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Estado de Minas SINTOMAS INESPERADOS EM GRUPO

Como acontecem os surtos psic�ticos coletivos

Rea��es psicog�nicas de massa, que envolvem dezenas ou centenas de indiv�duos de uma s� vez, s�o registradas h� pelo menos seis s�culos. Entenda o que est� por tr�s do fen�meno e quais s�o as formas de preveni-lo e combat�-lo.


27/04/2022 18:59 - atualizado 28/04/2022 08:53


Grupo reunido em foto borrada
As rea��es psicog�nicas de massa podem ser agudas, que se resolvem mais facilmente, ou cr�nicas, que podem ter consequ�ncias mais s�rias (foto: Getty Images)

O dia 8 de abril come�ou como qualquer outro na Escola de Refer�ncia em Ensino M�dico Ageu Magalh�es, localizada na zona norte do Recife, em Pernambuco. Ap�s o almo�o, por�m, um grupo de alunos apresentou uma s�rie de sintomas inesperados, como tremores, dificuldade para respirar, suor excessivo, desmaios e choros.

No total, 26 adolescentes tiveram esses inc�modos de uma s� vez, o que exigiu o envio de seis ambul�ncias e duas motocicletas para atendimento de emerg�ncia. Apesar da confus�o, nenhum dos acometidos precisou ser enviado para o hospital.

Embora chame a aten��o, epis�dios como esse n�o s�o exatamente novidade: surtos psic�ticos coletivos, cujo nome oficial nos manuais de medicina � "rea��o psicog�nica de massa", s�o registrados h� pelo menos 600 anos — desde o s�culo 14, quando ocorreram as "febres" de dan�a incontrol�vel que acometeram povoados inteiros na Europa, at� uma grave crise de estresse que afetou adolescentes do Acre ap�s a vacina��o contra o HPV em meados de 2015.

Em resumo, esse fen�meno est� relacionado a uma s�rie de sintomas — que v�o de crise de ansiedade e n�usea a desmaios e paralisias — e atinge dezenas ou centenas indiv�duos que integram o mesmo grupo social.

Entenda a seguir como acontecem esses surtos psic�ticos coletivos e o que pode ser feito para prevenir ou combater eventos desse tipo.

Emo��es s�o transmiss�veis

O psiquiatra Jos� Gallucci Neto explica que a rea��o psicog�nica de massa � um problema "coletivo e compartilhado, que envolve sintomas f�sicos ou emocionais e para os quais n�o existe uma causa biol�gica ou um fator externo".

Em outras palavras, a rea��o daqueles indiv�duos n�o pode ser explicada por uma doen�a infecciosa ou pela intoxica��o por um g�s que contaminou o ambiente que eles compartilham, por exemplo.

"O que desencadeia esse processo � o psicol�gico, a proximidade e o compartilhamento de cren�as entre as pessoas", diz o especialista, que � diretor do Servi�o de Eletroconvulsoterapia e Eletroencefalografia do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Cl�nicas de S�o Paulo.

"Ao ver algu�m passando mal, nosso pr�prio psiquismo pode nos sugestionar de que tamb�m estamos sofrendo com aqueles mesmos sintomas. Na sequ�ncia, come�amos a 'monitorar' o corpo e interpretar qualquer sinal como algo preocupante."

"Isso, por sua vez, gera uma rea��o em cadeia e leva a surtos coletivos", completa o m�dico.

Entre os sintomas t�picos da rea��o psicog�nica de massa, Gallucci lista falta de ar, tontura, sensa��o de desmaio, �nsia de v�mito, n�useas, crises de ansiedade, contra��es musculares, convuls�es e paralisias.

E tudo isso acontece justamente pelo fato de vivermos em sociedade e nos importarmos com os sentimentos dos outros, especialmente daquele grupo mais pr�ximo e com o qual nos relacionamos.

"A sociabilidade � uma necessidade de sobreviv�ncia da nossa esp�cie", analisa o psiquiatra Lucas Spanemberg, pesquisador do Instituto do C�rebro do Rio Grande do Sul.

"Nosso psiquismo � estruturado a partir dessa capacidade humana de se importar, se empatizar, se comunicar e se afetar pelo comportamento dos outros", complementa o especialista, que tamb�m � professor da Pontif�cia Universidade Cat�lica do Rio Grande do Sul.

Embora adolescentes sejam o grupo com maior propens�o a ter rea��es coletivas do tipo (por serem naturalmente mais influenci�veis pelo ambiente externo), j� foram registrados fen�menos do tipo em v�rios perfis.

Na Primeira Guerra Mundial, por exemplo, alguns soldados que ficavam meses ou anos nas trincheiras tiveram o chamado shell shock, um quadro de torpor profundo, com uma incapacidade de se mover, falar ou fazer qualquer outra atividade.


Soldados da primeira guerra mundial
Na Primeira Guerra Mundial, soldados como esses da foto desenvolveram o 'shell shock', um estado de paralisia que impedia qualquer atividade (foto: Getty Images)

Vale dizer aqui que muitos desses conceitos ainda s�o tema de intenso debate dentro da comunidade m�dica. A pr�pria Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS), por exemplo, n�o gosta do uso da palavra "psicog�nico" para descrever essas rea��es emocionais massivas.

No passado, inclusive, chegou-se a classificar esse quadro como "histeria coletiva". Mas o termo caiu em desuso e hoje � at� considerado inadequado. Histeria, que vem do grego histerus, ou �tero, era um quadro que os m�dicos do passado erroneamente associavam somente �s mulheres, como se transtornos mentais apenas acontecessem no sexo feminino e estivessem de alguma maneira relacionados � falta de sexo ou �s disfun��es no aparelho reprodutor.

Agudos ou cr�nicos

De forma geral, as rea��es psicog�nicas de massa podem ser divididas em dois grandes grupos: os casos agudos e os cr�nicos.

"A rea��o aguda normalmente acontece de forma repentina, � transit�ria e a maioria dos quadros se resolve em menos de 24 horas", resume o m�dico Renato Luiz Marchetti, que coordena o Projeto de Epilepsia e Psiquiatria do IPq, em S�o Paulo.

"Provavelmente, se forem tomadas as condutas corretas, epis�dios do tipo n�o se repetir�o e n�o v�o ser incapacitantes para quem for acometido", completa.

Pelas poucas informa��es dispon�veis, os especialistas acreditam que o epis�dio recente no Recife se encaixe nessa primeira defini��o.


Ilustração de uma coreomania na Idade Média
Na Idade M�dia, foram relatados casos de 'coreomania', uma rea��o psicog�nica de massa em que um grupo de pessoas n�o consegue parar de dan�ar (foto: Getty Images)

J� nas rea��es psicog�nicas de massa que s�o cr�nicas, a situa��o se torna um pouco mais desafiadora.

"Nesse caso, normalmente existe um tempo entre o est�mulo e a ocorr�ncia dos sintomas. O curso da crise tamb�m � arrastado e bem mais incapacitante", descreve Marchetti.

Os indiv�duos acometidos por esse tipo podem desenvolver tremores, tiques, perda de for�a muscular e at� paralisia de membros — manifesta��es relacionadas � influ�ncia das emo��es no sistema nervoso.

O exemplo mais recente de uma rea��o massiva e cr�nica aconteceu no Acre em meados de 2012 a 2017.

Um grupo de 74 adolescentes (em sua maioria meninas) come�ou a apresentar inc�modos s�rios, como convuls�es e paralisias, ap�s tomarem a primeira dose da vacina que protege contra o HPV, v�rus que est� por tr�s do c�ncer de colo de �tero e diversos outros tipos de tumores.

Diante de manifesta��es t�o at�picas, a primeira rea��o de todos os envolvidos foi suspeitar que o imunizante era o culpado.

O assunto ficou t�o s�rio que o Minist�rio da Sa�de resolveu lan�ar uma investiga��o formal e convocou Gallucci e Marchetti, dois dos m�dicos ouvidos nesta reportagem, para conduzir os estudos.

"N�s selecionamos os 12 pacientes mais graves e trouxemos para S�o Paulo, onde ficaram internados e passaram por uma s�rie de exames, como resson�ncia magn�tica e an�lise do l�quor [l�quido que circunda o c�rebro e a medula espinhal]", relata Gallucci.

A partir dessa batelada de testes, a meta dos especialistas era descobrir se havia alguma evid�ncia de um efeito das doses de vacina no sistema nervoso desses adolescentes. Os resultados mostraram que n�o havia nenhuma les�o ou subst�ncia que explicasse as convuls�es e as paralisias.

"O caso do Acre, na verdade, foi uma rea��o psicog�nica de massa que se tornou cr�nica, sem que ningu�m fizesse o diagn�stico correto e propusesse um tratamento adequado", analisa Gallucci.

Os resultados da investiga��o brasileira foram publicados em outubro de 2020 no peri�dico especializado Vaccine.


Vacina
A vacina��o pode gerar um estresse t�o grande em alguns grupos que gera uma rea��o psicog�nica de massa (foto: Getty Images)

"No Acre, n�s vimos como a ocorr�ncia de um quadro desses � algo complexo, que depende de um conjunto de fatores. As meninas acometidas faziam parte de grupos sociais com problemas importantes, que envolviam uma cultura patriarcal em crise, conflitos familiares, uso inadequado de redes sociais, influ�ncia religiosa e uma cren�a antivacina muito importante", lista Marchetti.

Em suma, o pr�prio medo de que a vacina contra o HPV pudesse causar algum efeito colateral foi suficiente para que esses jovens de fato desenvolvessem rea��es graves (sem que o imunizante tivesse algo a ver com isso). E, considerando que as emo��es s�o contagiosas, esse cen�rio gerou uma rea��o em cadeia num grupo que apresentava uma s�rie de similaridades.

Marchetti conta que existe at� um termo espec�fico para falar desse surto psicog�nica de massa quando o assunto s�o as vacinas: rea��o relacionada ao estresse da imuniza��o.

"Desde 1972, a OMS tem um grupo que monitora e estuda essas rea��es psicog�nicas associadas aos imunizantes. J� foram descritos casos na Bol�via, no Jap�o, na Dinamarca, no Brasil e, mais recentemente, na Tail�ndia com a vacina contra a covid-19", lembra.

E que fique claro mais uma vez: a vacina em si n�o tem nada a ver com esse efeito. A quest�o ocorre por um misto do ambiente, do grupo social, das emo��es e do estresse.

Mas ser� que existem formas de tratar essas condi��es?

A chave est� na comunica��o

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil destacam que tratar as rea��es psicog�nicas de massa envolve muito cuidado e uma dose extra de di�logo.

"A grande dificuldade est� no fato de os pr�prios m�dicos desconhecerem esse fen�meno, o que dificulta o diagn�stico. As doen�as psicog�nicas de massa sempre ocorreram, mas elas ficaram meio esquecidas nos �ltimos 40 ou 50 anos", aponta Marchetti.

Nos casos agudos (como possivelmente foi o do Recife), o primeiro passo est� em separar as pessoas em crise para que elas se acalmem aos poucos. A ideia � limitar o cont�gio emocional dentro daquele grupo — e evitar que outros indiv�duos tamb�m sejam afetados.

"J� nas situa��es cr�nicas, � preciso lan�ar m�o de uma modalidade de psicoterapia cognitivo-comportamental desenvolvida especificamente para a rea��o psicog�nica de massa", diz Gallucci.

Esse tratamento psicol�gico envolve n�o apenas os pacientes, mas tamb�m a fam�lia e todo o grupo social. A meta � analisar comportamentos e pensamentos, de modo a modificar as cren�as arraigadas que levaram �quela situa��o.

Marchetti refor�a como a comunica��o � parte primordial de todo o processo de diagn�stico e tratamento de uma enfermidade dessas.

"N�s, como m�dicos, precisamos explicar o que a pessoa teve e deixar claro que ela n�o foi acometida por uma doen�a org�nica grave", recomenda o psiquiatra.

"Mas a� vem um risco grande: quando voc� diz que n�o � uma doen�a grave, o paciente e os familiares podem achar que tudo n�o passou de fingimento ou frescura", continua.

Como sabemos, n�o � s� porque um problema � "coisa da cabe�a" de algu�m que ele se torna falso ou menos relevante — quadros de ansiedade, depress�o e outros transtornos que afetam a mente s�o debilitantes e podem ter s�rias repercuss�es na sa�de.

"� por isso que � importante deixar claro que se trata de uma rea��o psicog�nica de massa, uma condi��o m�dica que, na maioria das vezes, � transit�ria e pode ser resolvida adequadamente", complementa Marchetti.


Grupo reunido para terapia
Envolver na psicoterapia todo o grupo social que foi afetado pelo surto (inclusive os familiares) � fundamental (foto: Getty Images)

O que aconteceu depois

Nos dois exemplos principais que ajudaram a ilustrar essa reportagem — a vacina��o no Acre e os alunos do Recife — a situa��o ainda est� em aberto e sem muitas defini��es.

"No caso do Acre, n�s propusemos que as equipes de sa�de que lidam com os adolescentes fossem treinadas para aplicar a terapia cognitivo-comportamental, mas a pandemia de covid-19 acabou paralisando o projeto", informa Gallucci.

"Infelizmente, muitas fam�lias acabaram aderindo a tratamentos para os quais n�o h� evid�ncia cient�fica alguma", lamenta.

Para entender o que ocorreu no Recife ap�s o surto, a BBC News Brasil entrou em contato com a Secretaria de Educa��o e Esportes de Pernambuco.

A superintend�ncia de comunica��o da entidade enviou as respostas por email, dizendo que a escola onde o epis�dio aconteceu "recebeu, no primeiro dia �til ap�s o caso, uma psic�loga para uma escuta com os estudantes, que alegaram estarem passando por uma crise de ansiedade na �ltima semana".

"A profissional far� um levantamento dos que n�o t�m acompanhamento psicol�gico para encaminh�-los a um atendimento."

"A unidade de ensino tamb�m agendou uma reuni�o com outra psic�loga e com os respons�veis pelos estudantes para falar sobre o tema e as responsabilidades de cada um (escola e fam�lia) neste processo", continua a nota.

Por fim, a escola promete criar projetos para refor�ar a "escuta ativa e as rodas de di�logos com os estudantes".

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