
A intelig�ncia artificial (IA) est� mudando o paradigma da sa�de. De acordo com o estudo “Intelig�ncia artificial em sa�de: passado, presente e futuro”, publicado no BMJ Journals, do Reino Unido, uma das mais influentes e conceituadas publica��es sobre medicina no mundo, as principais �reas de doen�as que usam ferramentas de IA incluem cardiologia, oncologia e neurologia. As tr�s especialidades s�o as principais causas de morte, portanto, diagn�sticos precoces s�o cruciais para mudar o estilo de vida e prevenir a piora do estado de sa�de. Como a intelig�ncia artificial visa imitar as fun��es cognitivas humanas usando dados e algoritmos, ou seja, sequ�ncias de c�lculos matem�ticos para fornecer aos profissionais da sa�de novos pontos de visita em tratamentos e solucionar grandes desafios, � fato afirmar que a tecnologia revoluciona a maneira de aplicar a sa�de. Hoje, j� � poss�vel apontar quando um paciente est� ficando doente mesmo antes do aparecimento de sintomas, viabilizando assim um atendimento individualizado e preventivo. Assustador e maravilhoso ao mesmo tempo. Imagina se o m�dico puder prever uma parada card�aca a tempo de tomar provid�ncias para evitar que ela ocorra? Pesquisadores e especialistas dizem que, no futuro, a tend�ncia � que a IA possa ajudar a diagnosticar mais cedo doen�as dif�ceis de detectar apenas por meio de pesquisas que as pessoas fazem na web. O cardiologista Marcus Vin�cius Bol�var Malachias, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), professor da Faculdade de Ci�ncias M�dicas de Minas Gerais e atual cientista visitante no Brigham and Women’s Hospital – Harvard Medical School, nos Estados Unidos, concedeu entrevista ao Estado de Minas para falar dos avan�os da intelig�ncia artificial em algumas �reas da cardiologia. Confira:
Como a IA � usada para melhorar a sa�de cardiovascular?
O maior avan�o tem sido no aprofundamento do conhecimento sobre o funcionamento do sistema cardiovascular e da g�nese de suas doen�as para o desenvolvimento de novas possibilidades de tratamento. Para isso, em medicina, tem sido muito empregado um ramo da computa��o conhecido como machine learning (ML), que, em vez de simplesmente seguir regras e padr�es de grandes conjuntos de dados, � capaz de realizar racioc�nios dedutivos. Dados armazenados e analisados em IA podem gerar modelos de cora��es e vasos sangu�neos normais ou doentes, modelar animais com defeitos gen�ticos similares aos que ocorrem em humanos e, a partir da�, criar prot�tipos de equipamentos e medicamentos “candidatos” ao tratamento.
Em que medida a IA aumenta e estende a efic�cia do cardiologista?
A tecnologia est� modificando todos os aspectos das nossas vidas. Na medicina – e em especial em algumas �reas, como a cardiologia, a oncologia, a imagenologia, entre outras –, vivemos uma verdadeira revolu��o. De uma maneira objetiva, o uso da IA em sa�de possibilitaria armazenar, analisar e utilizar uma quantidade infinita de dados, sejam eles sobre o conhecimento cient�fico acumulado ou simplesmente sinais, sintomas e exames de pacientes, para simular o racioc�nio humano e nos ajudar na tomada de decis�es.
Em quais tratamentos cardiol�gicos a IA e a machine learning est�o presentes?
V�rios dos novos tratamentos em cardiologia foram desenvolvidos usando uma parcela menor ou maior de IA, ML, como os novos medicamentos biol�gicos para doen�as raras e graves, os novos anticoagulantes orais, os redutores do colesterol de �ltima gera��o, os modernos marcapassos e desfibriladores, novas pr�teses e clips para tratamento das doen�as valvares card�acas, al�m de centenas de equipamentos e programas para diagn�stico.
Exames como ecocardiogramas, varreduras do CT, entre outros, evolu�ram com a IA. Quais os benef�cios?
Essa � uma �rea em que se t�m constatado grandes avan�os. Os grandes fabricantes de equipamentos diagn�sticos t�m armazenado h� anos milh�es de registros de pacientes reais de forma que, hipoteticamente, poderiam disponibilizar sugest�es de laudos automaticamente. Em muitas condi��es envolvendo situa��es raras, diagn�sticos dif�ceis e altera��es anat�micas, por exemplo, padr�es armazenados em big data poderiam auxiliar o m�dico a emitir o seu parecer. A tecnologia pode tamb�m facilitar que a imagem seja transmitida a diferentes centros do mundo para que seja analisada a dist�ncia. Em centros desprovidos de recursos, um m�dico n�o especialista poderia receber assist�ncia por telemedicina. Apesar de poss�veis, esses recursos s�o alvo de acaloradas discuss�es �ticas e t�m sido empregados ainda em pequena escala.
"Acredito que o m�dico atual deve buscar o mais alto grau de conhecimento, habilidade em utilizar os modernos recursos tecnol�gicos e a mais ampla rede de acesso � informa��o, mas preservar o humanismo, a cordialidade e o bem-querer aos pacientes da medicina tradicional"
Doen�as cardiovasculares s�o as que mais matam. A IA � uma aliada que pode reverter ou contribuir para a mudan�a desse quadro?
Grandes bancos de dados, como o Biobank, no Reino Unido, com registros de estudos cl�nicos financiados pelo Instituto Nacional de Sa�de dos EUA (NIH), al�m de registros de sa�de p�blica de alguns outros pa�ses, t�m sido ofertados � comunidade cient�fica internacional para que fa�am pesquisas que possam ajudar a salvar vidas. Estudos gerados a partir desses dados t�m sido muito �teis para avaliar as condi��es da popula��o na vida real, quantificar fatores geradores de doen�a e a efic�cia de tratamentos. No Brasil, o Datasus (departamento de inform�tica do SUS) e outras plataformas do Minist�rio da Sa�de (MS) t�m sido importante fonte para os pesquisadores, sobretudo no tocante aos dados de mortalidade e interna��es pelo SUS. Na sa�de complementar, a maioria das cooperativas e planos de sa�de t�m investido fortemente em sistemas de computa��o, principalmente na tentativa de otimizar custos, gerenciar a efetividade da assist�ncia e na implanta��o de pagamento por performance. Assim, mais conhecimento e melhor assist�ncia podem determinar mais vidas salvas.
A IA � uma aliada ou h� o risco de, no futuro, o paciente ser operado apenas por um rob�?
Rob�s-cirurgi�es j� s�o uma realidade, mas operados por m�os humanas, como � o caso do equipamento Da Vinci, presente j� em Belo Horizonte e em v�rias cidades brasileiras, mas ainda muito pouco utilizado em cirurgias card�acas. O Jap�o e a China j� usam rob�s aut�nomos para atividades repetitivas de m�dicos e enfermeiros, como coleta e an�lise de dados pessoais, monitoramento a dist�ncia etc. Sistemas como o Siri, da Apple, e o Alexa, da Amazon, entre outros, s�o capazes de coletar e processar informa��es por comandos de voz, reduzindo o tempo gasto na anamnese e permitindo que a equipe m�dica possa otimizar o atendimento com �nfase no racioc�nio cl�nico. A IA pode ainda ajudar a fornecer possibilidades de diagn�stico e sugest�es de tratamento para a tomada de decis�o. Medidas como essas podem ampliar a capacidade de atendimento das unidades de sa�de e hospitais, al�m de aumentar a assertividade das medidas adotadas. Mas, sinceramente, n�o acredito que isso seja um modelo adequado ao Brasil no momento. Por aqui, mais da metade dos pacientes n�o toma os medicamentos prescritos em receitas, por diferentes raz�es, muitos fazem exames e nem sequer buscam os resultados, � grande o n�o comparecimento �s consultas e controles agendados e � baixa a ades�o aos cuidados b�sicos, como alimenta��o saud�vel e atividade f�sica regular. Imagine se o atendimento fosse realizado por rob�s!
Toda essa tecnologia � respons�vel pelos elevados custos da medicina moderna?
A tecnologia tem elevado custo, mas, ao mesmo tempo, representa uma atraente alternativa para melhor equilibrar o custo e a efetividade na sa�de. Para cada novo medicamento ou equipamento, estima-se que haja a necessidade de um investimento de US$ 150 milh�es a US$ 500 milh�es para a realiza��o de todos os testes at� a sua aprova��o pelas ag�ncias reguladoras. Isso faz com que os novos medicamentos tenham elevado custo para fazer jus ao investimento e gerar lucros aos acionistas, tendo em vista que em alguns anos vencer� a patente do produto. Al�m disso, em muitos casos, as ind�strias investem e o produto n�o se revela eficaz ou os poss�veis efeitos adversos n�o compensam a sua utiliza��o. Atualmente, com o uso de IA e ML � poss�vel simular v�rias das etapas dessa pesquisa e avaliar as chances de sucesso do novo produto para assim minorar os riscos do investimento. O mesmo racioc�nio se aplica a hospitais, cl�nicas, e sistemas de sa�de, onde o investimento inicial em tecnologia dever� se reverter em menor custo no futuro.
Se a IA � um caminho sem volta em todas as �reas, ao invadir a sa�de ela pelo menos ser� acess�vel a todos? Chegar� aos SUS, por exemplo? Ou mais uma vez teremos milh�es de exclu�dos?
Na medicina, assim como em todas as �reas, existem muitos Brasis. Se por um lado temos universidades e hospitais de ponta, m�dicos e cientistas de n�vel internacional e uma profus�o de equipamentos de �ltima gera��o em servi�os de refer�ncia, ainda convivemos com �reas de total car�ncia de recursos b�sicos. Escrevi recentemente um editorial para uma revista cient�fica internacional em que destaquei dados da Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS) que revelam que a pobreza e o baixo n�vel educacional s�o os maiores fatores de risco para todos os tipos de doen�as. Sistemas computacionais t�m sido empregados para melhor analisar a desigualdade social e propor solu��es. Mas um maior equil�brio social � condi��o b�sica para uma sa�de mais igualit�ria. A tecnologia n�o deve ser responsabilizada pelo desequil�brio social e seus reflexos na sa�de.
Quais quest�es �ticas s�o levantadas ao se tratar da rela��o IA e a medicina?
Muitos m�dicos argumentam que o uso da tecnologia configura uma quebra do juramento de fazer o seu melhor para o bem-estar de seus pacientes. A discuss�o � que o paciente ser� deixado sob os cuidados mais das m�quinas do que dos doutores...
Essa tem sido uma discuss�o ainda sem um veredito final. O direito � privacidade de dados pessoais � inquestion�vel. N�o existe consenso sobre como conciliar esse direito em tempos de big data. N�o se pode garantir a seguran�a plena em arquivos eletr�nicos, mesmo com dados criptografados. H� sempre a possibilidade de que empresas de servi�os em sa�de, seguradoras e hackers possam se valer de dados de pacientes contra os mesmos. Mesmo assim, uma pesquisa que avaliou 12 mil pessoas de 12 diferentes pa�ses (o Brasil n�o foi inclu�do) indicou que 54% dos entrevistados aceitariam receber atendimento de sa�de por um rob� com IA. Curiosamente, nos pa�ses mais pobres a aceita��o foi maior, de forma que 94% dos entrevistados da Nig�ria, 85% da Turquia, 41% da Alemanha e 39% da Inglaterra se mostraram dispostos a responder �s quest�es de sa�de, realizar exames, receber diagn�sticos e at� tratamentos via rob�s e IA. M�dicos s�o humanos sujeitos a erros. Rob�s s�o m�quinas e, apesar de poder armazenar infinitos dados, analis�-los e fazer racioc�nios dedutivos, est�o sujeitos a erros. Acredito que o melhor ser� utilizar rob�s e a IA como suportes � equipe de sa�de.
Como o m�dico deve lidar com a tecnologia na sa�de justamente quando, nos �ltimos anos, o debate girava em torno do resgate mais pr�ximo e humanizado da rela��o m�dico-paciente? A presen�a da m�quina n�o far� essa rela��o ficar ainda mais fria e distante?
Acredito que o m�dico atual deve buscar o mais alto grau de conhecimento, habilidade em utilizar os modernos recursos tecnol�gicos e a mais ampla rede de acesso � informa��o, mas preservar o humanismo, a cordialidade e o bem-querer aos pacientes da medicina tradicional. Mais que nunca, o m�dico atual deve trabalhar em equipe, conectado a outros especialistas, outros profissionais de sa�de e a bons hospitais, cl�nicas e centros de ensino e pesquisa. Por tudo isso, a medicina � muito mais que uma profiss�o. � tamb�m uma ci�ncia e uma arte.