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Cis�o pol�tica � pano de fundo de 'Essa gente', novo livro de Chico

Romance que chega �s livrarias na pr�xima quinta (14) tem escritor como protagonista e exalta o poder da imagina��o e da linguagem no Brasil de 2018 e 2019, em que tudo parece ruir


postado em 08/11/2019 04:00 / atualizado em 08/11/2019 13:50

Manuel Duarte, escritor de 66 anos, est� h� tr�s em atraso com a entrega do original de seu novo romance. Endividado, sofrendo de prostatite aguda e amea�ado de despejo, ele tem um filho pr�-adolescente e duas ex-mulheres.

A tradutora Maria Clara � m�e do filho de Duarte e dona do cachorro Faulkner. Mulher de esquerda, confessa ao ex: “Sinto falta de um amigo com quem partilhar meu inconformismo em rela��o ao que est�o fazendo com nosso pa�s. Ser� que ainda teremos nossa correspond�ncia violada? Ser� que ainda incendiar�o nossos livros?”.

Quando se reaproxima da tradutora, Duarte percebe que ela “deu para comprar drogas sem receita em farm�cias clandestinas” e passou a consumir grandes quantidades de “ansiol�ticos, son�feros e antidepressivos”. Adquiriu tamb�m um rev�lver.

Duarte e Maria Clara ficaram casados por 13 anos e est�o separados h� tr�s, tempo em que o escritor viveu com a decoradora Rosane, que o trocou por Napole�o Mamede, “um velho que fez fortuna com soja na Amaz�nia”. Com a mulher de quem rec�m se separou, Duarte mant�m um contato ora hostil ora voluptuoso.

A decoradora confessa: “Eu, Rosane, que sempre fui uma tonta, passei a me interessar por discuss�es acerca dos rumos do pa�s”. Isso se deu a partir da conviv�ncia com Napole�o e seu c�rculo de amigos. E foi quando Rosane instalou na sala de seu apartamento uma escultura dourada cujo torso ela vestiu com “uma faixa verde-amarela” e � qual passou a se referir como “meu presidente”. Estamos em setembro de 2018.

Entre os amigos de Napole�o Mamede est� F�lvio Castello Branco, ex-colega de Duarte no Col�gio Santo In�cio, hoje no comando de uma “banca de advocacia que tem clientes poderosos”, casado com uma mulher “que � podre de rica e implica com gente rica” e que reage � mendic�ncia espancando os pedintes. Um de seus clientes � Mamede, cujo filho certa vez teve a ideia de aterrissar no Santos Dumont “com 80 quilos de coca�na no jatinho do pai”. F�lvio conseguiu abafar o esc�ndalo.

Alvo de chacota em sua �poca de col�gio “por ser o �nico com pau invertido na classe” – guardava-o “do lado direito da cal�a” –, o escritor se espanta ao saber que o filho sofre bullying dos colegas n�o por uma especificidade anat�mica, mas pelo posicionamento pol�tico de seus pais.

Duarte confessa: “Se meu filho quiser, posso comparecer � pr�xima reuni�o de pais e professores com uma camisa da Sele��o Brasileira. O menino, no entanto, tenciona se transferir para uma escola p�blica na favela, onde ningu�m o recriminar� por ter genes de comunista”.

Essa gente povoa o novo romance de Chico Buarque, que chega �s livrarias na pr�xima quinta-feira (14). Com uma hist�ria que transcorre entre 2018 e 2019, o livro � impregnado da atmosfera do pa�s nesse per�odo. Mas o cerne de Essa gente n�o s�o as particularidades de uma experi�ncia coletiva num momento tenso da vida brasileira.

PALAVRA 

Com um livro dentro do livro – aquele que Duarte escreve, erraticamente – e uma multiplicidade de narradores a quem � entregue a primeira pessoa – em cartas, conversas telef�nicas, queixas e cobran�as formais –, este sexto t�tulo de Chico Buarque (Estorvo, Budapeste, Benjamim, Leite derramado, O irm�o alem�o) parece definir a imagina��o e a palavra como “pa�ses de primeira necessidade”, tal qual “arte e c�u” o eram para Guimar�es Rosa. E se dedica a mostrar que tanto a imagina��o quanto a palavra s�o terrenos movedi�os, amb�guos, inexatos e male�veis.

“Em noites de abandono vou �s putas, que pago em dobro para transar sem camisinha, quando n�o pago o triplo para n�o transar e faz�-las ouvir literatura”, diz o narrador.

Duarte sabe que sua imagina��o supera qualquer realidade. Isso vale para noites insones e para as mulheres que amou “muito, mas n�o completamente”. Ele deixou o casamento com Maria Clara para embarcar numa aventura com Rosane. “Se eu pudesse, eu teria possu�do a Rosane no primeiro relance, no instante em que a vi sair das �guas. Ainda assim, a Rosane que eu ent�o possu�sse n�o se igualaria �quela que, ao mesmo tempo, eu imaginaria possuir”, escreve.

Com a paix�o por Rosane arrefecida, o escritor inventa outra musa, a jovem holandesa Rebeka, uma ruiva casada com o salva-vidas que evitou o afogamento de Duarte. Ao descobrir o papel de Rebeka na vida do escritor, Rosane “arrebentaria todas as portas do apartamento, se soubesse que foi preterida por uma mulher mais nova”, ele imagina. “Seria dif�cil lhe explicar que com uma garota dessas n�o busco o prazer, mas a ilus�o da minha pr�pria juventude por alguns minutos recuperada.”

Para Agenor, seu marido, ou para Duarte, seu amante imagin�rio, Rebeka cantarola sempre a mesma m�sica – Manh� de carnaval, de Luiz Bonf� e Ant�nio Maria, a can��o que imagina uma “t�o bonita manh�/ na vida, uma nova can��o”.
 
Ou�a Manh� de carnaval com Jo�o Gilberto:
 

No embate com as palavras, Duarte, que tem o h�bito de caminhar para descomprimir os pensamentos, sup�e que o resultado seria diferente, caso conduzisse a batalha em outros termos. “Com certeza minha literatura seria outra se, em vez de gastar sola de sapato por caminhos j� trilhados, eu permanecesse im�vel feito o boneco da Rosane. (…) Seria quase como se, ao inv�s de impor minha escrita ao papel, eu visse o papel deslizar sob a ponta da minha caneta. Hoje, por exemplo, eu poderia sem esfor�o esbo�ar um conto pelo prisma de um general janeleiro.” E esbo�a.
 
A invers�o de pontos de vista tamb�m se insinua quando Duarte passa a frequentar o novo c�rculo social de Rosane e, num erro nem t�o aleat�rio, � identificado como Duterte numa coluna de jornal.

ARQUITETURA 

O escritor Amos Oz (1939-2018) dizia que “escrever um romance � como construir Paris com palitos de f�sforos”. Essa gente descortina o esfor�o dessa arquitetura sobretudo no seu trecho final, quando Rebeka se disp�e a traduzir para o ingl�s o livro de Duarte, do qual ela � musa inspiradora, enquanto a obra est� sendo escrita. Temos, ent�o, a justaposi��o dos encontros de Duarte e Rebeka no apartamento do escritor e na tela de seu computador, narrados no prometido e atrasado livro in�dito.

O escritor, cantor e compositor Chico Buarque(foto: Darya Dornelles/Divulgação)
O escritor, cantor e compositor Chico Buarque (foto: Darya Dornelles/Divulga��o)
Com os demais personagens que integram Essa gente, Chico Buarque ro�a as quest�es da desigualdade e dos privil�gios estruturais na sociedade brasileira, muitas vezes em suas manifesta��es aceitas como normais e corriqueiras. Durante um passeio na praia com o filho e Faulkner, o escritor observa: “H� uma lei que interdita animais na praia, mas acho que a Guarda Civil faz vista grossa para c�es de ra�a e donos com pedigree”.

Na profus�o de tipos que surgem como cuidadoras de Maria Clara em seu per�odo de interna��o domiciliar, destaca-se a crente “que roda pela casa cantando salmos ou declamando os prov�rbios”. Quando tem direito � palavra, a crente diz s� achar “ruim ela (a patroa) falar que a di�ria escorchante que me paga n�o � pelos servi�os de uma pastora” e afirma que “n�o � por ser mestra e doutora que ela tem o direito de mangar da minha ignor�ncia”.

Recuando no tempo, Duarte cita que o pai, desembargador, se recusava a usufruir de regalias permitidas, mas n�o aceit�veis, segundo sua perspectiva, como se deslocar em carro com motorista at� o tribunal. “Tratava-se definitivamente de um chato, no parecer de colegas menos rigorosos. Era como se, ao posar de vestal do templo, meu pai tacitamente os acusasse de prevaricar, auferir propinas, vender senten�as ou delitos do g�nero.”

IMPRENSA 

Os desvios de fun��o da imprensa tamb�m s�o citados – “� corriqueiro que not�cias na imprensa originem relatos ficcionais, mas o vice-versa n�o fica muito atr�s” –, assim como o respaldo popular � viol�ncia. “Aos passantes com quem cruzo de volta para casa, ergo brindes com o copo de u�sque na mesma m�o direita que outro dia empunhou um rev�lver. O copo de u�sque parece provocar indigna��o.”

� o racismo, contudo, a mazela mais ressaltada no livro. H�, por exemplo, a descri��o da explora��o – sexual e profissional – de meninos negros da favela por um conluio entre um maestro ped�filo e um pastor e dono de uma cl�nica de aborto clandestina. Outra passagem narra o assassinato brutal de um “mulato” acusado de tentativa de roubo, ap�s sua rendi��o � pol�cia – “Depois que se aquieta, os meganhas continuam baleando o cara, na barriga, no peito, no pesco�o, na cabe�a, eles o matam muitas vezes, como se mata uma barata a chineladas”.

Apontando e reconhecendo a intromiss�o do racismo na linguagem, Essa gente promove um di�logo entre Agenor, apresentado como “um negro bonito de presum�veis 40 anos”, e Duarte, no qual o primeiro, referindo-se � obra que o segundo prepara, pergunta: “Voc� no livro � branco ou preto?”, o que inspira em Duarte uma reflex�o: “Percebo que nos romances nunca me preocupei em explicitar a minha cor. � curioso que, num pa�s onde quase todo munto � preto ou mesti�o, autor nenhum escreveria 'hoje encontrei um branco...', ou 'um branco me cumprimentou...', ou 'o sargento Agenor � um branco bonito de presum�veis 40 anos'”.

Essa gente nos conta apenas que Duarte tem cabelos encaracolados, � bem menos negro do que Rebeka gostaria e apontado (uma vez) como mulato, o que serve de pretexto para que algu�m resuma sua trajet�ria com uma ofensa racista.
 
Fiel ao potencial de ambiguidade (da imagina��o e da palavra), o desfecho do livro apresenta um fato concreto e irrefut�vel sobre a hist�ria de Duarte, para o qual o leitor, olhando em retrospectiva tudo o que aprendeu sobre o protagonista de Essa gente, jamais ter� uma explica��o definitiva, a menos que a imagine.

Essa gente

. Chico Buarque
. Companhia das Letras (200 p�gs.)
. R$ 49,90


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