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Estado de Minas CI�NCIA

4 formas como o racismo afeta o c�rebro e o corpo das crian�as, segundo Harvard

Universidade demonstra como exposi��o direta ou indireta ao racismo estrutural pode alterar arquitetura cerebral e causar doen�as


09/12/2020 07:04 - atualizado 09/12/2020 07:53


Viver o racismo, direta ou indiretamente, tem efeitos de longo prazo sobre desenvolvimento, comportamento, saúde física e mental(foto: Getty Images)
Viver o racismo, direta ou indiretamente, tem efeitos de longo prazo sobre desenvolvimento, comportamento, sa�de f�sica e mental (foto: Getty Images)

Epis�dios di�rios de racismo, desde ser alvo de preconceito at� assistir a casos de viol�ncia sofridos por outras pessoas da mesma ra�a, t�m um efeito �s vezes "invis�vel", mas duradouro e cruel sobre a sa�de, o corpo e o c�rebro de crian�as.

A conclus�o � do Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard, que compilou estudos documentando como a viv�ncia cotidiana do racismo estrutural, de suas formas mais escancaradas �s mais sutis ou ao acesso pior a servi�os p�blicos, impacta "o aprendizado, o comportamento, a sa�de f�sica e mental" infantil.

No longo prazo, isso resulta em custos bilion�rios adicionais em sa�de, na perpetua��o das disparidades raciais e em mais dificuldades para grande parcela da popula��o em atingir seu pleno potencial humano e capacidade produtiva.

Embora os estudos sejam dos EUA, dados estat�sticos — al�m do fato de o Brasil tamb�m ter hist�rico de escravid�o e desigualdade — permitem tra�ar paralelos entre os dois cen�rios.

Aqui, casos recentes de viol�ncia contra pessoas negras incluem o de Beto Freitas, espancado at� a morte dentro de um supermercado Carrefour em Porto Alegre em 20 de novembro, e o das primas Emilly, 4, e Rebeca, 7, mortas por disparos de balas enquanto brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias em 4 de dezembro.

No Brasil, 54% da popula��o � negra, percentual que � de 13% na popula��o dos EUA.

A seguir, quatro impactos do ciclo vicioso do racismo, segundo o documento de Harvard. Para discutir as particularidades disso no Brasil, a reportagem entrevistou a psic�loga Cristiane Ribeiro, autora de um estudo recente sobre como a popula��o negra lida com o sofrimento f�sico e mental, que foi tema de sua disserta��o de mestrado pelo Programa de P�s-gradua��o em Promo��o da Sa�de e Preven��o da Viol�ncia da UFMG.

1. Corpo em estado de alerta constante

O racismo e a viol�ncia dentro da comunidade (e a aus�ncia de apoio para lidar com isso) est�o entre o que Harvard chama de "experi�ncias adversas na inf�ncia". Passar constantemente por essas experi�ncias faz com que o c�rebro se mantenha em estado constante de alerta, provocando o chamado "estresse t�xico".

"Anos de estudos cient�ficos mostram que, quando os sistemas de estresse das crian�as ficam ativados em alto n�vel por longo per�odo de tempo, h� um desgaste significativo nos seus c�rebros em desenvolvimento e outros sistemas biol�gicos", diz o Centro de Desenvolvimento Infantil da universidade.

Na pr�tica, �reas do c�rebro dedicadas � resposta ao medo, � ansiedade e a rea��es impulsivas podem produzir um excesso de conex�es neurais, ao mesmo tempo em que �reas cerebrais dedicadas � racionaliza��o, ao planejamento e ao controle de comportamento v�o produzir menos conex�es neurais.



"Isso pode ter efeito de longo prazo no aprendizado, comportamento, sa�de f�sica e mental", prossegue o centro. "Um crescente corpo de evid�ncias das ci�ncias biol�gicas e sociais conecta esse conceito de desgaste (do c�rebro) ao racismo. Essas pesquisas sugerem que ter de lidar constantemente com o racismo sist�mico e a discrimina��o cotidiana � um ativador potente da resposta de estresse."

"Embora possam ser invis�veis para quem n�o passa por isso, n�o h� d�vidas de que o racismo sist�mico e a discrimina��o interpessoal podem levar � ativa��o cr�nica do estresse, impondo adversidades significativas nas fam�lias que cuidam de crian�as pequenas", conclui o documento de Harvard.

2. Mais chance de doen�as cr�nicas ao longo da vida

Essa exposi��o ao estresse t�xico � um dos fatores que ajudam a explicar diferen�as raciais na incid�ncia de doen�as cr�nicas, prossegue o centro de Harvard:

"As evid�ncias s�o enormes: pessoas negras, ind�genas e de outras ra�as nos EUA t�m, em m�dia, mais problemas cr�nicos de sa�de e vidas mais curtas do que as pessoas brancas, em todos os n�veis de renda."

Alguns dados apontam para situa��o semelhante no Brasil. Homens e mulheres negros t�m, historicamente, incid�ncia maior de diabetes — 9% mais prevalente em negros do que em brancos; 50% mais prevalente em negras do que em brancas, segundo o Minist�rio da Sa�de — e press�o alta, por exemplo.

Os n�meros mais marcantes, por�m, s�o os de viol�ncia armada, como a que vitimou as meninas Emilly e Rebeca. O Atlas da Viol�ncia aponta que negros foram 75,7% das v�timas de homic�dio no Brasil em 2018.

A taxa de homic�dios de brasileiros negros � de 37,8 para cada 100 mil habitantes, contra 13,9 de n�o negros.

H�, ainda, uma incid�ncia possivelmente maior de problemas de sa�de mental: de cada dez suic�dios em adolescentes em 2016, seis foram de jovens negros e quatro de brancos, segundo pesquisa do Minist�rio da Sa�de publicada no ano passado.

"O adoecimento (pela viv�ncia do racismo) � constante, e vemos nos dados escancarados, como os da viol�ncia, mas tamb�m na depress�o, no adoecimento ps�quico e nos altos n�meros de suic�dio", afirma a psic�loga Cristiane Ribeiro.


"Embora possam ser invis�veis para quem n�o passa por isso, n�o h� d�vidas de que o racismo sist�mico e a discrimina��o interpessoal podem levar � ativa��o cr�nica do estresse, impondo adversidades significativas nas fam�lias que cuidam de crian�as pequenas", diz o documento de Harvard (foto: EPA)

"E por que essa � viol�ncia � t�o marcante entre pessoas negras? Porque aprendemos que nosso semelhante � o pior poss�vel e o quanto mais longe estivermos dele, melhor. A crian�a materializa isso de alguma forma. Temos estat�sticas de que crian�as negras s�o menos abra�adas na educa��o infantil, recebem menos afeto dos professores. (Algumas) ouvem desde cedo 'esse menino n�o aprende mesmo, � burro' ou 'nasceu pra ser bandido'", prossegue Ribeiro.

Embora muitos conseguem superar essa narrativa, outros t�m sua vida marcada por ela, diz Ribeiro. "Trabalhei durante muito tempo no sistema socioeducativo (com jovens infratores), e essas senten�as s�o muito recorrentes: o menino que escuta desde pequeno que 'n�o vai ser nada na vida'. S�o trajet�rias sentenciadas."

3. Disparidades na sa�de e na educa��o

Os problemas descritos acima s�o potencializados pelo menor acesso aos servi�os p�blicos de sa�de, aponta Harvard.

"Pessoas de cor recebem tratamento desigual quando interagem em sistemas como o de sa�de e educa��o, al�m de terem menos acesso a educa��o e servi�os de sa�de de alta qualidade, a oportunidades econ�micas e a caminhos para o ac�mulo de riqueza", diz o documento do Centro de Desenvolvimento infantil.

"Tudo isso reflete formas como o legado do racismo estrutural nos EUA desproporcionalmente enfraquece a sa�de e o desenvolvimento de crian�as de cor."

Mais uma vez, os n�meros brasileiros apontam para um quadro parecido. Segundo levantamento do Minist�rio da Sa�de, 67% do p�blico do SUS (Sistema �nico de Sa�de) � negro. No entanto, a popula��o negra realiza proporcionalmente menos consultas m�dicas e atendimentos de pr�-natal.

E, entre os 10% de pessoas com menor renda no Brasil, 75% delas s�o pretas ou pardas.

Na educa��o, as disparidades persistem. Crian�as negras de 0 a 3 anos t�m percentual menor de matr�culas em creches. Na outra ponta do ensino, 53,9% dos jovens declarados negros conclu�ram o ensino m�dio at� os 19 anos — 20 pontos percentuais a menos que a taxa de jovens brancos, apontam dados de 2018 do movimento Todos Pela Educa��o.


Familiares das meninas Emilly e Rebecca, mortas a tiros,em encontro com o governador em exercício do Rio, Claudio Castro; Atlas da Violência aponta que negros foram 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil em 2018(foto: Rogerio Santana)
Familiares das meninas Emilly e Rebecca, mortas a tiros,em encontro com o governador em exerc�cio do Rio, Claudio Castro; Atlas da Viol�ncia aponta que negros foram 75,7% das v�timas de homic�dio no Brasil em 2018 (foto: Rogerio Santana)

4. Cuidadores mais fragilizados e 'racismo indireto'

Os efeitos do estresse n�o se limitam �s crian�as: se estendem tamb�m aos pais e respons�veis por elas — e, como em um efeito bumerangue, voltam a afetar as crian�as indiretamente.

"M�ltiplos estudos documentaram como os estresses da discrimina��o no dia a dia em pais e outros cuidadores, como ser associado a estere�tipos negativos, t�m efeitos nocivos no comportamento desses adultos e em sua sa�de mental", prossegue o Centro de Desenvolvimento Infantil.

Um dos estudos usados para embasar essa conclus�o � uma revis�o de dezenas de pesquisas cl�nicas feita em 2018, que aborda o que os pesquisadores chamam de "exposi��o indireta ao racismo": mesmo quando as crian�as n�o s�o alvo direto de ofensas ou viol�ncia racista, podem ficar traumatizadas ao testemunhar ou escutar sobre eventos que tenham afetado pessoas pr�ximas a elas.

"Especialmente para crian�as de minorias (raciais), a exposi��o frequente ao racismo indireto pode for��-las a dar sentido cognitivamente a um mundo que sistematicamente as desvaloriza e marginaliza", concluem os pesquisadores.

O estudo identificou, como efeito desse "racismo indireto", impactos tanto em cuidadores (que tinham autoestima mais fragilizada) como nas crian�as, que nasciam de mais partos prematuros, com menor peso ao nascer e mais chances de adoecer ao longo da vida ou de desenvolver depress�o.

Na inf�ncia, diz a psic�loga Cristiane Ribeiro, � quando come�amos a construir nossa capacidade de acreditar no pr�prio potencial para viver no mundo. No caso da popula��o negra, essa constru��o � afetada negativamente pelos estere�tipos racistas, sejam caracter�sticas f�sicas ou sociais — como o "cabelo pixaim" ou "servi�o de preto".


Valorização e representatividade impactam positivamente as crianças e, por consequência, suas famílias(foto: Getty Images)
Valoriza��o e representatividade impactam positivamente as crian�as e, por consequ�ncia, suas fam�lias (foto: Getty Images)

"A gente precisa ter refer�ncias mais positivas da popula��o negra como aquela que tamb�m � respons�vel pela constitui��o social do Brasil. A �nica representa��o que a gente tem no livro did�tico de hist�ria � de uma pessoa (escravizada) acorrentada, em uma situa��o de extrema vulnerabilidade e que est� ali porque 'n�o se esfor�ou para n�o estar'", diz a pesquisadora.

Mesmo atos "sutis" — como pessoas negras sendo seguidas por seguran�as em shopping centers ou recebendo atendimento pior em uma loja qualquer —, que muitas vezes passam despercebidos para observadores brancos, podem ter efeitos devastadores sobre a autoestima, prossegue Ribeiro.

"Isso que a gente costuma chamar de sutileza do racismo n�o tem nada de sutil na minha perspectiva. Quando algu�m grita 'macaco' no meio da rua, as pessoas compartilham a indigna��o. � diferente do olhar (preconceituoso), que s� o sujeito viu e s� ele percebeu. Mesmo para a militante mais empoderada e ciente de seus direitos — porque � uma luta sem descanso —, tem dias que n�o tem jeito, esse olhar te destro�a. A gente fala muito da for�a da mulher negra, mas e o direito � fragilidade? ser� que ser fr�gil tamb�m � um privil�gio?"

Como romper o ciclo

"Avan�os na ci�ncia apresentam um retrato cada vez mais claro de como a adversidade forte na vida de crian�as pequenas pode afetar o desenvolvimento do c�rebro e outros sistemas biol�gicos. Essas perturba��es iniciais podem enfraquecer as oportunidades dessas crian�as em alcan�ar seu pleno potencial", diz o documento de Harvard.

Mas � poss�vel romper esse ciclo, embora lembrando que as formas de combat�-lo s�o complexas e m�ltiplas.


"A gente fala muito da for�a da mulher negra, mas e o direito � fragilidade? ser� que ser fr�gil tamb�m � um privil�gio?", diz Cristiane Ribeiro (foto: Arquivo pessoal)

"Precisamos criar novas estrat�gias para lidar com essas desigualdades que sistematicamente amea�am a sa�de e o bem-estar das crian�as pequenas de cor e os adultos que cuidam delas. Isso inclui buscar ativamente e reduzir os preconceitos em n�s e nas pol�ticas socioecon�micas, por meio de iniciativas como contrata��es justas, oferta de cr�dito, programas de habita��o, treinamento antipreconceito e iniciativas de policiamento comunit�rio", diz o Centro de Desenvolvimento Infantil de Harvard.

Para Cristiane Ribeiro, passos fundamentais nessa dire��o envolvem mais representatividade negra e mais discuss�es sobre o tema dentro das escolas.

"Se tenho uma escola repleta de negros ou pessoas de diferentes orienta��es sexuais, mas isso n�o � dito, n�o � tratado, voc� tem a mesma segrega��o que nos outros espa�os", opina.

"Precisamos extinguir a ideia do 'l�pis cor de pele'. Tem tanta cor de pele, porque um l�pis rosa a representa? Tem tamb�m a crian�a com cabelo crespo em uma escola onde s� s�o penteados os cabelos lisos. Se a professora der conta de tratar aquele cabelo de uma forma t�o afetiva quanto ela trata o cabelo lisinho, ela mudar� o mundo daquela crian�a, inclusive incluindo nessa crian�a defesa para que ela responda quando seu cabelo for chamado de duro, de feio. E da� ela se olha no espelho e v� beleza, que � um direito que est� sendo conquistado muito aos poucos. A chance � de que fa�a diferen�a pra fam�lia inteira. A crian�a negra que fala 'n�o, m�e, meu cabelo n�o � feio' desloca aquele ciclo naquela fam�lia, de todas as mulheres alisarem o cabelo. (...) Um olhar afetivo nessa hist�ria quebra o ciclo."

O afeto e a constru��o de redes de apoio tamb�m s�o apontados por Harvard como formas de aliviar o peso do estresse t�xico e construir resili�ncia em crian�as e fam�lias.

"� claro que a ci�ncia n�o consegue lidar com esses desafios sozinha, mas o pensamento informado pela ci�ncia combinado com o conhecimento em mudar sistemas entrincheirados e as experi�ncias vividas pelas fam�lias que criam seus filhos sob diferentes condi��es podem ser poderosos catalisadores de estrat�gias eficientes," defende o Centro para o Desenvolvimento Infantil.


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