
O t�tulo acima pode soar estranho uma vez que, para a sociedade contempor�nea ocidental, parece claro que a origem do Natal, muito embora a festa tenha sido apropriada como uma tradi��o at� mesmo desvinculada de cren�as, � o nascimento daquele personagem, cerca de 2 mil anos atr�s, chamado Jesus — e toda a constru��o religiosa que seria erguida a partir dele.
Mas h� diversos ind�cios de que as pessoas j� comemoravam o Natal cerca de 7 mil anos antes de Cristo, o que faz dessa celebra��o quase t�o antiga quanto o pr�prio conceito de civiliza��o.
A explica��o est� nos marcos da natureza: afinal, se a ideia de civiliza��o remonta �s origens da agricultura, nada mais natural do que celebrar o solst�cio de inverno como um momento de renascimento, de renova��o.
Em um tempo de prec�ria ci�ncia e de exagerada observa��o dos fen�menos naturais, o sinal era claro: a luz solar renascia nesse momento, aumentando em tempo e intensidade a cada dia desde ent�o. E era o que propiciaria a agricultura da nova safra, a alimenta��o do ano vindouro.
No livro Religions of Rome, os historiadores Mary Beard e John North lembram que o per�odo dedicado a celebrar o solst�cio era todo devotado a um deus — Mitra —, durava uma semana e era permeado por celebra��es entre as fam�lias, com trocas de presentes e comilan�as t�picas. Nada diferente do Natal contempor�neo, portanto.
Oriundo da mitologia persa, Mitra era o deus da sabedoria, representando a luz, o bem sobre o mal.
Aos poucos, no mundo romano, foi dividindo espa�o com outra divindade, Saturno: afinal, se era o come�o de um "novo" sol, nada mais natural do que render gra�as �quele que era o deus da agricultura.
Mas Mitra tamb�m era a divindade que se confundia com o pr�prio Sol: com sua carruagem, viajava ele todos os dias pelo c�u com o objetivo de iluminar e espantar as for�as das trevas.
O 25 de dezembro se torna oficial, portanto, no s�culo 3 da nossa era — mas ainda sem nenhuma alus�o a Jesus.
A culpa recai sobre o imperador romano L�cio Dom�cio Aureliano (214-275). Ele, que havia ascendido hierarquicamente depois de engrossar as fileiras do ex�rcito romano, decidiu institucionalizar a festa que j� era muito celebrada pelos militares de Roma.
"Tinha um forte apelo junto aos soldados a filia��o, do ponto de vista religioso, � divindade do Sol Invictus", comenta o o historiador Andr� Leonardo Chevitarese, autor de, entre outros, A Descoberta do Jesus Hist�rico, e professor do Programa de P�s-Gradua��o em Hist�ria Comparada do Instituto de Hist�ria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em sociedades basicamente dependentes dos ciclos da natureza e em um per�odo carente de conhecimentos cient�ficos para justificar as mudan�as do tempo, fazia muito sentido que divindades e celebra��es tivessem, em seu cerne, o objetivo de justificar os bons e os maus resultados das safras.
"Houve muitas festas de nascimento de grandes personagens e personagens m�ticos e algumas datas coincidentes com equin�cios e solst�cios. E mudan�as de esta��es no ano agr�cola sempre eram alegremente celebradas", diz o fil�sofo e te�logo Fernando Altemeyer Junior, professor da Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo (PUC-SP). "Semear e colher era o ritmo da vida e de celebrar natal, ali�s, palavra em corruptela para nascimento."
Ent�o � Natal

Em paralelo a esse contexto, crescia em tamanho e import�ncia aquela nova religi�o, no in�cio uma seita judaica perseguida, depois uma nova doutrina. O cristianismo. Seu mito fundador era uma figura nascida em Bel�m, prov�ncia romana na Judeia, no Oriente M�dio. A data exata? Ningu�m sabia naquela �poca, ningu�m sabe ainda hoje.
"N�o se tinha clareza, certeza, nenhuma documenta��o categ�rica no sentido de dizer a data em que Jesus nasceu", afirma Chevitarese.
"N�o sabemos com precis�o nem o ano em que ele nasceu, muito menos o dia. As informa��es que nos chegaram, dos evangelhos, foram de muito tempo depois [da vida do pr�prio Jesus], escritas por volta do ano 70 [de nossa era], cerca de 40 anos depois do 'evento Jesus Cristo'. E temos algumas informa��es ali que n�o batem historicamente com aquilo que sabemos historicamente", explica o historiador, fil�sofo e te�logo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Chevitarese lembra que, ao analisar as narrativas antigas, � poss�vel reconhecer que quando as comunidades crist�s "tomaram a decis�o de correr atr�s desses dados", eles j� haviam sido perdidos.
"N�o se tinha mais como recuperar minimamente qualquer hist�ria no sentido do factual nascimento de Jesus", acrescenta.
"N�o sabemos a data exata do nascimento de Jesus, o filho de Maria e Jos�, o nazareno", resume o fil�sofo e te�logo Fernando Altemeyer Junior, professor da Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo (PUC-SP).
Os imperadores romanos e o Natal
Se Aureliano efetivou a comemora��o ao Sol Invictus, � preciso lembrar de dois outros imperadores romanos que contribuiriam para a cria��o do Natal tal e qual conhecemos hoje. Fl�vio Val�rio Constantino (272-337) e Fl�vio Teodosio (346-395).
Enquanto o primeiro permitiu o exerc�cio do cristianismo, o segundo tornou a religi�o crist� a oficial de Roma, conforme pontua Moraes.
"O que acontece nesse p�ndulo hist�rico � que o cristianismo sai da condi��o de religi�o marginal, de seita perseguida, e se torna religi�o oficial do imp�rio", enfatiza o professor da Mackenzie.
Ent�o nada mais natural do que, entendendo Jesus como a "luz da vida", sobrep�r a festa de seu nascimento �quela comemora��o pelo Sol Invictus, que nada mais era do que o renascimento do sol — j� que o solst�cio indica que, a partir daquele dia, o sol di�rio fica cada vez "maior".
"Na narrativa, a ideia de associar Jesus a uma luz, de uma estrela que ilumina os caminhos, tem sentido. Assim, a partir da segunda metade do s�culo 3 h� um profundo di�logo entre experi�ncias religiosas e esse � um movimento interessant�ssimo para o cristianismo", comenta Chevitarese.
Desta forma, o 25 de dezembro como Natal n�o foi algo "inventado", mas sim algo "convencionado", como bem esclarece o soci�logo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do N�cleo F� e Cultura da PUC-SP.
"Os antigos romanos celebram, na data, o solst�cio de inverno no hemisf�rio norte, a festa do Sol Invicto. Os crist�os, desde os primeiros s�culos, associaram Jesus � luz que vem para iluminar a humanidade e tir�-las das trevas", afirma.
"Assim, a identifica��o com o Deus Sol era bastante natural � mentalidade da �poca. J� havia, nas prega��es de S�o Paulo, por exemplo, a no��o de que o 'Deus verdadeiro' crist�o j� era intu�do e estava presente nos pante�es da Antiguidade", prossegue.
"As primeiras igrejas crist�s tamb�m usavam muitas vezes materiais recolhidos de templos pag�os, para mostrar as antigas cren�as n�o haviam simplesmente sido abandonadas, mas sim integradas e superadas por uma mais verdadeira", diz ele.
"Uma festa da natureza foi reapropriada pelos crist�os dando um novo significado a ela pelo nascimento do Filho de Deus", acrescenta Altemeyer Junior.
Quando, afinal, nasceu Jesus?
A verdadeira data de nascimento do Jesus hist�rico � um mist�rio que jamais ser� revelado, acreditam pesquisadores.
N�o h� registros da �poca e os relatos mais precisos que foram preservados, os evangelhos, n�o se atentaram — ou n�o conseguiram atentar — para detalhes deste tipo.
"O que Mateus e Lucas [os dois dos quatro evangelistas que narram o nascimento de Jesus] fizeram foi muito mais um olhar teol�gico, contando o nascimento de Jesus � luz de paralelos com outros nascimentos divinos", contextualiza Chevitarese.
"Assim, Jesus ganharia caracter�sticas de filho de Deus, de um homem divino, de algu�m diferente, poderoso, milagreiro, exorcista. Seu nascimento j� denunciava que ele era algu�m diferenciado", acresnta ele.
"N�o falamos de data, porque data mesmo nunca se chegou a um consenso", acrescenta o pesquisador.
"Historiadores suspeitam que Jesus possa ter nascido no fim do governo de Herodes, o Grande, portanto entre o ano 6 e 4 antes da Era Comum. Imagina que loucura: Jesus nasceu 'antes de Cristo'. S� com o passar do tempo se assumiu a data do 25 de dezembro", conclui.

Quando o cristianismo se oficializou como religi�o romana, uma s�rie de conc�lios passaram a ocorrer para organizar as regras da doutrina. Foi quando apareceu pela primeira vez essa quest�o do Natal.
"No s�culo 4 ocorreram grandes conc�lios da igreja definindo dogmas e datas importantes. Foi a� que tivemos a fixa��o do que a gente chama de Natal. Substituir [uma celebra��o que j� havia] era uma pr�tica comum", diz o historiador Moraes.
Essa oficializa��o coube ao papa J�lio Primeiro (?-352). No ano de 350 ele publicou um decreto substituindo a venera��o ao Deus Sol pela data do nascimento de Jesus. Foi a maneira que ele encontrou para suprimir as festas pag�s de inverno.
"O cristianismo soube dialogar e se aproveitar das intera��es culturais com outros campos religiosos. � isso que o fez sobreviver: essa capacidade de se transformar para continuar sendo o que ele era", analisa Chevitarese.
"E � isso que faz com que ele sobreviva ainda hoje, todos os dias, se transformando para continuar sendo o que ele �."
"Jesus como Sol Invictus seria absolutamente representativo se colado a Jesus viesse tamb�m a data do dia 25 de dezembro", compara o historiador.
"Foi uma data ressignificada, a ressignifica��o cultural de uma festa. O cristianismo construiu sob uma base j� existente", concorda Moraes.
"A data j� era celebrada por outros povos, da antiguidade oriental aos gregos e romanos. E como o cristianismo nasceu no imp�rio romano, essa data acabou sendo apropriada pelos crist�os. N�o da noite para o dia."
Para o soci�logo Ribeiro Neto � preciso atentar para o fato de que "existe uma estrat�gia comunicativa bem conhecida e praticada na sociedade moderna, mas que sempre existiu". "� mais f�cil ressignificar pr�ticas e costumes j� arraigados na vida do povo do que criar novos costumes e novas pr�ticas", ressalta ele.
"Por exemplo, quase todas as celebra��es que marcam momentos de passagem na vida das pessoas, como formaturas e posses, e festas c�vicas, com seus desfiles e pompas, emulam gestos semelhantes realizados pelas religi�es", diz o soci�logo.
"Mas, al�m disso, o cristianismo baseia-se na premissa de que o cora��o do ser humano sempre anseia por Deus, mesmo que n�o o conhe�a ou mesmo o renegue. Sendo assim, para a l�gica crist� era natural que a vinda de Cristo j� fosse intu�da e at� comemorada antes mesmo de seu nascimento. O renascer do sol na manh� ou a volta dos dias mais longos do ano ap�s o solst�cio de inverno seriam sinais a animar a esperan�a dos seres humanos de que um Deus viria a iluminar suas vidas, assim como o sol sempre volta depois da noite", acrescenta ele.

Transforma��es atuais
Nesse sentido, � poss�vel analisar que o Natal passou por novas ressignifica��es at� chegar ao modelo atual — comercial e n�o necessariamente religioso.
"Hoje, � uma data consolidada e apropriada pela tradi��o capitalista. Ou seja: o cristianismo ressignificou o Natal, mas o Natal continua sendo ressignificado", analisa Moraes. "Continua apropriado pelas mais diversas culturas, por momentos hist�ricos e vai ganhando outros significados ao longo do tempo."
"O cristianismo incorporou uma efem�ride de cren�as anteriores e nesse sentido a gente comemora o Natal at� hoje", prossegue. "Mas o Natal continua sendo transformado, ressignificado. Seja pelo modo de produ��o capitalista, seja pela forma de celebra��o."
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