descuido, al�m de n�o ser coisa de mulher jovem. Envelhecer � s� mais um direito nos foi negado. 

Existe uma regra muito s�lida sobre como uma mulher deve ser e se apresentar social e intimamente. Essa solidez � t�o grande que vai tomando a forma de escolhas, nas quais acreditamos porque atribu�mos a elas uma ideia de liberdade. 

Eu mesma fa�o afirma��es categ�ricas sobre o tema. Falo que me depilo porque acho mais bonito, mas que n�o teria problemas em manter meus pelos. Mas raramente os mantenho publicamente, porque eles ainda me atingem na imagem que tenho de mim. Na imagem que as pessoas teriam de mim.

Essa escolha supostamente calcada na minha liberdade de usar o que acho mais bonito nasce de uma beleza ancorada num ideal que pouco nos pertence e que foi constitu�do numa cultura centrada no masculino e no que � desej�vel por eles. Numa sociedade em que homens n�o podem desejar homens, seria impens�vel que eles desejassem pelos e cabelos curtos, por exemplo. 

� doloroso constatar, cotidianamente, que a minha aceita��o de v�rios aspectos do meu corpo foi condicionada � aceita��o de outras pessoas, principalmente dos meus parceiros. H� pouco eu estava lendo um texto da Ana Soares (do blog e perfil “Moda p� no ch�o”) sobre a tristeza que ela sentiu ao s� tomar coragem de usar seus cabelos grisalhos quando foi incentivada pelo companheiro.

Um incentivo que veio atrelado ao elogio que passamos uma vida aprendendo a ansiar: voc� vai ficar linda e eu vou permanecer. Depilar era uma quest�o inegoci�vel para mim at� encontrar um parceiro que n�o se importava com a presen�a dos pelos. Minha escolha foi validada pelo olhar do outro e s� ent�o ela se confirmou enquanto possibilidade para mim.

� assim que a m�quina violenta das submiss�es cotidianas opera, condicionando nossos corpos e vontades a uma maneira certa de existir. Afinal de contas, ainda somos colocadas em estado de competi��o constante, onde o cabelo mais bonito (e mais comprido) larga na frente, a perna mais lisa, o corpo mais esbelto, a unha mais bem cuidada. 

E existe um agravante: v�rias dessas escolhas for�adas nos s�o apresentadas com o r�tulo sedutor do autocuidado. Cuidar de si, hoje, numa sociedade capitalista patriarcal de supremacia branca, � ainda manter-se limpa. 

A limpeza vem sempre atrelada a uma ideia de bondade, de aceita��o, de obedi�ncia. “Porque uma mulher boa � uma mulher limpa”. N�o � de se espantar que as ofensas mais contumazes contra ativistas do movimento feminista sejam a de que s�o peludas, sujas, anti-higi�nicas (e por uma conclus�o direta, mal-amadas). Essa sociedade n�o ama as mulheres imperfeitas. N�o ama as mulheres inquietas, desejantes e bravas. N�o ama mulher nenhuma, sabemos. Mas at� o �dio tem seus m�todos. 

“Uma mulher s�bria/� uma mulher limpa/uma mulher �bria/ � uma mulher suja”, segue o poema de Ang�lica. A met�fora da limpeza ultrapassa os aspectos est�ticos e des�gua nos comportamentos esperados de uma mulher. Higienizadas, somos esse conjunto habitacional de reboco igual. Control�vel, previs�vel e de f�cil manuten��o. Qualquer movimento que nos espalhe para al�m das margens erguidas j� representa um in�cio de ruptura.

Pode parecer pouco – e talvez seja mesmo – mas existem as mudan�as cotidianas que importam. Aquelas que ultrapassam o bem-estar individual e impactam a maneira como trafegamos pela vida, mais confort�veis em existirmos dentro de corpos que reflitam o que somos e como desejamos ser. N�o acho que isso seja ainda a liberdade de que tanto falamos, mas � certamente um caminho para fazermos escolhas reais, poss�veis e transformadoras.

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