
Esqueletos de baleias repousam ao longo do litoral de Fuerteventura, nas ilhas Can�rias (Espanha), como um lembrete brutal dos efeitos prejudiciais dos sonares militares. Acredita-se que o sonar dos navios e submarinos seja um dos fatores que contribuem para o encalhe das baleias, confundindo o pr�prio sonar dos animais e fazendo com que elas se dirijam �s praias.
Mas essa tecnologia prejudicial para as baleias pode ter um concorrente em breve.
Lori Adornato, gerente de projetos da ag�ncia de pesquisa militar americana Darpa, acredita que poderemos detectar submarinos se prestarmos mais aten��o aos sons naturais, em vez de permanecer disparando pulsos de sonar.
"Atualmente, tratamos todos esses sons naturais como ru�do de fundo ou interfer�ncia, e estamos tentando mudar isso", diz Adornato. "Por que n�o fazer uso desses sons e ver se conseguimos encontrar um sinal?"
Seu projeto, batizado de Sensores Aqu�ticos Vivos Persistentes (Pals, na sigla em ingl�s), "escuta" animais marinhos como uma forma de detectar amea�as subaqu�ticas.
As boias de sonar atuais, lan�adas do ar — desenvolvidas pelos militares para detectar atividade subaqu�tica dos inimigos — funcionam apenas por algumas horas em uma �rea pequena, devido � vida limitada da bateria. J� o sistema Pals poder� cobrir uma regi�o ampla por meses.
Ele poder� fornecer monitoramento quase constante das linhas costeiras e dos canais subaqu�ticos. Adornato afirma que as esp�cies que habitam recifes e permanecem sem sair do lugar de forma confi�vel provavelmente ser�o as melhores sentinelas. "Voc� precisa ter certeza de que o seu organismo estar� sempre ali", afirma a especialista.
O projeto Pals est� financiando diversas equipes para investigar diferentes linhas de pesquisa, utilizando esp�cies muito diferentes que vivem nos recifes.

Garoupa-preta
Laurent Cherubin, da Universidade Atl�ntica da Fl�rida, nos Estados Unidos, coordena uma equipe que pesquisa a garoupa-preta, um peixe comum nas �guas americanas, que pode pesar at� 300 kg e � conhecido por emitir sons altos.
"� um som alto, por�m em baixa frequ�ncia", explica Cherubin. "As garoupas-pretas s�o territoriais e costumam emitir esses sons quando flagram um intruso em seu territ�rio."
Os sons produzidos por esse peixe podem ser detectados a 800 metros de dist�ncia, mas nem sempre o objetivo � afastar intrusos e predadores. As garoupas-pretas tamb�m emitem sons para acasalar, delimitar territ�rio e outros fins, que ainda permanecem um mist�rio.
A equipe est� agora focada nos chamados de alerta, algo como tentar ouvir o latido de um c�o de guarda contra intrusos, segundo Cherubin. Diferenciar esses chamados dos demais n�o � f�cil e, por isso, a equipe criou algoritmos de aprendizado de m�quina para essa tarefa. Foram necess�rias milhares de grava��es at� que os algoritmos conseguissem distinguir e classificar diferentes chamados das garoupas.
O algoritmo pode ser ent�o transformado em software, que � conduzido em um processador pequeno, mas poderoso, instalado em um microfone subaqu�tico, ou hidrofone. Um conjunto de hidrofones pode cobrir um recife, ouvindo chamados das garoupas e acompanhando-as, � medida que a causa para os chamados se move de um territ�rio de garoupas para outro.

Camar�o-pistola
Analisar as conversas entre os peixes pode parecer bizarro, mas o trabalho do projeto Pals no provedor de sistemas de defesa Raytheon � muito mais parecido com o sonar antissubmarinos tradicional — na verdade, com uma diferen�a importante.
"Estamos tentando detectar os ecos criados quando os ru�dos dos camar�es s�o refletidos pelos ve�culos", afirma a cientista Alison Laferriere, da Raytheon. "� bastante parecido com um sistema de sonar tradicional que detecta ecos do som gerado pela sua fonte."
Em outras palavras, o sistema funciona como outro sonar normal, mas utiliza ru�dos produzidos por camar�es, em vez dos artificiais.
O camar�o-pistola, tamb�m chamado de camar�o-estalo, � conhecido por emitir o som mais alto produzido por qualquer criatura viva na Terra — 210 decib�is (a t�tulo de compara��o, a decolagem de um avi�o a jato gera 120 decib�is).
Esse invertebrado produz seu estalo caracter�stico fechando suas pin�as com tanta rapidez que gera energia s�nica suficiente para atordoar a presa.
O camar�o-pistola tamb�m se comunica entre si. Um grupo de camar�es-pistola emite um rugido constante que Laferriere compara com o barulho de fritar bacon.
"O sinal criado por um camar�o-pistola possui dura��o muito curta e amplitude incrivelmente ampla", afirma Laferriere. "Um �nico estalo � muito mais silencioso que uma fonte de sonar tradicional, mas pode haver milhares de estalos sendo disparados por minuto."
Laferriere explica que o som varia com a hora do dia e a temperatura da �gua, mas uma col�nia de camar�es nunca fica em sil�ncio.
"Um dos maiores desafios que enfrentamos � lidar com a enorme quantidade de ru�do criada pelos camar�es-pistola e os reflexos de todos esses sons para fora da �rea circunvizinha", afirma Laferriere.
Interpretar esses reflexos � um grande desafio, pois, ao contr�rio do sonar tradicional, a localiza��o da fonte do som � desconhecida. Novamente, a solu��o � usar o software moderno.
A equipe de Laferriere desenvolveu algoritmos inteligentes para analisar o som e selecionar um �nico estalo, calculando em primeiro lugar a localiza��o do camar�o e depois o trajeto percorrido pelo som refletido, deduzindo, por fim, onde ele foi refletido.
Para compreender o som de retorno, a equipe de Laferriere precisou criar modelos computadorizados para determinar quais ecos vieram de objetos de fundo e poderiam ser ignorados. A elimina��o desses ecos evidencia os objetos em movimento pelo ambiente — que podem ser peixes, submarinos ou ve�culos subaqu�ticos n�o tripulados.
Novamente, a solu��o finalizada ser� um conjunto de hidrofones inteligentes com computa��o a bordo, capazes de processar os sons dos camar�es e determinar a localiza��o de eventuais alvos de interesse na regi�o.
Outras equipes do projeto Pals v�m realizando estudos semelhantes. Pesquisadores da empresa Northrop Grumman est�o trabalhando em outro sistema de sonar utilizando camar�es e uma equipe da Marinha americana est� pesquisando os sons gerais dos recifes e como eventuais intrusos os afetam.
Todos prometem uma imensa rede de sensores que cobrir� amplas regi�es por extensos per�odos, com a maior parte do hardware convenientemente fornecido pela natureza. Apenas os hidrofones precisar�o de reparos ou substitui��es.

Vai funcionar?
"O estudo da Darpa ser� realmente uma importante inova��o, se for bem-sucedido", afirma Sidharth Kaushal, especialista em equipamento militar naval do think tank (centro de pesquisa e debates) brit�nico RUSI. "Um ecossistema de sensores vivos dispersos em flutua��o permanente, em princ�pio, � algo tentador."
Em princ�pio, mas n�o necessariamente na pr�tica. Kaushal tem suas d�vidas porque projetos anteriores usando a vida marinha para detectar submarinos n�o tiveram sucesso.
Submarinos alem�es chegaram a ser identificados devido ao efeito causado sobre o pl�ncton bioluminescente, que emite uma luz brilhante quando perturbado — e um desses submarinos supostamente chegou a ser afundado gra�as a esse efeito na Primeira Guerra Mundial. Mas tentativas posteriores de usar esse fen�meno de forma mais ampla, com sensores especiais buscando as fontes de luz em uma �rea maior, tiveram pouco sucesso.
"Os esfor�os sovi�ticos e americanos durante a Guerra Fria para us�-los de forma sistem�tica n�o resultaram em nada", afirma Kaushal. "Em parte, porque eles n�o tinham como diferenciar os falsos positivos, como a rea��o de uma baleia que passava, do objeto real."
Ainda n�o se sabe qual ser� a qualidade da distin��o que o Pals poder� fazer entre um submarino e um tubar�o, por exemplo. Lori Adornato acredita que a combina��o entre os organismos marinhos e os algoritmos inteligentes modernos fornecer� um "aviso de trajeto" confi�vel, para orientar os ca�adores de submarinos mais tradicionais a verificar um poss�vel intruso.
Adornato afirma que as tecnologias desenvolvidas para o projeto Pals poder�o tamb�m ser empregadas para pesquisas cient�ficas, monitorando os recifes e outros ambientes subaqu�ticos com um conjunto de sensores.
"Esses sistemas de observa��o de baixo impacto podem ser desenvolvidos em muitos ambientes diferentes, sem prejudicar o ecossistema estabelecido pela natureza", diz ela.
Sintonizar os sons produzidos pela vida marinha normal e aprender como eles se alteram ofereceria aos pesquisadores uma forma barata e ecol�gica de rastrear o impacto das atividades humanas debaixo d'�gua. Isso seria �til para projetos como geradores e�licos, extra��o de petr�leo e minera��o subaqu�tica em alto mar, pois tudo o que precisar�amos fazer � ouvir a natureza.
O projeto concentra-se em esp�cies comuns nas �guas territoriais americanas, de forma que sua replica��o em outras regi�es n�o seria necessariamente f�cil. Mas a tecnologia, de forma geral, pode ser aplicada de forma mais ampla.
O projeto Pals completou sua primeira fase, que foi um estudo de viabilidade para duas abordagens diferentes, de monitoramento das rea��es a intrusos das esp�cies que vivem nos recifes e do sonar do camar�o-pistola. Os desenvolvedores agora est�o trabalhando em uma segunda etapa, para demonstrar como suas solu��es funcionam em testes controlados, no ver�o do hemisf�rio norte de 2022.
Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Future.
'Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-61918488'
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