
O americano Steve Callahan passou 76 dias � deriva em um pequeno bote de borracha, perdido no meio do Oceano Atl�ntico, tendo que arrumar comida e �gua todos os dias e ainda enfrentar toda esp�cie de perigos.
Sua hist�ria, um atestado da capacidade, da criatividade e da perseveran�a do ser humano, � contada em um epis�dio do podcast Que Hist�ria!, da BBC News Brasil.
No final de janeiro de 1982, o arquiteto naval e velejador deixou as Ilhas Can�rias no Atl�ntico, perto da costa norte da �frica, viajando sozinho no veleiro Napoleon Solo, desenhado e constru�do por ele mesmo. Callahan seguia rumo a ilha de Ant�gua, no Caribe.
Tudo ia bem, at� a chegada, alguns dias depois, de uma forte tempestade.
"Nessa noite, os ventos foram ficando cada vez mais fortes, e eu finalmente consegui deitar para dormir um pouco", contou ele ao programa Witness History, da BBC.
"Cerca de uma hora depois, ouvi um forte estrondo na lateral do barco. Um tremendo barulho. De repente, come�ou a entrar muita �gua. Um jorro de �gua, tipo de um hidrante. Eu achei que o barco estivesse afundando de vez, mas, por sorte, a ventania e o movimento das ondas estavam mantendo o barco na superf�cie. A parte da frente estava toda dentro da �gua, mas a de tr�s estava pra fora. Isso me deu a chance de sair do barco.""Subi ao conv�s, inflei o bote salva-vidas, coloquei ele no mar ao lado do barco, e entrei nele. Eu percebi que o barco n�o iria afundar de uma vez. Eu sabia que estava no meio do oceano e que as chances de sobreviver com as coisas que estavam no bote eram m�nimas. Puxei a corda que me prendia ao barco, subi a bordo e mergulhei na cabine.
"Estava completamente escuro. Eu ficava nadando e tateando as coisas. Achei um kit de emerg�ncia, um peda�o de espuma, um saco de dormir. N�o era muita coisa, mas foi o que consegui encontrar no meio do temporal, no barco sendo chacoalhado e a�oitado pelas ondas e ventos. Quando voltei pro bote, estava completamente exausto. At� achei que poderia tentar tirar a �gua do barco quando amanhecesse. Mas ap�s uma forte onda, de repente notei um momento de relativa calma, e, quando olhei, vi que estava � deriva, me distanciando do barco."
Steve n�o sabia o que tinha causado o enorme rombo na lateral do barco — possivelmente uma baleia. Mas isso n�o faria diferen�a agora. Ele estava sozinho num bote salva-vidas de borracha e ningu�m sabia disso.
"E agora? Todas as regras de uma vida normal j� n�o existiam mais. � uma sensa��o avassaladora. E voc� sabe que muitas pessoas sobrevivem ao impacto inicial, lidam com a primeira amea�a numa crise, mas morrem depois. Tinha uma parte de mim completamente apavorada e desesperada que pensava: 'voc� vai morrer! voc� vai morrer!'. Mas a outra parte, acostumada a enfrentar situa��es no mar, dizia: 'cala boca!'. E essas duas vozes na minha cabe�a me acompanhavam o tempo todo."
"Comecei a rever a minha vida, em como fui teimoso, nos erros que cometi, nas pessoas que decepcionei, sempre fui ruim em rela��es pessoais, ruim em ganhar dinheiro. Eu estava me punindo e ao mesmo tempo pensando como vou sobreviver no oceano, no que ironicamente � como o maior deserto do mundo."

Seu bote laranja estava sendo levado aos poucos por ventos e correntes para o oeste, ou seja, na dire��o do continente americano. Suas chances estavam ou em ser avistado por um navio ou em conseguir, de algum jeito, chegar ao Caribe ou � Am�rica do Sul.
O problema � que esses lugares estavam a mais de 3.200 quil�metros, uma jornada que levaria meses. E os suprimentos de comida e �gua no kit de emerg�ncia durariam apenas alguns dias. Ele j� tinha atravessado o Atl�ntico antes e sabia dos riscos e desafios que enfrentaria para permanecer vivo.
"No in�cio, me manter aquecido foi um dos principais desafios, sobretudo � noite. E principalmente porque estava molhado metade do tempo, e ventava muito. Voc� pode morrer de hipotermia em quest�o de minutos ou horas. Depois tem a sede. Voc� consegue viver at� dez dias sem �gua, se tiver sorte. Tive muitos problemas para conseguir �gua, porque chovia muito pouco. Eu dependia dos purificadores solares de �gua, que estavam no kit de emerg�ncia. Estruturas parecidas com bal�es. Voc� p�e �gua dentro, o sol faz a �gua evaporar e esse vapor � coletado e vira a �gua que voc� bebe. Eu nunca tinha encontrado algu�m que soubesse fazer esses purificadores funcionarem. Levou um bom tempo para eu aprender a us�-los, e produzir cerca de meio litro de �gua por dia."
"Tudo o que flutua no mar vira uma ilha e desenvolve sua pr�pria ecologia. Algas e cracas come�aram a se prender no bote, e atra�am peixes menores, que, por sua vez, atra�am peixes maiores. Por sorte eu tinha conseguido recuperar do barco uma espingarda de arp�o, praticamente um brinquedo. Era bem dif�cil de pegar peixes. Foi s� no 14º dia que eu consegui pegar um."
"A essa altura, depois de duas semanas, eu estava faminto. O peixe cru, um dourado-do-mar, estava uma del�cia. Mas ao poucos eu passei a ter menos interesse na carne, e mais, nas outras partes mais gosmentas. Os olhos, por exemplo, eram como duas bolinhas de flu�dos. Cora��es, ovas, f�gado...ou mesmo o conte�do do est�mago. Os dourados comiam outros peixes, que muitas vezes estavam semidigeridos no est�mago, e eu dizia, 'Oba! Pickles!'. Acho que meu corpo sabia que essas coisas eram essenciais para minha sobreviv�ncia. Eles supriam os minerais e vitaminas que eu n�o teria como arrumar de outro jeito, nessa dieta praticamente � base de prote�na. Mas mesmo com peixes, eu n�o estava ingerindo nutrientes suficientes. Eu perdi um ter�o do meu peso, praticamente tudo na parte de baixo do meu corpo."
'� a coisa mais linda que voc� pode imaginar'
Callahan conseguia se proteger do sol porque seu bote salva-vidas tinha uma barraca. Ele conseguia se orientar depois de construir, com l�pis, uma forma rudimentar de sextante — usando a posi��o da Estrela do Norte, ou Polaris, no c�u como refer�ncia. Assim, ele poderia mais ou menos saber onde estava e para onde estava indo, e sabia que a corrente estava levando o bote na dire��o do Caribe.

Ele fazia exerc�cios, consertos no barco, e apesar da fome e e sede cr�nicas, Callahan conseguiu desfrutar um pouco das maravilhas desse seu novo mundo.
"Quando voc� est� no meio do oceano desse jeito, est� mais distante da humanidade do que um astronauta na �rbita do planeta. N�o h� uma sensa��o maior do que essa, estar num lugar onde o passado ou o futuro n�o significam nada, onde voc� est� totalmente focado no agora. E num bote voc� est� observando coisas...� como a diferen�a entre estar guiando um carro e andando. Voc� v� as coisas."
"Foi t�o lindo observar a evolu��o do ecossistema em torno do barco. Os peixes eram lindos. Os dourados-do-mar, al�m de prover minha alimenta��o, me faziam companhia. Eu passei a identificar cada um pelas cores, ou cicatrizes ou mesmo pelo jeito como se comportavam."
"Havia um macho grande que sempre aparecia no fim da tarde e gostava de ficar batendo no bote, movendo ele na �gua. Eram criaturas espirituais. A natureza � tocante. � noite, esse c�u incr�vel � refletido pela �gua, e voc� tem a sensa��o de estar flutuando no c�u."
"E tem, a bioluminesc�ncia do mar. S�o como bilh�es de pirilampos. Tudo brilha. Um golfinho passa e voc� v� o contorno dele percorrendo essa longa trilha de luzes...� a coisa mais linda que voc� pode imaginar. E eu acordava � noite, olhava pra fora e via tipo 50 dourados ao redor do bote, pareciam bandejas de prata flutuando lentamente no oceano. Era impressionante. Claro, tinha horas em que eu via uma barbatana ou rabo de um tubar�o. Mas mesmo essas experi�ncias foram extremamente preciosas para mim."
As semanas foram passando e ele chegou a ver alguns navios � dist�ncia. Mas n�o foi visto por nenhum deles. E no 43º dia veio um desastre.
"Tive um acidente que quase acabou comigo. Um dourado quebrou a haste do arp�o, deu a volta e bateu com a ponta do arp�o no tubo de baixo da lateral do bote, abrindo um buraco do tamanho de uma boca. A �gua come�ou a entrar aos poucos. A essa altura, eu tava com as m�os cheias de feridas causados pela longa exposi��o � �gua do mar. J� tava bem dif�cil ca�ar peixes e produzir �gua pot�vel. Passei dez dias nessa situa��o fazendo remendos no buraco. Toda vez que bombeava ar, o remendo abria. Tinha de encontrar um jeito para fechar esse vazamento."

"Mas n�o conseguia pensar numa solu��o. Depois de dez dias eu estava desesperado. E ainda tinha um tubar�o, bastante persistente, que circulava o bote h� dias. Quase desisti de tudo. Mas eu tive de me dar uns tapas. 'Acorda!'. Parei de pensar no que as coisas s�o feitas e comecei a pensar no que elas podem fazer. E me lembrei subitamente de um garfo de escoteiro que tinha guardado na minha bolsa. Com esse garfo, consegui finalmente, prender o remendo, dobrando ele pra dentro e juntando as partes usando as pontas do garfo para fechar o buraco."
A ilha
Mais dias se passaram, depois, semanas. De repente come�aram a aparecer tipos de p�ssaros que podiam indicar a presen�a de terra por perto. Finalmente, na madrugada do 76º dia no oceano, ele p�de ver, l� longe, os contornos de uma pequena ilha.
"Eu vi essa ilha, chamada Maria Galante, do arquip�lago de Guadalupe. Eu estava a tipo dez quil�metros de dist�ncia, mas conseguia identificar as casas na praia. Mas eu tamb�m notei que havia um recife de corais pela frente, o que poderia ser perigoso. Mais perigoso ainda seria eu tentasse chegar pelo outro lado, onde toda a for�a do mar batia contra fal�sias e recifes. Eu estava bem preocupado que, depois de toda essa viagem, eu acabaria encontrando a morte na chegada � terra."
"E minha salva��o foram os dourados e todo o ecossistema em volta do meu bote. Porque os peixes atra�ram um monte de p�ssaros. E pescadores viram essa aglomera��o de p�ssaros no mar, e pensaram 'Opa! Ali deve ter um monte de peixe!'. E vieram para o mar, encontraram os peixes, mas tamb�m, essa ilha flutuante que vagou pelo oceano por dois meses e meio."
"Foi uma festa de emo��es. Bastante intensas. Quando cheguei � praia, foi realmente como se tivesse renascido. Coisas banais como uma cor que eu n�o tinha visto todo esse tempo...'Vermelho! Nossa que lindo!'. Ou vozes humanas. Quando ouvi algu�m cantando pela primeira vez , foi como se estivesse no c�u. Foi muito especial."
Steve Callahan se recuperou rapidamente e poucas semanas depois estava de volta ao mar, pegando carona em barcos viajando por ilhas do Caribe.
De volta aos Estados Unidos, escreveu um livro narrando suas experi�ncias, que ficou 36 semanas na lista dos mais vendidos do New York Times. Callahan se tornou uma celebridade e foi consultor do premiado filme As Aventura de Pi, de Ang Lee. Ele diz que pensa na sua viagem todo dia.
"Sou muito grato por ter tido essa experi�ncia. Ela me mostrou tantos caminhos e tantas coisas sobre mim que eu jamais saberia. Principalmente que a gente pode ser bem mais forte e resiliente do que imagina. Sou bastante grato pela experi�ncia...mas foi um inferno!"
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