Reconhecimento do dist�rbio como doen�a mental pela OMS alerta para preven��o, al�m do diagn�stico precoce. Especialistas discutem tratamento
Classificado, desde janeiro, pela Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) como transtorno mental, o chamado dist�rbio de games (“gaming disorder” na express�o inglesa) – um comportamento obsessivo associado a jogos eletr�nicos – passou a ser diagnosticado e receber� tratamento especializados.
Na era da tecnologia que constr�i os universos virtuais, o transtorno afeta quase 2% da popula��o mundial, segundo estudo publicado no Jornal de Psiquiatria da Austr�lia e Nova Zel�ndia, autoridade sobre o tema. O percentual representa cerca de 154 milh�es de pessoas com a doen�a, universo que significaria 72% dos brasileiros.
O v�cio se caracteriza por meio da perda de controle sobre o tempo dos jogos, a prioridade dada � divers�o em detrimento das demais atividades e das �reas que interessam � vida pessoal e � sociabilidade de quem joga. Outro fator � a decis�o de continuar � frente da tela do computador mesmo que ciente das consequ�ncias negativas dessa arriscada divers�o.
A preocupa��o com a tend�ncia de crescimento do dist�rbio de games levou a China, maior mercado de videogames do mundo, a decretar o tempo que as crian�as e adolescentes podem se dedicar aos jogos: tr�s horas por semana, limitadas a uma hora por dia, das 20h �s 21h, e apenas nas sextas-feiras, fins de semana e feriados.
Jogadores sustentam ind�stria bilion�ria, sem evitar compuls�o, que deve ser combatida desde a inf�ncia com atividades que exercitam a mente e o corpo (foto: Maria Tan/AFP)
No Ocidente, n�o h� not�cia de medida t�o dr�stica, mas nem por isso a preocupa��o � menor. No Brasil, foi criada uma unidade pioneira para o atendimento de pacientes dependentes de tecnologia, iniciativa de Cristiano Nabuco, psic�logo com doutorado em psicologia cl�nica pela Universidade do Minho, de Portugal, e p�s-doutorado pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital das Cl�nicas da Faculdade de Medicina da Universidade de S�o Paulo (HCFMUSP). A unidade desenvolve modelos de interven��o em psicoterapia.
Em S�o Paulo, o Programa de Depend�ncias Tecnol�gicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Cl�nicas atendeu 400 pacientes nos seus 11 anos de atua��o. O tratamento dura quatro meses e meio, tem sess�es de psicoterapia e pode incluir medica��o contra depress�o ou transtorno bipolar. Cristiano Nabuco definiu o v�cio em jogos e na internet como “tempo de vida roubado”.
O reconhecimento da doen�a pela OMS n�o apenas serve de alerta para os perigos de transformar divers�o em transtorno mental como tamb�m chama a aten��o para as poss�veis causas e consequ�ncias do v�cio. Esse � o tema desta edi��o do Bem Viver, que conversou com jogadores, que, em geral, preferem n�o se identificar, e profissionais da �rea da sa�de mental.
Dependente Aos 25 anos, K.S.P, profissional de tecnologia da informa��o, gosta de jogos em estilos a exemplo Moba (League of legends e Fornite); Sandbox (City Skylines, The Sims e Lost ark); e de cartas (Yu-gi-oh e Heartstone). Ele conta que a paix�o tem ra�zes no ensino m�dio, pelas m�os de amigos, apenas por divers�o, por volta de 2017.
“Amo jogar porque me relaxa, faz com que me distancie dos problemas do cotidiano, como do trabalho e at� mesmo quest�es pessoais. Al�m disso, me mant�m longe de preocupa��es, como de que forma ganhar mais dinheiro, se preciso ser mais independente, al�m do que j� sou, se eu tiver que sair da casa dos meus pais ou mesmo quest�es da faculdade, que termino este ano”, conta.
A divers�o, como define K.S.P., pode come�ar por volta das 7h e seguir at� um pouco depois da meia-noite. Ele confessa que alcan�ou o recorde de 48 horas jogando, com pausa apenas para se alimentar, e, ainda assim, o fazendo em frente ao computador, para, em seguida, retornar aos jogos. A despeito desse ritmo intenso, K.S.P n�o se reconhece doente por gostar tanto de jogar.
“Pode ser que em alguns dias sou mais dependente. Como mencionei anteriormente, acredito que meu emocional se vicia porque � um ambiente virtual onde ningu�m o conhece por completo. Assim, isso possibilita a sensa��o de bem-estar muito grande. Fa�o algumas pausas, por exemplo, nos fins de semana, mas apenas naquele momento. Antes de tudo, porque namoro e preciso dar assist�ncia � namorada. Mesmo assim, aquela vontade de jogar permanece.”
Embora reconhe�a que n�o consegue viver sem jogar, ao menos por enquanto K.S.P n�o consegue pedir a ajuda de um profissional da sa�de. “Acredito que pedir ajuda � sempre o ponto mais dif�cil, porque no primeiro momento poderia eliminar as expectativas que minha fam�lia deposita em mim. Meus familiares n�o sabem o quanto eu jogo, apenas conhecem os resultados que apresento como sacrif�cios que fa�o para jogar. Em segundo lugar, existem os preju�zos do ato de jogar que afetam o trabalho e a vida, de modo geral”, admite.
Ele demonstra, tamb�m, consci�ncia sobre as dificuldades que encontra para conciliar a tenta��o de n�o para de jogar com os deveres do trabalho.
“Nunca procurei acompanhamento, nem usei rem�dio, apenas tento conciliar, ainda assim, falhando miseravelmente. Os jogos se tornaram atividades necess�rias para minha vida. Essa tentativa � para que tudo n�o d� t�o errado. Assim, quando n�o consigo conciliar me sinto muito mal, at� chego a pensar que posso acabar com minhas oportunidades e com a vida como um todo.”
Sob controle Diferentemente do profissional de TI, o gerente de produ��o Yuri Carlos, de 20, afirma que limita os jogos eletr�nicos �s horas de lazer e controla o divertimento, sem depend�ncia. Ele foi apresentado �s partidas virtuais por amigos e se tornou adepto da pr�tica em 2012. “Jogo nas minhas horas de lazer, como nos fins de semana. E me sinto em paz. N�o � um v�cio para mim, apenas lazer”, afirma.
A psiquiatra Priscilla Soares Ladeia explica que controlar o tempo de jogo � uma medida necess�ria, mas recomenda, al�m da restri��o, oferecer a crian�as e adolescentes atividades que sejam prazerosas (foto: Fernando Laudares/Divulga��o)
Priscilla Soares dos Santos Ladeia, psiquiatra e mestre pela UFMG, alerta que a inclus�o do “v�cio em jogo” como transtorno mental na chamada CID-11, a Classifica��o Estat�stica Internacional de Doen�as e Problemas Relacionados com a Sa�de, n�o deve aumentar o preconceito e estigmas. O objetivo, como ela destaca � alertar a popula��o e profissionais da �rea da sa�de para a import�ncia do tema e o impacto desse problema na qualidade de vida e sa�de das pessoas afetadas.
Ela considera tamb�m imprescind�vel “a promo��o de debates e capacita��o para a preven��o, investiga��o de casos suspeitos, diagn�stico precoce e tratamento adequado.” A psiquiatra enfatiza a aten��o para o cuidado com crian�as e adolescentes.
“Controlar o tempo de jogo � uma medida necess�ria. Por�m, mais do que restringir os jogos, � importante estar com as crian�as e adolescentes e oferecer outras atividades prazerosas para eles. Tamb�m � importante ter clareza de que eles aprendem com o exemplo. Se os pais e cuidadores passam muito tempo no celular e em jogos, n�o h� como exigir deles uma postura distinta.”
Entre as medidas contra o v�cio que ela recomenda est�o levar as crian�as e adolescentes a exercitarem diferentes �reas cerebrais, tais como atividade f�sica, de racioc�nio l�gico e de coordena��o, entre outras relacionadas � qualidade de vida e sa�de.
Comunidade de jogadores
Dados da consultoria Newzoo, principal refer�ncia no setor de games, at� 2023 mais de 3 bilh�es de pessoas far�o parte da chamada “comunidade gamer”. A ind�stria global dos jogos dever� ultrapassar movimenta��o de US$ 200 bilh�es dentro de dois anos.
De acordo com a Game Brasil, consultoria especializada no mercado digital, sete em cada 10 brasileiros afirmam que jogam games eletr�nicos. O perfil dos jogadores brasileiros foi tra�ado na pesquisa de 2021. Historicamente, a Pesquisa Game Brasil tem mostrado que as mulheres s�o maioria na comunidade gamer brasileira. Na 8ª edi��o, 51,5% do p�blico que se identificou era feminino.
Essa forte presen�a est� relacionada ao tamanho do mercado de smartphones, onde existe uma domin�ncia das mulheres (62,2%). Como o consumo do smartphone vem se consolidando nos �ltimos anos, foi poss�vel identificar que nas classes sociais de menor poder aquisitivo, j� est�o representados 66,4% dos consumidores de jogos digitais.
Pela primeira vez na PGB, 62% dos entrevistados assumiram personalidade gamer, quase o dobro do verificado em 2020. O resultado foi influenciado pela pandemia de COVID-19.
O QUE REVELA UMA PESQUISA
Recorte de um cen�rio: PGB21
Com um question�rio estruturado quantitativo, com 12.498 participantes, de 7 a 22 de fevereiro, em 26 estados e no Distrito Federal, a PGB21 mostrou como foi o comportamento do consumidor de jogos digitais, principalmente, durante o per�odo do isolamento social caudado pela COVID-19.
10,9% est�o na classe social A
27,6% na classe social B2
78,9% o jogo digital est� entre as suas principais formas de divers�o hoje em dia
61,6% se consideram um gamer
41,6% tem o smartphone como plataforma preferida para jogar
46,0% jogou mais games durante o isolamento social
42,2% gastou mais dinheiro com jogos digitais durante o isolamento social
85,1% t�m filhos que costumam jogar jogos eletr�nicos
30,5% j� ganhou dinheiro com o e-Sports
44,8% enquanto jogam bebem (suco, refrigerante, bebidas alc�olicas etc)
Tempo gasto em m�dia por semana jogando em todas as plataformas