
Em 25 de mar�o, exatamente nove meses antes do Natal, um anjo teria aparecido para Maria, ent�o uma jovem prometida em casamento, e anunciado que ela seria m�e do filho de Deus.
"Mas como isso acontecer�, se eu n�o conhe�o homem algum?", ela teria perguntado ao anjo, segundo o Evangelho de Lucas. De acordo com o texto sagrado, Maria n�o havia tido nenhuma rela��o sexual que justificasse sua gravidez.
"O Esp�rito vir� sobre voc�, e o poder do Alt�ssimo vai cobri-la com sua sombra. Por isso, o menino que vai nascer ser� chamado Santo, Filho de Deus", explicou o anjo, enfatizando que "para Deus nada � imposs�vel".
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Biblicamente, foi isso que ocorreu, ainda que o processo desafie a l�gica da Biologia.
Para os que acreditam, contudo, este di�logo, que teria ocorrido h� pouco mais de dois mil anos, est� na base de todas as religi�es crist�s - da cat�lica �s neopentecostais, passando por todas os tipos de igrejas protestantes hist�ricas.
Pesquisas recentes, contudo, entendem que a ideia da virgindade de Maria n�o foi algo contempor�neo a ela.Em outras palavras, aqueles que conviveram com Jesus Cristo n�o pareciam preocupados com essa quest�o.
A ideia de uma concep��o virginal foi uma constru��o hist�rico-teol�gica dos s�culos seguintes - e h� varia��es de compreens�o disso, de acordo com a denomina��o religiosa praticada.
"Seja como crist�o, seja como n�o-crist�o, o ponto sobre aceitar o nascimento virginal tem a ver com a cren�a na possibilidade de milagres", comenta � BBC News Brasil o historiador Philip C. Almond, em conversa por e-mail.
"Se voc� n�o aceitar a possibilidade de milagres, ou seja, de Deus intervindo no mundo natural diretamente para fazer X ou Y, ent�o, voc� n�o acreditar� no nascimento virginal."
Professor em�rito da Universidade de Queensland, na Austr�lia, e autor de dezenas de livros sobre hist�ria da religi�o, entre eles, God: A New Biography (Deus: Uma nova biografia, em ingl�s), Almond ressalta que, "al�m do Novo Testamento, n�o sabemos nada [sobre quem foi Maria]".
Ou seja: a m�e de Jesus � uma personalidade sem lastros hist�ricos que n�o sejam comprometidos pelo pr�prio enviesamento religioso.
"Precisamos tratar os relatos do Novo Testamento com cuidado", enfatiza o pesquisador, lembrando que as narrativas b�blicas trazem "anjos, estrelas a serem seguidas e concep��es virginais".
"Fora do relato do nascimento [de Jesus], ela [Maria] n�o desempenha papel muito importante [no restante do texto sagrado]", nota Almond.
� uma an�lise que encontra eco em outros pesquisadores. Autor de, entre outros, Jesus de Nazar�: Uma Outra Hist�ria e professor do Programa de P�s-Gradua��o em Hist�ria Comparada do Instituto de Hist�ria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o historiador Andr� Leonardo Chevitarese, explica que a mais antiga men��o a Maria est� na verdade na carta de S�o Paulo aos G�latas. E � uma refer�ncia muito superficial.
"Ele diz que Jesus nasceu de uma mulher. N�o especifica o nome, mas reconhece a presen�a de uma mulher como a m�e de Jesus. Comumente atribu�mos esse texto � primeira metade dos anos 50, no s�culo 1", contextualiza ele, � BBC News Brasil.
"Este � o �nico dado efetivamente antigo que temos como atribui��o de uma m�e a Jesus."
J� as refer�ncias a Maria nos evangelhos, ou seja, nos textos b�blicos que narram a vida de Jesus, viriam de autores situados a partir da d�cada de 80 - Mateus - 90 - Lucas.
"Ali h� informa��es mais, digamos, consistentes. Mas a d�vida �: esses cap�tulos foram escritos por esses autores, nessa �poca, ou s�o suplementos que foram acrescidos a esses dois evangelhos j� no s�culo 2?", comenta Chevitarese, que em seu canal no Instagram tem se dedicado a esmiu�ar aspectos hist�ricos de personagens do cristianismo.
A quest�o da tradu��o
H� uma quest�o terminol�gica que, ao que parece, antecede �s pr�prias explica��es teol�gicas acerca da virginidade mariana. E o historiador Almond � um dos que j� se debru�aram sobre o tema.
O Evangelho de Mateus � claro ao destacar que Maria ficou gr�vida antes de ela e Jos� terem qualquer rela��o sexual. A refer�ncia � que a gesta��o era obra "do Esp�rito Santo". E, para embasar isso, o autor do texto b�blico recorre a uma profecia do Antigo Testamento, mais especificamente do livro de Isa�as.

"O Senhor lhes dar� um sinal, uma virgem conceber� e vai dar � luz um filho, e colocar� nele o nome de Emanuel", escreveu o profeta.
Desnecess�rio dizer a import�ncia de recorrer a um texto sagrado para fundamentar um alicerce daquela cren�a ent�o bastante contempor�nea.
O que os autores dos evangelhos estavam fazendo era muito parecido com o que pastores e padres fazem hoje: buscar na B�blia explica��es para o tempo presente.
O que ningu�m poderia imaginar, � claro, � o fato de que eles pr�prios estavam escrevendo a metade mais moderna da B�blia.
Mas Almond lembra que h� uma pegadinha nessa refer�ncia. Mateus usava a vers�o grega do Antigo Testamento - e n�o o hebraico original da obra.
Originalmente, a profecia ser referia a essa jovem gr�vida como almah. Na vers�o grega, a palavra foi vertida para "parthenos".
Almah significa "mulher jovem". Pathenos vai um pouco al�m: "jovem intacta", ou seja, uma mulher nunca tocada sexualmente.
Para o historiador, foi um acidente de tradu��o que criou a ideia de virginidade de Maria. Porque foi um acidente de tradu��o que transformou "jovem" em "virgem". E a B�blia grega foi a base para a tradu��o latina, quando "parthenos" se tornou "virgo" — e da� para todos os idiomas modernos, o significado sempre foi mantido.
Essa quest�o da tradu��o foi notada ainda no s�culo 2. O te�logo e fil�sofo Fl�vio Justino (100-165), em sua obra Di�logo com Trif�o, cita a forma como "jovem" se transformou em "virgem".
"V�s, inclusive nesta passagem [citando a profecia de Isa�as], tendes a ousadia de mudar a interpreta��o dada pelos vossos anci�os que trabalharam junto a Ptolomeu, rei do Egito. E dizeis que n�o consta no texto original o que eles interpretaram, mas 'eis que uma mulher jovem conceber�', como se fosse sinal de grande obra que uma mulher conceba atrav�s de rela��o carnal, coisa que fazem todas as mulheres jovens, exceto as est�reis", escreve ele.
"Trif�o [a quem Justino se dirige] era um rabino que diz para Justino que a passagem de Isa�as n�o fala de uma virgem, e sim de uma jovem. E Justino contra-argumenta: quem traduziu n�o foram os crist�os, foram os judeus, ent�o ao fazer a tradu��o eles sabiam exatamente o que estavam traduzindo", contextualiza Chevitarese.
"Ent�o ele diz: e agora, que isso interessa aos novos crist�os, voc� vem e diz que n�o � mais virgem e sim jovem?"
O historiador pontua que isso j� demonstra como o debate estava posto, que havia uma briga sem�ntica em torno do tema.
Paternidade biol�gica de Jesus
O que parece n�o haver d�vidas, ao analisar os textos antigos, � que Jos� n�o era o pai biol�gico de Jesus.
Chevitarese recorda que no Evangelho de Marcos h� a men��o de que Jesus � filho de Maria, no trecho "n�o � este o carpinteiro, o filho de Maria?".
"[Na �poca] n�o era assim que se classificava um filho", pontua o historiador. "� sempre filho de um pai."

"Marcos parece j� estar captando uma quest�o posta pela comunidade, ali no final dos anos 60, in�cio dos anos 70, isto �: um problema quanto � paternidade de Jesus. J� ent�o havia gente querendo saber quem era o pai de Jesus, parecia existir um certo desconhecimento", contextualiza.
Ele pontua que na genealogia trazida pelo Evangelho de Mateus para situar Jesus, logo no in�cio do texto, Maria � a quinta mulher que aparece.
"E se formos buscar a hist�ria de todas as quatro [anteriores], todas est�o relacionadas a prostitui��o, estupro, ou, no caso de Ruth, a iniciativa de se deitar com um homem, o que era muito estranho na sociedade campesina da �poca", afirma Chevitarese.
"Tem algo muito estranho nisso. Essas mulheres, de alguma forma, est�o inseridas ali. E s�o mulheres n�o muito corretas, segundo o entendimento da �poca. O que as une a Maria? O fato de terem filhos em contextos ou situa��es que afrontariam a lei mosaica."
Para o historiador, naquele contexto nem era o "problema" fundamentar ou n�o uma virgindade de Maria. A quest�o era limpar a barra de Jesus.
"A preocupa��o era essa: afinal, pode se esperar que Jesus seja o Messias tendo um nascimento cujo pai nem conhecemos?", explica ele.
Era um momento em que algumas teorias pareciam povoar o imagin�rio daquelas comunidades. N�o � toa, Jo�o traz o tema da prostitui��o no cap�tulo 8, na famosa passagem em que os fariseus trazem a mulher para Jesus e ele diz que "aquele que n�o tiver pecado, que atire a primeira pedra".
"E a fala dele [Jesus] no vers�culo 41 parece responder que ele era acusado de ser filho de prostitui��o. Esse dado vem refor�ar essa suspei��o de que havia um problema por ele n�o ter pai conhecido", complementa o professor.
No trecho, Jesus diz que "n�s n�o somos filhos de fornica��o; temos um pai, que � Deus", e complementa ressaltando que "eu vim de Deus".
Chevitarese lembra que havia at� mesmo teorias de que Jesus era filho de um soldado romano.
"Falar de Maria, venerar Maria, reconhec�-la como desempenhando um importante papel na vida de Jesus � discutir uma quest�o j� posta no s�culo 1, que entra no s�culo 2 e 3: a paternidade de Jesus, a possibilidade de ele ser filho de um pai cujos judeus n�o conheciam. H� muita tens�o a� e o tema da prostitui��o se faz presente como um eco dentro dessa hist�ria sobre Maria e Jesus e as acusa��es que os primeiros crist�os precisavam responder", acrescenta.
Dogmas
Diante de todo esse contexto, pareceu interessante aos crist�os primitivos justificar uma concep��o virginal de Jesus. Rotular Maria como virgem, afinal, conferia uma maior adequa��o para algu�m que se apresentava como "m�e de Deus".
Havia uma compatibilidade com o entendimento religioso da �poca, inclusive. Jesus era celibat�rio, vale lembrar.
"Nos primeiros s�culos do cristianismo, a virgindade era reconhecida como mais desej�vel do que o estado de casado. Isso tornou inevit�vel que Maria fosse idealizada como perpetuamente virgem", comenta Almond.
Segundo o pesquisador, por volta do ano 400 a doutrina da virgindade de Maria j� estava consolidada no cristianismo.
Aur�lio Ambr�sio (340-397), arcebispo de Mediolano, atual Mil�o, foi um dos te�ricos a embasar a quest�o. Ele escreveu que "bem-aventura Maria � a porta pela qual est� escrito que o Senhor entrou por ela, portanto estar� fechada ap�s o nascimento, j� que como virgem ela concebeu e deu � luz".
E isso foi ratificado em 649, no Conc�lio de Latr�o. Ali foi declarado que era quest�o de f� o fato de que Jesus foi gerado "sem semente" e que Maria o concebeu de modo "incorrupto", sendo que a virgindade dela se manteve mesmo ap�s seu nascimento.
Conforme lembra Chevitarese, contudo, a quest�o mariana j� aparecia em conc�lios anteriores, como no de �feso, de 431, e no da Calced�nioa, de 451.
"Em �feso nasce a ideia de Maria ser lida como Teotokus, ou seja, 'm�e do filho de Deus'. Isso deu uma confus�o: porque se � a m�e de Deus, ela tamb�m seria uma deusa?", comenta.
Gradualmente, a virgindade de Maria foi reafirmada em outros conc�lios e papas do catolicismo. Ganhando novos contornos e novas camadas.
"N�o h� uma data espec�fica para a constru��o do dogma, mas sim um ac�mulo de informa��es que v�o sendo sedimentadas", explica � BBC News Brasil o historiador, fil�sofo e te�logo Gerson Leite de Moraes, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Com semelhan�as importantes e tamb�m grandes diferen�as entre os credos.
"Tanto protestantes como cat�licos romanos aceitam o artigo do credo apost�lico que Jesus nasceu da virgem Maria. Isso � ponto pac�fico e se baseia nas escrituras que diz que ela � m�e de nosso Senhor, bendita entre as mulheres", afirma Moraes.
"A vis�o cat�lica, constru�da pelo dogma, � porque historicamente h� pouqu�ssimas informa��es sobre Maria. Pela tradi��o b�blica, ela foi chamada para ser m�e do filho de Deus e essa concep��o ocorreu de maneira virginal", completa o professor.
"Tanto cat�licos quanto protestantes n�o discordam disso."
Para o te�logo, o que ocorreu foi que a devo��o a Maria foi galgando novos patamares com o passar do tempo. De uma mulher na origem do Novo Testamento at� a santa pura e exemplo m�ximo.
"Ela vai ganhando a ideia de que n�o foi manchada pelo pecado em nenhum momento, n�o s� se manteve virgem como n�o pecou", salienta.
Ao longo da Idade M�dia, muitos te�logos refor�aram essa narrativa. E muitos outros a rejeitaram.
Tom�s de Aquino (1225-1274) e Bernardo de Claraval (1090-1153) est�o entre os nomes que entendiam que a quest�o deveria se encerrar pela concep��o virginal, n�o avan�ando pela ideia de virgindade perp�tua — ponto seguido por boa parte das igrejas protestantes.
"Eles rejeitaram [a tese de virgindade perp�tua], acreditavam que a quest�o estava indo longe demais", diz Moraes. "Mas, de certa forma, essa narrativa acabou se disseminando pelo povo."
Isso avan�ou mais. Em 1854, o papa Pio IX (1792-1878) decretou tamb�m que a doutrina passava a sustentar que Maria tamb�m foi ela pr�pria concebida livre do pecado original.
Para o professor Moraes, as camadas podem ser entendidas como Maria primeiro sendo a escolhida por Deus, a favorecida por Deus.
Em seguida, a sempre virgem, libertada da ideia do pecado. Depois libertada do pecado original.
"Quer dizer: em 12, 13 s�culos, ela se torna um objeto important�ssimo de culto, com poder intercess�rio quase onipotente", enfatiza.
"E s�o dogmas, portanto, n�o podem ser contestados dentro da Igreja Cat�lica. Quem os contesta est� em erro na vis�o cat�lica", acrescenta.
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