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Estado de Minas CI�NCIA

Como seria a vida se n�o houvesse mais natureza

Diante do colapso ambiental, a humanidade pode precisar recorrer a substitutos artificiais para a natureza


17/07/2022 14:48 - atualizado 17/07/2022 14:48

Cultivo de microalgas na China
Cultivar algas em um ambiente sint�tico � uma das diversas formas para substituir os servi�os ecossist�micos da natureza (foto: Yang Zhili/Getty Images)
Nos primeiros minutos do filme de fic��o cient�fica Blade Runner 2049, um carro de pol�cia sobrevoa uma paisagem que foi transformada pela agricultura sint�tica.

 

Espelhos dispostos concentricamente para capturar a energia solar se inclinam em dire��o a torres centrais, como devotos voltados para Meca, circunfer�ncia ap�s circunfer�ncia, se perdendo no horizonte.

 

Mais adiante, um mosaico de fazendas cobertas por pl�stico cobre cada cent�metro de terra, brilhando � luz do Sol como facetas de um verniz rachado.

 

Dentro de cada uma destas c�lulas, um trabalhador vestindo traje de prote��o draga um punhado de larvas de besouros que se contorcem de dentro de um tanque com �gua verde musgo.

Ficamos sabendo que estas t�cnicas agr�colas salvaram a humanidade da fome causada pelo colapso ecol�gico em meados da d�cada de 2020.

 

O planeta inteiro est� devastado, contendo nada al�m de rel�quias altamente cobi�adas de organismos "reais" e um clima disfuncional caracterizado pela poeira seca.

 

Ainda assim, humanos sobrevivem e at� prosperam — pode n�o haver mais nada selvagem, mas eles podem criar animais replicantes perfeitamente projetados para substituir as coisas reais.

 

O "cord�o umbilical" metaf�rico que conecta a sobreviv�ncia humana e a biosfera foi realmente cortado.

 

Ao longo de 2020 e 2021, enquanto o mundo se recolhia por causa da pandemia de covid-19, me peguei refletindo sobre esta representa��o sombria, como parte do meu trabalho no Centro para o Estudo do Risco Existencial (CSER, na sigla em ingl�s) da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

 

Fiquei intrigada sobre como seria o futuro uma vez que a humanidade tivesse superado a covid-19, e a crise clim�tica-ecol�gica mais uma vez veio � tona.

 

Se a degrada��o ambiental severa continuar, um caminho plaus�vel � aquele em que os seres humanos, por necessidade, se desvinculam de uma biosfera que deixa de funcionar.

 

Um pensamento n�o sa�a da minha cabe�a, algo que o pesquisador de sistemas complexos Brad Werner falou em uma grande confer�ncia cient�fica em 2012.

 

Em uma palestra intitulada "Is Earth F**ked?", ele disse que o capitalismo global, auxiliado pela tecnologia, "tornou o esgotamento de recursos t�o r�pido, conveniente e livre de barreiras que os 'sistemas humano-Terra' est�o se tornando perigosamente inst�veis em resposta".

 

E se, como Werner sugeriu, a Terra realmente estiver com problemas e os sistemas naturais do planeta estiverem fadados a entrar em colapso e morrer?

Vamos desenvolver c�pias artificiais para substitu�-los, como em Blade Runner? E se isso acontecer mesmo, como seria esse mundo?

 

Estas perguntas me levaram a publicar um artigo analisando as consequ�ncias e os perigos de cortar o cord�o umbilical entre os seres humanos e a biosfera humana e como este processo pode j� ter come�ado.

 

A humanidade j� est� no caminho da dissocia��o dos sistemas naturais — ent�o, se quisermos evitar os piores cen�rios desta trajet�ria, o que podemos fazer a respeito?

 

Diante de um iminente colapso dos sistemas naturais da Terra, falar sobre dissocia��o n�o � mais fic��o cient�fica. Em alguns casos, ela se manifesta como "reparos" cada vez mais profundos para preservar nossa busca por uma vida boa.

 

Por exemplo, os cientistas come�aram a inventar maneiras de sintetizar "servi�os ecossist�micos" — como poliniza��o ou outros processos naturais que beneficiam a sociedade humana.

 

Na produ��o de alimentos, isso envolve tentar plantar sob luz artificial no subsolo, cultivar microalgas, micoprote�nas e larvas em biorreatores e introduzir genes modificados para aumentar a resili�ncia de esp�cies agr�colas �s mudan�as ambientais.


Outras vezes, a desvincula��o proposta � enquadrada como uma forma de escapismo.

 

O rec�m apresentado "metaverso", por exemplo, promete uma forma de distanciamento espacial, laboral e recreativo da "vida real" do mundo f�sico: por que visitar uma floresta ou lago polu�do quando voc� pode acessar uma simula��o digital quase perfeita de um ambiente limpo a partir da sua casa?

 

Em outros lugares do Vale do Sil�cio, tecn�logos e bilion�rios falam da necessidade de abandonar completamente um planeta Terra degradado — e est�o dando os primeiros passos para desenvolver naves espaciais com destino a Marte.

 

Mesmo que a gente n�o se separe fisicamente da natureza a este ponto, um futuro tecnologicamente adaptado, em que o mundo � projetado e modificado em torno das nossas a��es, � visto por alguns como aceit�vel, se n�o necess�rio, para atender �s duras condi��es do futuro.

 

A verdade prov�vel � que a tecnologia pode ser a �nica maneira clara de escapar de futuros desastres, dadas as escalas de tempo terrivelmente curtas envolvidas.

 

At� mesmo a redu��o ou restri��o generalizada da atividade humana, dados os recentes lockdowns globais, mal afetou as emiss�es e outras pr�ticas destrutivas.

 

Algumas pessoas podem acreditar que a desvincula��o n�o precisa ser uma preocupa��o. A amea�a de um mundo exclusivamente humano-tecnol�gico n�o seria uma distopia para muita gente.

 

Os defensores do transumanismo, por exemplo, imaginam um futuro em que os humanos transcenderam seu estado atual para se combinar com a tecnologia — nos casos mais extremos, evoluindo para seres digitais "uploadados".

 

Esta n�o � a minha perspectiva, mas no passado fui definitivamente seduzida por uma vis�o de transumanismo "verde": uma ideia explorada pela escritora feminista Donna Haraway.

 

Isso prop�e que, em vez de buscar preservar os sistemas naturais, possamos nos integrar geneticamente � biosfera, de modo que tanto o humano quanto o natural sejam transformados.

 

Eu via isso como uma tentativa de preservar esp�cies amea�adas de extin��o, agindo como arcas biol�gicas para o futuro, ou como uma forma de aniquila��o bela rumo a uma ecologia estranha no futuro.


O pouso do robô Perseverance, da Nasa, sendo transmitido ao vivo em Piccadilly Circus, em Londres, em 18 de fevereiro de 2021
A vida em Marte, sem natureza, seria uma exist�ncia dif�cil (foto: Stuart C. Wilson/Getty Images)

 

No entanto, um mundo Blade Runner que cont�m apenas humanos e mat�ria tecnologicamente organizada sob seu controle, seria um deserto de m�quinas, em vez de org�nico.

 

Nesse futuro, o transumanismo verde n�o seria sequer poss�vel.

 

Ou n�o haveria mais nada para ser absorvido, ou os valiosos peda�os da biosfera seriam totalmente absorvidos por n�s, assimilados e mudados, apropriados, e o restante desapareceria.

Contrabalan�ando a complexidade

Ent�o, para onde vamos a partir daqui? Poderia haver alternativas para as formas mais extremas de dissocia��o? N�o h� respostas f�ceis, mas eu proporia uma sugest�o.

 

Permita-me apresentar a voc�s uma ferramenta conceitual — uma met�fora para explorar este espa�o. Imagine um gradiente que representa toda a complexidade material do mundo, com a extrema complexidade da mat�ria "auto-organizada" em uma extremidade e a mat�ria conscientemente "projetada" na outra.

 

Ent�o, nesta �ltima extremidade pode estar — por exemplo — a mais delicada e primorosamente projetada estrutura humana (a intelig�ncia artificial ou um supercomputador, quem sabe) e, no outro extremo, o ecossistema mais selvagem e diversificado.

 

Um ponto intermedi�rio pode representar algo vivo, mas altamente modificado e controlado, como planta��es de monocultura ou um jardim ornamental.

 

Este gradiente atua como uma ferramenta conceitual para ligar diferentes partes do espectro da exist�ncia material.

 

Nos tempos modernos, houve um r�pido decl�nio por parte da complexidade natural auto-organizada e um aumento substancial por parte da complexidade da engenharia humana.

 

Uma floresta � transformada em mina e depois em eletr�nicos. Trilh�es de organismos s�o utilizados como alimento e decompostos para alimentar os corpos humanos e as inven��es.

 

Arranha-c�us se erguem, economias s�o criadas, terras s�o arrasadas ou ecossistemas complexos s�o substitu�dos por outros mais simples.

 

Como resultado desta atividade, 68% da biodiversidade foi perdida desde 1970, e a quantidade de mat�ria feita pelo homem, incluindo concreto, pl�stico e tijolos, agora supera a massa total de mat�ria biol�gica no planeta.

 

Mas e se o criador de cada nova coisa "feita pelo homem" tivesse a obriga��o de criar seu oposto neste gradiente?

 

Por exemplo, uma forma de investimento em biodiversidade ou renaturaliza��o seria instigada quando algo � adicionado no lado da engenharia.

 

H� uma profunda simetria na ideia de que qualquer complexidade constru�da ou criada de um lado deve ser igualmente substitu�da ou protegida do outro para que o sistema permane�a est�vel.

 

A compensa��o n�o � uma ideia nova, e eu certamente n�o gostaria de receber nenhum cr�dito aqui por isso.

 

Estamos mais acostumados a encontr�-la no contexto das viagens a�reas: voc� pode pagar para uma empresa plantar �rvores que consomem CO2.

 

Em termos de compensa��o de carbono, as �rvores s�o um bom candidato para o oposto polar da polui��o do ar no gradiente descrito acima, mesmo que a pr�tica atualmente esbarre em problemas em termos da demora no sequestro de carbono e monoculturas de �rvores doentes.

 

No entanto, embora a polui��o ou os danos ambientais ilegais �s vezes sejam multados ou tributados, a compensa��o raramente � considerada para outros processos que n�o seja a produ��o de carbono — e os saques feitos diretos da natureza para novas cria��es humanas n�o s�o "precificados".

 

Outra categoria bem estabelecida de compensa��o � a reserva de terras para parques nacionais, cintur�es verdes para conter cidades ou reservas naturais para preservar ecossistemas valiosos.

 

Estes programas, por�m, s�o muitas vezes realizados por governos, e muitas vezes h� uma liga��o direta menor entre os construtores de projetos de engenharia, como um novo bloco habitacional ou f�brica, e as �reas de regenera��o ou reflorestamento.

 

Embora os esfor�os nacionais possam ter impacto, seria inspirador ver o �nus da restaura��o recair mais significativamente sobre aqueles que est�o desequilibrando diretamente o sistema.

 

Por exemplo, o governo do Reino Unido introduziu recentemente uma legisla��o de Ganho L�quido da Biodiversidade (BNG, na sigla em ingl�s), segundo a qual todos os novos desenvolvimentos precisam proporcionar uma melhoria de 10% na biodiversidade local.

 

Em outros lugares, experimentos com compensa��es mais amplas tamb�m est�o come�ando a acontecer.

 

Para dar um exemplo espec�fico, um estudo recente liderado por Katie Devenish, da Universidade de Bangor, no Pa�s de Gales, e seus colegas mostrou que uma opera��o de minera��o em Madagascar compensou com sucesso a perda de floresta causada por uma nova mina ao diminuir o desmatamento em outras partes do pa�s.

 

H� tamb�m projetos recentes baseados nos chamados princ�pios da "natureza positiva", que visam construir resili�ncia ecol�gica e reverter perdas.

 

A Operation Wallacea, uma organiza��o de pesquisa sobre biodiversidade e clima, concebeu cr�ditos de biodiversidade para rastrear as melhorias tang�veis da biodiversidade em qualquer �rea e desenvolver um padr�o internacional de cr�dito de biodiversidade que poderia ser negociado da mesma forma que um cr�dito de carbono.

 

Estou ciente de que a compensa��o n�o � uma panaceia, e tamb�m pode criar dilemas morais.

 

O escritor e ambientalista George Monbiot, por exemplo, comparou a compensa��o � venda de indulg�ncias pela Igreja Cat�lica no s�culo 16, quando os pecadores podiam, de fato, pagar para anular suas m�s a��es.

 

� verdade que a ideia corre o risco de greenwashing (falso marketing verde) ou de dar sinal verde a processos prejudiciais, mas eu diria que qualquer ato de reposi��o, e de prefer�ncia equivalente, � melhor do que nenhum.

Uma verdade duradoura

Al�m dos benef�cios pr�ticos, acredito que pode haver raz�es mais profundas para adotar uma abordagem de equilibrar a complexidade humana desta maneira, enraizada em ideias humanas atemporais.

 

Enquanto pensava na met�fora do gradiente, havia algo sobre os dois tipos de complexidade material — a engenharia humana extrema de um lado, e a selvageria org�nica total de outro — que me lembrava o conceito de integridade psicol�gica; o equil�brio dos elementos conscientes e inconscientes da psique.

Nas hist�rias e no simbolismo, a ideia de equil�brio e combina��o de opostos aparece continuamente ao longo de milhares de anos — abrangendo mitologias, religi�es e filosofias em todo o mundo.

Nos antigos princ�pios do tao�smo, do preto e branco do yin e do yang, nascem as "10 mil coisas": todas as esp�cies de animais, humanos, toda a vida, mat�ria e todas as formas de tecnologia tamb�m.

Os gregos antigos conceberam Dion�sio e Apolo: os deuses da devassid�o prazerosa e do decoro iluminado, respectivamente.

N�o � incentivado viver uma vida puramente de um ou de outro, e como Friedrich Nietzsche apontou, a fus�o dos modos de ser dionis�aco e apol�neo � o que cria os arcos dram�ticos ou significados neste mundo.

O princ�pio dos opostos fundamenta at� mesmo as filosofias e experimentos da alquimia antiga, com a purifica��o e combina��o de opostos vista como um objetivo final.

Nestes exemplos, dizer que existem opostos n�o significa que um � ruim e o outro � bom.

Trata-se, acima de tudo, que o alto n�o pode existir sem o baixo, a mat�ria sem a antimat�ria, e a vida n�o poderia existir sem a morte.

Se essa sabedoria � recorrente no folclore, na mitologia e em uma infinidade de s�mbolos porque reflete uma verdade importante, ent�o podemos ser s�bios em prestar aten��o � sua mensagem e nos preocupar com a exist�ncia cont�nua de opostos e o jogo din�mico entre eles.

Ou seja, mesmo se voc� fosse algu�m que n�o gostasse de passar um tempo na natureza, e mesmo que encontr�ssemos uma maneira de n�o depender dela para sobreviver — por exemplo, criando sistemas artificiais que nos sustentariam em um estado dissociado —, a decis�o de promover um equil�brio entre tecnologia e natureza se alinha com valores humanos de longa data em muitas sociedades.

Os humanos n�o precisam se inserir no controle dos processos vitais em todos os cantos do mundo, indo at� os filamentos do DNA, para for�ar o sistema da Terra a absorver os choques da nossa presen�a.

Em vez disso, um futuro muito melhor pode ser nos tornar algo mais pr�ximo de "alquimistas" do sistema da Terra, criando �reas de "alta modernidade", mas neutralizando sua cria��o com seu oposto natural, deixando �reas abandonadas para regenerar.

O sociobi�logo E O Wilson sugeriu, ou melhor, implorou, que metade do planeta fosse "renaturalizado".

Isso foi classificado como essencial para a sobreviv�ncia humana, mas esta divis�o 50:50 me parece ter uma beleza particular e equidade intuitiva, que n�o � apenas um sentimento est�tico, mas um sentimento espiritual, n�o apenas de harmonia, mas de justi�a.

O que seria mais interessante, integral e completo, do que ambas as formas de exist�ncia em suas mais plenas realiza��es?


Cena do filme 'Blade Runner'
O futuro de 'Blade Runner' � uma das muitas possibilidades que temos pela frente (foto: Alamy/Warner Bros)

Ainda pode ser poss�vel ter um equil�brio entre toda a exist�ncia material da humanidade (intelig�ncia artificial, arranha-c�us, autom�veis, concreto, computa��o, economia, arte, agricultura intensiva) e a natureza (formigueiros, Amaz�nia, florestas inglesas, dunas de areia , p�ntanos de Tampa, desertos, fossas oce�nicas e recifes de coral), se esta �ltima for aumentada em qualidade e quantidade.

Imagine caminhar em uma megacidade tecnologicamente madura, mas depois atravessar os limites da cidade at� a biodiversidade mais exuberante, complexa e selvagem que se estende ao longe: complexidade tecnol�gica equilibrada pelo org�nico.

A verdade � que podemos precisar de uma exist�ncia como Blade Runner 2049 em algumas partes do planeta, e precisamos dissociar at� certo ponto, pois a tecnologia ser� necess�ria para liberar a terra necess�ria para a "renaturaliza��o".

Mas, observando a recente enxurrada de voos espaciais comerciais, me perguntei sobre quanta biodiversidade havia sido perdida para que isso acontecesse, quanto custou ao sistema terrestre.

Para que a Terra n�o seja irreversivelmente degradada e desequilibrada, precisamos de uma for�a oposta e de igual intensidade na dire��o de repor a complexidade natural.

Certamente a melhor recompensa de um planeta saud�vel � a explora��o espacial, n�o ser uma fuga de um planeta moribundo.

Se o cord�o umbilical da biosfera humana for cortado, deve deixar a m�e Terra no auge da sa�de e a servi�o de ambas as partes.

* Lauren Holt � pesquisadora do Centro para o Estudo do Risco Existencial da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Ela est� explorando o impacto da humanidade na complexidade biol�gica e o efeito da tecnologia nos ecossistemas.

Leia a vers�o original deste artigo (em ingl�s) no site BBC Future.

- Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-61811736

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