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Estado de Minas Assim caminha a humanidade

Vaidade e rela��es superficiais mostradas em Coringa remetem aos dias de hoje

Atualmente impera a exposi��o da felicidade e do sucesso nas redes sociais, mesmo que n�o sejam verdadeiros


17/02/2020 11:00 - atualizado 17/02/2020 11:34

Cena do filme Coringa, estrelado por Joaquin Phoenix: no lado iluminado do personagem, o palhaço Happy busca fama, uma crítica à espetacularização da vida privada (foto: Divulgação)
Cena do filme Coringa, estrelado por Joaquin Phoenix: no lado iluminado do personagem, o palha�o Happy busca fama, uma cr�tica � espetaculariza��o da vida privada (foto: Divulga��o)
O filme Coringa mexeu tanto com Renata Feldman, psic�loga e psicoterapeuta humanista, escritora, palestrante e professora, que ela o assistiu duas vezes, tamanha as provoca��es. Em sua interpreta��o, a profissional come�a explicando que o ser humano � multifacetado, “h� uma pluralidade que nos atravessa”. Assim, no complexo processo de existir, o homem olha para si, se enxerga, muitas vezes n�o se reconhece, n�o se compreende. Olha para o mundo, interage com o outro, busca refer�ncias, almeja chegar a algum lugar, mas muitas vezes se perde no caminho. A cl�ssica e atual pergunta “quem sou eu?” remonta � Gr�cia Antiga e �s pondera��es de S�crates (470-399 a.C.), que atribu�a � autoan�lise e ao autoconhecimento uma vida genuinamente feliz. Segundo o fil�sofo, “uma vida irrefletida n�o vale a pena ser vivida”.

Para Renata Feldman, o personagem Coringa, estrelado pelo ator Joaquin Phoenix, vivia, refletia, ria, delirava, sonhava, agia e interagia lan�ado � sua condi��o existencial permeada de dor. “Assim tamb�m caminha a humanidade: cada indiv�duo com a sua hist�ria, passado, travessia, emo��es, idiossincrasias e m�scaras. S�o elas que nos 'apresentam' ao mundo, estabelecendo uma forma de exposi��o e intera��o social a partir dos pap�is que exercemos. A m�scara – ou persona, como denominou Carl Jung em sua psicologia anal�tica –, nos caracteriza e nos representa perante a alteridade por meio da imagem que transmitimos e da nossa forma de reagir ao mundo.”

(foto: Divulgação)
(foto: Divulga��o)

Ao tentar responder sobre si mesmo a “quem sou eu?”, o homem, destaca Renata Feldman, esbarra no outro – n�o s� nas suas rela��es atuais como tamb�m nas ra�zes que o constituem. “E � a� que muitas vezes ele sente a necessidade de intensificar o uso de suas m�scaras, buscando ser inclu�do, aceito e amado pelo outro. Ou buscando apenas se proteger, lan�ando m�o de mecanismos de defesa e jogos sociais que o coloquem – mesmo que ilusoriamente – numa situa��o favor�vel diante da vida.”

"Mulheres vivem conflitos e ambival�ncias ao exercer o seu papel de m�e: sentem alegria, felicidade, realiza��o, mas tamb�m culpa, ansiedade, esgotamento, frustra��o" - Renata Feldman, psic�loga e psicoterapeuta, escritora, palestrante e professora (foto: Ed�sio Ferreira/EM/D.A Press)
 
Renata Feldman conta que no livro O lado sombrio dos buscadores da luz, Debbie Ford aborda o ser humano em sua totalidade, convidando o leitor a reconhecer os aspectos negativos que costumam negar ou esconder. “Nesses tempos virtuais, em que impera uma certa espetaculariza��o do eu, as redes sociais parecem multiplicar faces como a do palha�o Happy, o lado 'iluminado' do Coringa, que se agarrava � alegria, ao sucesso, ao sonho de obter fama e reconhecimento. Por meio da telinha, a felicidade se exp�e infal�vel e certeira, envaidecida pelo n�mero de likes e visualiza��es, contrastando muitas vezes com o lado sombrio de uma tristeza genu�na, real, mas que n�o � publicada. Assim como o palha�o Happy, as pessoas sonham com fama, sucesso, reconhecimento e a pr�pria promessa de felicidade – e parecem encontrar na internet um caminho r�pido, instant�neo – ainda que muitas vezes artificial”.

Pluralidade humana

Na vis�o da psic�loga, a m�scara do Coringa aciona o lado sombrio de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), acarretando-lhe fama e repercuss�o por meio de outros meios. “Da� parece advir uma outra forma de realiza��o, impulsionada pela for�a do coletivo e evidenciada neste pensamento dele: ‘Durante toda a minha vida eu nem sabia se eu realmente existia. Mas eu existo, sim. E as pessoas est�o come�ando a perceber’. A vida real tamb�m contempla outras formas antag�nicas de existir envolvendo a pluralidade humana”. Em sua pesquisa de mestrado, intitulada “As v�rias faces da m�e contempor�nea”, a especialista mostrou uma realidade contrastante com a imagem romantizada da maternidade, em que as m�es s�o tidas como santas ou hero�nas.
 
“A pesquisa mostrou (e minha pr�tica na cl�nica confirma) que elas vivem conflitos e ambival�ncias ao exercer o seu papel de m�e: sentem alegria, felicidade, realiza��o, mas tamb�m culpa, ansiedade, esgotamento, frustra��o”, diz.

No fim, a quest�o �: como manter a sanidade, a verdade, a ess�ncia ainda que m�scaras sejam inevit�veis?. Para Renata Feldman, “a busca do autoconhecimento gera reflex�o, crescimento e fortalecimento emocional. Ao olhar para dentro, o sujeito arranca as m�scaras e se liberta do olhar do outro, encontrando o que h� de mais genu�no em si. Descobre que pode desfrutar da liberdade e autonomia de ser quem se �, buscando uma vida plena e aut�ntica. Foi isso o que o fil�sofo Kiekergaard (1813-1855) – pai do Existencialismo – prop�s ao pensar essa autenticidade que nos tira do desespero: a coragem de sermos quem verdadeiramente somos. Ou, nas palavras do poeta grego P�ndaro, repetidas por Nietzsche: ‘Torna-te quem tu �s’”.
 
Vil�o ou her�i?

“Fui ver Coringa, de Toddy Phillips, e sa� do cinema com a sensa��o de um soco no est�mago, gosto amargo na boca e um turbilh�o de pensamentos”. A declara��o � de Gilda Paoliello, psiquiatra, psicanalista e professora do curso de p�s-gradua��o em psiquiatria do Ipemed. “O filme � estranho. Um estranho bastante familiar, que  prende voc� em um emaranhado de sentimentos confusos. Ainda mais perturbador quando nos pegamos sentindo empatia pelo vil�o. Ou her�i? Esta ambival�ncia e dualidade nos provoca todo o tempo. � um paradoxo, seu sentido � inesgot�vel.”
 
O filme descreve a saga do doce e sonhador Arthur Fleck, que se ocupa em cuidar da m�e doente, se transformando no monstro Coringa (spoiler!), seu pr�prio assassino. O que provoca essa metamorfose? “Parodiando Bertolt Brecht, podemos dizer que h� muitas maneiras de matar, mas tamb�m de enlouquecer uma pessoa – ‘cravando um punhal, tirando o p�o, n�o tratando sua doen�a, condenando-a � mis�ria, fazendo-a trabalhar at� arrebentar, impelindo-a ao suic�dio, enviando-a para a guerra etc. S� a primeira � proibida por nosso Estado’. Esse pensamento brechtiano nos permite refletir sobre a responsabilidade da sociedade em rela��o � transforma��o do doce Fleck no monstro assassino, tornando essa monstruosidade n�o apenas justific�vel, mas at� perdo�vel”, chama a aten��o a psiquiatra.
 
Para Gilda Paoliello, psiquiatra e psicanalista, as pessoas usam máscaras risonhas nas redes, sonhando em ser reconhecidos, sob imagens fakes (foto: Marcilio Nicolau/Divulgação)
Para Gilda Paoliello, psiquiatra e psicanalista, as pessoas usam m�scaras risonhas nas redes, sonhando em ser reconhecidos, sob imagens fakes (foto: Marcilio Nicolau/Divulga��o)
“Logo no come�o, o filme denuncia que o servi�o social no qual o futuro Coringa se tratava de seus estranhos problemas mentais teve a verba cortada e sua terapeuta � desligada. Ele, portanto, perde a terapia e os rem�dios que recebia gratuitamente. Situa��o bastante familiar, n�o?”, alerta Gilda Paoliello. “Ent�o, a hist�ria � universal e atemporal, poderia estar em qualquer lugar, em qualquer tempo. Por qu�? Porque desvela o que h� de mais oculto em n�s, sob a 'covardia da consci�ncia', como nos diz Shahespeare, em Hamlet – ‘Desta arte o natural frescor de nossa resolu��o definha sob a m�scara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante dessas reflex�es, e at� o nome de a��o perdem’...’ser ou n�o ser, eis a quest�o’. Essa ang�stia da d�vida parece n�o afetar o personagem – que em sua transforma��o marcha decididamente para subverter a ordem –, mas sim a n�s, espectadores, que j� n�o sabemos mais onde est� o certo e o errado, o bem e o mal.”

INSTAGRAM
 
Para a psiquiatra, o Coringa aponta tamb�m uma outra face do adoecimento do mundo atual – a cruel imposi��o superego�sta adotada pela sociedade capitalista do “be happy”: “Todos com m�scaras risonhas nas redes, sonhando ser reconhecidos, sob imagens fakes, no mundo dos instragramers, enquanto as m�dias sociais catalisam e proliferam este apodrecimento de uma sociedade que se alimenta de valores rasos, toscos. N�o percebendo que quem ela ataca � espelho dela pr�pria.”

(foto: Arquivo Pessoal)
(foto: Arquivo Pessoal)
Palavra de especialista
 
Marcelo Seabra, jornalista, cr�tico de cinema e criador do blog O Pipoqueiro, hospedado no Portal UAI

“Ele n�o � apenas uma v�tima da sociedade. J� havia uma sementinha l� dentro”

“Em uma das hist�rias fundamentais com o Coringa nos quadrinhos, ele defende a teoria de que todos n�s estamos a um dia ruim da loucura. Ou seja: basta ocorrer algo bem tr�gico para um sujeito normal virar um criminoso degenerado. E ele n�o consegue provar esse ponto, mostrando que o louco � de fato ele. E � isto que o filme faz: Arthur, o protagonista, sofre diversos abusos, ningu�m se importa com ele e tudo o mais. Mas ele � insano. Ele n�o � apenas uma v�tima da sociedade. J� havia uma sementinha l� dentro, ele n�o  simplesmente perdeu a sanidade. A� est� a diferen�a entre esse e outros filmes ditos 'de origem', como fizeram com outros vil�es e decepcionaram todos. Arthur n�o era um bonzinho que se perdeu. Ele fez maldades e gostou, e as seguiu fazendo. A genialidade de Joaquin Phoenix grita no filme. J� hav�amos visto grandes trabalhos do ator, mas aqui ele chega em uma maturidade, ele explora o psicol�gico e o f�sico, ele constr�i um personagem completo. Acredito 100% que muito do que vemos na tela n�o estava previsto. Surgiu do trabalho do ator. Ele mostra que Arthur era uma pessoa diferenciada, e no mau sentido. Todos temos m�scaras, agimos e reagimos de formas diferentes em ambientes diversos. Mas isso n�o significa que a sociedade seja formada por psicopatas. O caso de Arthur � bem diferente.”


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