
As duas situa��es que geraram os livros Dama de paus, de Eliana Cardoso, e Crocodilo, de Javier A. Contreras, estavam latentes nas cabe�as dos autores h� alguns anos. No caso de Eliana, desde a inf�ncia. Para Contreras, � mais recente. Os dois romances tratam de suic�dio, embora n�o se dediquem a destrinchar o tema e, sim, a tentar entender como vivem os familiares e amigos que ficam.
Vencedor do Pr�mio Kindle de Literatura, Dama de paus tem como centro o feminic�dio, a viol�ncia dom�stica, o machismo estrutural e a cultura extremamente conservadora do interior do Brasil. � nesse cen�rio que se d� o suic�dio de uma das personagens.
Em uma fam�lia de fazendeiros ricos do interior de Minas Gerais, um casamento por conveni�ncia e anos de opress�o feminina resultam em um assassinato. Quando os homens tomam as r�deas da situa��o para tentar resolv�-la a seu modo, outra trag�dia acontece e mergulha o leitor em uma narrativa pautada pelo mist�rio e pelos sil�ncios.
''Para n�s, que n�o temos religi�o, que n�o acreditamos noutra vida, que pensamos na vida como sendo o �nico bem que temos e que a morte � o fim, esse desespero que leva algu�m a olhar para a vida como sendo insuport�vel � um mist�rio"
Eliana Cardoso, autora de 'Dama de paus'
Eliana conta que uma hist�ria ouvida na inf�ncia a levou a Dama de paus. “Fui adolescente em Minas e acompanhava o que estava acontecendo por l�. Na d�cada de 1970, houve uma s�rie de assassinatos nos quais mulheres foram mortas ou pelo marido, ou pelo amante, e os assassinos foram absolvidos. Em geral, tinham sempre o mesmo advogado e o argumento era sempre ‘em defesa da honra’”, conta a autora.
“Eram coisas que ocorriam n�o tem muito tempo e que, hoje, s�o inimagin�veis. O feminic�dio ocorre todos os dias em todos os lugares do pa�s, mas jamais ocorreria a algu�m defender um homem com o argumento de que foi em defesa da honra. Mas, todos os dias, um homem acha que est� matando ou agredindo uma mulher para defender a pr�pria honra.”
De Minas Gerais, onde nasceu, Eliana tem lembran�as de um patriarcalismo pesado e de uma sociedade na qual o sil�ncio e os segredos de fam�lia eram muito valorizados. “Essa foi a lembran�a que carreguei comigo: o poder destrutivo desse sil�ncio que faz voc� reprimir coisas que te atormentam. Isso ficou como uma marca forte da sociedade daquele tempo”, conta a autora, que at� hoje se sente marcada por esse molde social.
“Por conta dessa chamada ‘discri��o’ do mineiro, noto que tenho muita dificuldade de perguntar coisas diretas �s pessoas. Espero que as pessoas me contem, mas, se elas n�o me contarem, n�o tenho a coragem de perguntar”, diz.
"Eu queria pegar o ponto de vista de quem ficou para tentar explorar essa busca de compreens�o de algo para que pode n�o haver respostas. Quis me ater com profundidade nessa quest�o do sentimento, tanto que usei como personagem um jornalista, para trabalhar o ceticismo e o senso de investiga��o"
Javier A. Contreras, autor de 'Crocodilo'
O suic�dio de uma das personagens tamb�m veio de uma hist�ria ouvida atr�s da porta, quando era menina. A autora decidiu estudar o tema antes de inclu�-lo no livro e leu dos te�ricos mais importantes, como �mile Durkheim, aos cl�ssicos, caso de Anna Karenina, de Liev Tolst�i.
“O suic�dio � um tema recorrente na literatura, � muito presente. O tema do sil�ncio e da destrui��o pelo segredo tamb�m”, afirma. � tamb�m, ela admite, um tema tabu que Dama de paus n�o tem a inten��o de explicar. “Para n�s, que n�o temos religi�o, que n�o acreditamos noutra vida, que pensamos na vida como sendo o �nico bem que temos e que a morte � o fim, esse desespero que leva algu�m a olhar para a vida como sendo insuport�vel � um mist�rio”, observa Eliana.
BUSCA
Em Crocodilo, o protagonista e narrador � o pai de uma v�tima de suic�dio. Jornalista investigativo, ele embarca em uma busca obsessiva para tentar compreender o ato do filho. N�o encontra respostas, nem s�o elas o foco de Javier Contreras. Ao autor do romance interessa jogar luz sobre outra quest�o.
“Eu realmente queria pegar o ponto de vista de quem ficou para tentar explorar, al�m do sofrimento, essa busca de compreens�o de algo para que, realmente, pode n�o haver respostas”, explica. “Quis me ater com profundidade nessa quest�o do sentimento, tanto que usei como personagem, justamente, um jornalista, para trabalhar o ceticismo e o senso de investiga��o.”
O contraponto entre o pai e a m�e diante da perda � um dos pontos interessantes de Crocodilo. Enquanto ele se entrega � indigna��o diante da trag�dia e trata o fato como alvo de uma investiga��o jornal�stica, ela tenta compreender sem buscar respostas, sempre em sil�ncio e numa busca mais interior e espiritual. Disso surgem rela��es familiares sobre as quais nunca haviam refletido e a� est� o que Contreras chama de “terceira via do livro”.
“Isso acaba se transformando numa descoberta de rela��es familiares que, muitas vezes, a gente vive e n�o analisa. A gente vive t�o cotidianamente rela��es t�o normais que acaba n�o refletindo a fundo por que perdeu a festa do filho, ou por qu� ele estava daquele jeito.”
O suic�dio se tornou tema por causa de dois casos ocorridos com pessoas distantes. Contreras estava trabalhando em outro livro, quando se deu conta de que a urg�ncia narrativa de Crocodilo batia � sua porta. “Tinha algo me incomodando e eu n�o sabia o que era. Estava escrevendo outro livro com tem�tica pol�tica atual, s� que n�o conseguia evoluir. Deixei de lado, abri nova pasta do Word e me veio a primeira frase. Entendi que isso estava dentro de mim sem eu saber”, conta.

Dama de paus
Eliana Cardoso
Nova Fronteira (128 p�gs.)
R$ 39,90

Crocodilo
Javier Contreras
Companhia das Letras (184 p�gs.)
R$ 64,90
ENTREVISTA
Javier Contreras,
autor de Crocodilo
Falar sobre o suic�dio sempre foi um tabu, mas, nos �ltimos anos, a consci�ncia de que � uma epidemia e de que � preciso falar sobre isso tem sido mais frequente. Como voc� encara esse sil�ncio sobre o tema?
� necess�rio falar. Ainda � um tabu. Mas vejo tamb�m que tem alguns movimentos, como o Setembro Amarelo, e tem se falado mais mesmo. E � necess�rio como forma de preven��o, porque, hoje, nessa nova era de relacionamentos cada vez menos f�sicos e mais virtuais, as pessoas acabam se distanciando e ficam muito s�s. Sem d�vida, � um sintoma dessa nova sociedade.
Tamb�m � um tema recorrente na literatura….
Ultimamente, n�o tenho lido esses romances mais jovens, mas sei que tem s�ries, como Os 13 porqu�s, tem alguns livros adolescentes jovens que retratam essa quest�o sob o ponto de vista das v�timas de suic�dio, mas eu quis fugir disso, quis pegar o outro lado, que � a vis�o dos que ficam, que � tentar entender o porqu� daquilo.
Durante muito tempo se estabeleceu que falar sobre o suic�dio e notici�-lo poderia estimular novos casos. O que voc�, que � escritor e jornalista, acha disso?
Acho que tem que falar. Passamos da fase de omiss�o. A tecnologia impulsionou a discuss�o no mundo inteiro, n�o � mais um tema que fica no gueto, � uma coisa a n�vel mundial, � uma epidemia. Mas entendo a complexidade do tema. Tenho duas filhas e s�o temas que quero debater com elas.