
Nesse ponto de vista, cada nova descoberta � assimilada e acomodada a partir do que a crian�a j� conhecia do mundo, tornando-o cada vez mais amplo. Gradualmente, as rela��es se formam e tudo come�a a fazer mais sentido. As ferramentas mentais para essa constru��o mudam conforme a faixa et�ria e tamb�m pe- rante o ambiente e os est�mulos recebidos.
Para falar sobre como a crian�a percebe o mundo adulto, explica a doutora em educa��o pela Unicamp Fl�via Vivaldi, � preciso entender como acontece o processo de desenvolvimento da intelig�ncia do ser humano, desde seu nascimento. A partir da teoria piagetiana, um dos nortes � perceber como se comporta a pessoa que est� diante de algo novo. No decorrer da inf�ncia, tudo � novo. “A interdepend�ncia sujeito/objeto � o que explica o desenvolvimento, mas � �bvio que existem fatores complementares que est�o envolvidos nisso, em linhas gerais ligados ao processo de matura��o do organismo. Precisamos do c�rtex cerebral para que haja o desenvolvimento das estruturas mentais", esclarece.
Francislaine Souza � m�e de T�o Souza Elias, de 9 anos, e Enzo Souza Elias, de 5. Ela conta que transmite valores importantes para os filhos por meio do di�logo, e em conex�o com a escola, procurando abordar os assuntos que surgem no dia a dia tendo esses valores como refer�ncia, principalmente em cada a��o, em cada atitude. “Tento mostrar o que est� por tr�s da desigualdade, da pol�tica, busco ensinar o que � importante valorizar e quando as coisas s�o secund�rias. � fundamental que eles saibam o qu� e por que, explico cada coisa mostrando todos os lados da quest�o, e dando exemplos”, afirma.
Para o primog�nito, a fam�lia � o que h� de mais importante na vida, o que T�o considera ser pessoas que, al�m de estar ligadas por sangue, se ajudam umas �s outras. Amigos s�o parecidos. “� quem se ajuda, mesmo n�o sendo da fam�lia, duas pessoas ou mais fazendo o que gostam, que t�m coisas em comum, que se divertem juntas", descreve. O amor, na vis�o do menino, tamb�m passa por a�. “� quando duas pessoas se gostam, se amam, se unem, uma ajuda a outra, t�m uma rela��o forte e, gostando de coisas parecidas ou diferentes, se respeitam.” Para T�o, felicidade � estar alegre e animado com o que aconteceu, est� acontecendo ou vai acontecer – � o que ele toma como bom sentimento.
Sobre a natureza: "� onde est�o os animais, � o ambiente natural, n�o tem polui��o. � assim desde os tempos antigos, mesmo antes de existir cidades. A preserva��o � importante porque se destruir a natureza a gente n�o consegue viver”. Referindo-se � profiss�o dos pais, T�o diz que acha estranho e dif�cil – conta que n�o compreende muito bem o que eles falam, muitas vezes em outros idiomas. Mas sabe que � da� que vem o dinheiro. “Tem que trabalhar duro para conseguir dinheiro e comprar as coisas, mas n�o pode exagerar e comprar o que n�o precisa, e sim comprar as coisas para viver”, continua.
O momento em que duas pessoas come�am a brigar � o que lembra, para T�o, a viol�ncia. E, logo, considera o respeito fundamental para n�o come�ar a viol�ncia. “Ter respeito � bom para n�o causar brigas, n�o fazer coisas ruins com os outros, sempre obedecer. Todos s�o diferentes. Se voc� n�o gosta, se n�o quiser brincar, tudo bem, n�o precisa brigar”, diz o garoto. A percep��o dele sobre a igualdade � coerente com essa ideia. “Se � pobre ou rica, s�o pessoas, tem que respeitar.”

PRECONCEITO E POBREZA
Quando pensa no conceito de preconceito, T�o revela que n�o sabe bem o significado. Para ele tem a ver novamente com brigas e desentendimentos, ter pensamentos ruins e guardar rancor. E a pobreza? “� quando a pessoa n�o tem dinheiro bastante, n�o consegue crescer, n�o tem dinheiro para viver, fica na rua. N�o devia existir”, diz o garoto. Sobre a solid�o, para T�o signifca estar sozinho, sem ningu�m, um sentimento ruim, que traz tristeza, vontade de chorar, pensamentos ruins, preocupa��es e medo.
Quanto � pol�tica, o menino percebe como sendo resumo de quest�es que interessam � cidade, as leis e os cidad�os, o que o presidente tem que fazer. Ele enxerga as redes sociais sob diferentes aspectos. “� bom e ruim. Podem te sacanear. Cuidado para n�o ser xingado ou ter os dados pessoais invadidos”, observa.
Na opini�o de T�o, a pandemia de COVID-19 avan�ou sem controle porque as pessoas n�o se cuidaram e, por isso mesmo, a fala da import�ncia da ajuda divina: "Deus � o criador de todas as coisas, pode fazer o imposs�vel, e nos ajuda de vez em quando, como com os milagres que acontecem. Ter f� � a confian�a que as coisas s�o poss�veis, que voc� vai tentar at� conseguir. � ter positividade."
O irm�o Enzo fala da fam�lia com entusiasmo: “A fam�lia � que cuida das crian�as, que d� comida boa para as crian�as, d� seguran�a, tenta de tudo para fazer o bem e n�o o mal”, diz. Amor, pra ele, � significado de uma situa��o em que as pessoas n�o brigam, s� ficam brincando. “Amizade � quando a pessoa est� tentando brincar com a outra que n�o brinca, que n�o conhece e, quando consegue, viram amigos, sem brigar. No trabalho do meu pai, acho ador�vel ele conversar com os amigos. Tamb�m traz dinheiro, e eu amo dinheiro, quero ser rico na vida real”, confessa o ca�ula de Francislaine, sem esconder as risadas.
DESENVOLVIMENTO COGNITIVO
Segundo Piaget, o desenvolvimento cognitivo come�a desde o nascimento e se divide em quatro fases centrais: sensorial, simb�lico, concreto e formal. O mote da teoria � como se d� o equil�brio do organismo em meio �s novidades, um fen�meno essencialmente universal, porque ocorre em todos os indiv�duos da esp�cie humana. Segundo Fl�via Vivaldi, surge em qualquer tempo, em qualquer lugar do mundo, podendo sofrer altera��es em fun��o dos conte�dos culturais espec�ficos e o meio em que se est� inserido.
Nesse racioc�nio, de acordo com a educadora, a teoria que explica o desenvolvimento da intelig�ncia leva em conta dois elementos b�sicos: os fatores invariantes e os variantes. “Primeiro, aquilo que recebemos como heran�a, uma s�rie de estruturas biol�gicas, sensoriais, neurol�gicas, que s�o constantes ao longo da vida, e que v�o predispor o surgimento das estruturas mentais, considerando que o indiv�duo carrega duas marcas inatas: uma tend�ncia natural � organiza��o e � adapta��o, entendendo que a adapta��o � o resultado da intelig�ncia, e a intelig�ncia em si, que se trata de dar respostas a novos desafios, e respostas que sejam adaptativas”, ressalta Fl�via Vivaldi.
Entre os fatores variantes est�o os chamados esquemas de a��o e mentais que constituem aquilo que � generaliz�vel, que � comum nas diversas a��es, sejam f�sicas ou mentais. "Se o beb� desenvolve esquemas motores de pegar um objeto, esses esquemas v�o ser cada vez mais reorganizados para que, a cada hora, ele consiga pegar objetos diferentes", exemplifica. "E o que essa teoria deixa � mostra? Que a intelig�ncia n�o � herdada, � constru�da nesse processo interativo entre o sujeito e o meio ambiente f�sico e social onde est�", acrescenta.
Tempo de descobertas por etapas
Enquanto beb�, o processo de assimila��o de mundo acontece pelas sensa��es, percep��es e movimentos. N�o existem ainda os conceitos, fase que se estende pelos dois primeiros anos de vida da crian�a, explica Fl�via Vivaldi, doutora em educa��o pela Unicamp. Devido � chegada da intera��o social, n�o s� com os adultos que cuidam dela, mas tamb�m com outras pessoas que est�o ao seu redor, a crian�a entra em uma outra etapa de desenvolvimento – agora, � capaz de representar mentalmente o objeto, mas o que esteja ali, perto dela.
“No segundo est�gio do desenvolvimento est� a capacidade de imaginar e pensar em coisas que n�o est�o presentes. S�o os desenhos, imita��es, jogos simb�licos, faz de conta, imagem mental e linguagem (dar nome ao que est� em sua mente). Antes dos 7 anos, n�o h� a compreens�o de conceitos, mas a imita��o daquilo que a crian�a vivencia no seu contexto acerca desses conceitos”, diz Fl�via.
A condi��o muito mais refinada de percep��o costuma surgir a partir dos 7 anos. Nessa fase, segundo a especialista, a crian�a consegue fazer muitas opera��es mentais, por�m que ainda restringem a sua capacidade de compreens�o a um universo mais concreto. No terceiro est�gio de desenvolvimento, a resposta que dar� para o mundo adulto � o que ela vivencia, n�o s� pela imita��o, mas pela l�gica que j� consegue imprimir pelas suas opera��es mentais. Por exemplo, o dinheiro � representado pela c�dula, pela moeda, mas a no��o de dinheiro mais abstrata ainda n�o existe.
“Ou uma crian�a que tenha vivido a viol�ncia na pele, traduzida em um ato de racismo, ter� muito mais condi��es de compreender o conceito de racismo do que aquela que nunca sofreu esse tipo de viol�ncia. A elabora��o do conceito est� ligada ao que � vivenciado”, observa. � a� tamb�m que a crian�a passa a ter maior capacidade de se colocar no lugar do outro e entender conceitos morais de certo e errado, enquanto outros aprendizados se constroem a partir da observa��o e pela tentativa e erro.
A pr�-adolesc�ncia chega, a partir dos 12 anos, quando, a� sim, existe a condi��o de abstra��es mais refinadas. “Nesse est�gio, o sujeito pensa por hip�teses, n�o tem mais a necessidade do concreto. Consegue inferir, pensar sobre coisas que s�o verbalizadas. A abstra��o que existe em conceitos como religi�o, pobreza, Deus, viol�ncia, entre outros, � muito mais poss�vel de ser ampliada na sua capacidade de compreens�o, porque cognitivamente passa a coordenar perspectivas que n�o s�o palp�veis, pode traduzir esses conceitos de uma forma muito mais abrangente e elaborada”, diz Fl�via Vivaldi.
Exemplo que se d�
Nesse turbilh�o, o adulto precisa entender que o exemplo n�o se d� somente pelo que se fala, mas principalmente pela forma como se age. Ter autonomia de pensamento, autonomia cognitiva, � um grande desejo, segundo Fl�via.
Ter condi��es de coordenar diferentes perspectivas e tomar decis�es com base em princ�pios que sejam de relev�ncia pessoal e coletiva, amplia horizontes. Ela lembra que cada pessoa tem seu ritmo e esse tempo deve ser respeitado.
“Isso n�o pode ser rotulado como mais ou menos inteligente. Quanto mais a crian�a puder conviver com os pares, n�o apenas com os adultos, mais ter� condi��es de coordenar diferentes perspectivas e fazer escolhas cognitivas, considerando princ�pios que sejam relevantes”, diz. “� tudo que a gente deseja, mas � preciso oferecer condi��es para que a autonomia do pensamento e a autonomia moral sejam desenvolvidas, e isso s� acontece se fizermos o exerc�cio do respeito m�tuo e da coopera��o”, acrescenta.
Dar liberdade ao pensamento n�o significa deixar a crian�a dizer ou fazer tudo o que quer. “� preciso ser um adulto vigilante no sentido de permitir reflex�es, trazendo sempre valores que mediem essa rela��o para um car�ter �tico.”