
O toque, o cheiro e a imagem s�o diferentes. H� texturas, camadas. E para al�m do objeto f�sico, h� toda uma carga emocional e sentimental que faz da carta manuscrita um meio de comunica��o que eleva as palavras a outra dimens�o. Para lugares particulares e individuais que mexem e transformam remetentes e destinat�rios. N�o se limita � an�lise do lugar-comum e repetitivo do saudosismo, tradi��o, do antiquado ou ultrapassado. Se por um lado � resgate, reviver, o importante � que, independentemente da �poca, � sinal de afirma��o do que mais interessa � viv�ncia do homem: a troca social humanizada.
A carta manuscrita tem singularidades incompar�veis. Sempre ir� carregar um pouco de quem voc� �, de como est�, como se sente: o formato da letra, o tra�o mais firme, tr�mulo ou desenhado, a marca do beijo de batom, a rasura, o borrado no papel frente a uma l�grima, o cheiro do perfume preferido, uma p�tala de flor. A carta escrita a m�o carrega muito mais do que palavras. � troca de amor e de dor, de alegria e tristeza, de sabedoria e aprendizado, de mudan�a e perman�ncia. Enfim, � ve�culo de sentimentos reais. Certamente, n�o � compar�vel a um e-mail, mensagem de WhatsApp, SMS. Palavras impressas n�o t�m o mesmo poder e valor daquelas nascidas do pr�prio punho.
A psic�loga Clara Feldman sempre gostou de escrever. Para ela, o grande significado da carta manuscrita � que concretiza a rela��o de uma pessoa com a outra. “� uma troca de energia que torna a comunica��o mais concreta por ser individualizada, minha letra � �nica.” E refor�a: no digital, pode at� mudar a fonte e o tamanho, mas � incompar�vel. Escrever uma carta � se doar, se dar, se entregar. Se precisam de prova, existe a grafologia, que estuda a escrita para desvendar dados sobre uma pessoa, como car�ter, personalidade, grau de instru��o, tipo de intelig�ncia, caracter�sticas emocionais. “A letra pode revelar se carrega raiva ou amor ou se a pessoa est� deprimida.”
Clara Feldman revela duas experi�ncias definidoras que teve com as cartas manuscritas. “A primeira, como muitos, foi na escola. A cartinha para o Dia das M�es, Dia dos Pais, de anivers�rio, para a professora. Ali�s, at� hoje ela est� presente, n�o falta. Meus netos me escrevem. Claro, falo com eles por chamada de v�deo e WhastApp, mas quando querem caprichar, me mandam cart�es desenhados, coloridos, com flores e cora��o que nada t�m a ver com o clich� dos emojis. Sem compara��o.”Trocar cartas � criar mem�rias duradouras, construir novas amizades. Cada carta recebida � o cap�tulo da vida de algu�m que tirou um tempo do seu dia para me escrever sua hist�ria
Gabriela Pereira, estudante de psicologia
E o segundo momento marcante � que “estudei no Instituto de Educa��o e, com turnos diferentes, divid�amos a carteira com as alunas do curso normal. Era tradi��o, mesmo sem conhecer, que antes de ir para casa deix�ssemos uma carta uma para a outra. Foram anos essa troca. Tinha 11, 12 anos e achava o m�ximo me corresponder com as meninas mais velhas, de 15, 16. Nos apresent�vamos, o tema central era o amor, a paquera, n�o existia na �poca o ‘ficar', e era a gl�ria o dia em que algu�m revelava que o menino iria busc�-la no fim da aula. Confidenci�vamos os problemas, d�vamos conselhos e, talvez, tenha come�ado ali a minha vida de terapeuta”.

CARTAS DE INDIGNA��O
Com o passar do tempo, a carta manuscrita ganhou um car�ter transgressor, libertador, forte para Clara Feldman. Ela revela que separou em casa uma gaveta onde guarda c�pias das chamadas “cartas de indigna��o” que envia para qualquer pessoa f�sica ou jur�dica que, de alguma forma, afrontou seu senso de justi�a e de cidadania. Do mau atendimento m�dico ao posicionamento equivocado de algu�m no grupo de WhastApp. “Venho praticando este desabafo. Escrevo ao destinat�rio, coloco no correio, sem ser agressiva, com as palavras dizendo que determinada atitude n�o se faz. J� tenho uma cole��o, todas encaminhadas. E me d� um al�vio. N�o h� jeito melhor de viver.”
Cartas fazem parte da descoberta do Brasil. A c�lebre carta do “achamento do Brasil” foi escrita por Pero Vaz De Caminha ao rei de Portugal, dom Manuel I, relatando o descobrimento das novas terras. A descri��o partiu de Porto Seguro, em 26 de abril de 1500. Dias depois do 22 de abril, que marca a chegada dos portugueses ao territ�rio que hoje conhecemos como Brasil. A carta manuscrita, hoje guardada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, tem 27 p�ginas de papel. J� na era da tecnologia da informa��o, da comunica��o eletr�nica, exclu�ram-se a distancia, a velocidade assusta, o tempo � atropelado e se perdeu grande parte da emo��o, a frieza predomina.
ERA DO GELO VIRTUAL
J� n�o tem mais a espera para receber uma carta de amor ou comercial pelo correio, os cart�es em datas especiais s�o raros, os convites para festas e celebra��es s� diminuem, os telegramas inesperados de boas de not�cias ou mesmo assustadoras n�o chegam mais. O f�lego ofegante, a ansiedade, o pulsar mais r�pido do cora��o � espera do momento em que o carteiro depositava qualquer correspond�ncia na caixa de correio praticamente n�o existem mais.
A emo��o de pegar o envelope, olhar o remetente, o endere�o, admirar o selo, abrir r�pido e mergulhar nas folhas de papel com os olhos devorando cada palavra � �nica. E melhor, guardadas em cantos especiais, com zelo, em gavetas, caixas, entrela�adas por la�os de fitas, aquele momento pode ser revivido a qualquer momento, ele � relido. Infelizmente, a era do gelo virtual exterminou emo��es genu�nas.
A emo��o de pegar o envelope, olhar o remetente, o endere�o, admirar o selo, abrir r�pido e mergulhar nas folhas de papel com os olhos devorando cada palavra � �nica. E melhor, guardadas em cantos especiais, com zelo, em gavetas, caixas, entrela�adas por la�os de fitas, aquele momento pode ser revivido a qualquer momento, ele � relido. Infelizmente, a era do gelo virtual exterminou emo��es genu�nas.
Mas sempre h� sa�das. E n�o � que a carta tamb�m foi parar na cloud, na nuvem? Sim, revitalizada e em busca da sensa��o original, muitos experimentam escrever cartas a partir do universo on-line. H� sites, redes sociais e aplicativos que ajudam a interligar interessados em se corresponder. Os adeptos descrevem a pr�tica como forma de se desconectar. Isso porque chega um momento em que o ser humano n�o pode mais lidar com o instant�neo e descart�vel.

“Encontrei o envelope de papel em uma breve pesquisa na internet e fiz minha inscri��o. Achei incr�vel a oportunidade de conhecer novas culturas e vis�es de mundos constru�dos com as experi�ncias e peculiaridades de cada um. Trocar cartas � criar mem�rias duradouras, construir novas amizades, algo m�gico e empolgante, a cada carta recebida � o cap�tulo da vida de algu�m que tirou um tempo do seu dia para me escrever sua hist�ria", revela Gabriela Pereira.
Para Gabriela, as cartas foram (e t�m sido) uma companhia em meio � pandemia: “Fiquei contente com o crescimento do clube nesse per�odo e ver que as pessoas estavam se reinventando e buscando meios de amenizar as consequ�ncias do distanciamento social.”
O certo � que para muitos n�o basta �udios gravados, di�logos de e-mails, mensagens de texto que, logo, caem no esquecimento com a mesma velocidade que chegam � caixa de entrada. J� parou para pensar quantas correspond�ncias virtuais n�o s�o lidas antes mesmo de terminar o primeiro par�grafo? Outras tantas que nem sequer s�o lidas e v�o direto para a lixeira?
N�o � execrar a tecnologia, ter avers�o ou resist�ncia � inova��o, mas dar valor, saber reconhecer, ter liberdade para manter e n�o descartar as coisas boas da vida. E a carta manuscrita � uma dessas inven��es humanas que deveria ser eterna por dar prazer de degustar emo��es. Nada banal. A carta escrita a m�o, � moda antiga, carrega um prazer sensorial �nico. � uma escolha hedonista.
N�o � execrar a tecnologia, ter avers�o ou resist�ncia � inova��o, mas dar valor, saber reconhecer, ter liberdade para manter e n�o descartar as coisas boas da vida. E a carta manuscrita � uma dessas inven��es humanas que deveria ser eterna por dar prazer de degustar emo��es. Nada banal. A carta escrita a m�o, � moda antiga, carrega um prazer sensorial �nico. � uma escolha hedonista.