(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas

Artigo: sem S�rgio Sant'Anna, o Brasil perde um mestre das narrativas

Escritor marcou a literatura brasileira dos �ltimos 50 anos com letrinha mi�da, de quem burlou de prop�sito a aula de caligrafia para criar modo mai�sculo de fazer uma fic��o em contato com outras esferas e artes - e com a pr�pria literatura


10/05/2020 12:10 - atualizado 10/05/2020 12:31

(foto: Chico Cerchiaro/Divulgação)
(foto: Chico Cerchiaro/Divulga��o)

A imagem cl�ssica de S�rgio Sant’Anna: sentado na cadeira de balan�o, com um caderno sobre o colo, l�pis � m�o, pernas cruzadas. Um cigarro, muitas vezes. Era assim que trabalhava. E sua literatura repete a estrat�gia. Cotovelos firmes sobre os bra�os curvos, texto que se equilibra, pra frente e pra tr�s, num deslizar preciso, sem grandes solavancos, calcado na seguran�a da maturidade, na solidez da madeira maci�a. Pouco barulho no contato com o assoalho. 

A morte do escritor, aos 78 anos, v�tima da Covid-19, nos tira momentaneamente dessa experi�ncia de suave ro�ar entre a cena e a linguagem. Machuca a realidade. “N�o quero assustar ningu�m, mas acho a peste que nos assola simplesmente aterrorizante. N�o encontro outro modo de reagir sen�o escrevendo”, contou Sant’Anna um dia desses no Facebook, onde, nos �ltimos anos, vinha mantendo contato intenso e cr�tico com o mundo. 

A mem�ria fotogr�fica da cena do escritor em a��o no apartamento de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, pode n�o ser real. A recorda��o pode ser totalmente inventada. Importa a d�vida quando se � S�rgio Sant’Anna. Os tempos verbais se misturam, a percep��o sobre o texto vem � tona, com vontade de n�o aborrecer o leitor, apesar de traz�-lo conscientemente para dentro das “narrativas”, o termo usado pelo autor para classificar seus escritos. 

O escritor carioca marcou a literatura brasileira dos �ltimos 50 anos com letrinha mi�da, de quem burlou de prop�sito a aula de caligrafia para criar modo mai�sculo de fazer uma fic��o em contato com outras esferas e artes – e com a pr�pria literatura, claro. Sant’Anna nos deixa poemas, contos, novelas e romances que aceitam, mas n�o se contentam com a artificialidade. Nas �ltimas semanas, publicou dois contos in�ditos em jornal e revista de circula��o nacional. Estava concluindo uma novela.

S�o sempre narrativas que sabem brincar dentro de formas e formatos, como a dizer: � poss�vel retornar ao que j� nos � dado, o que est� ao nosso redor. A pe�a de teatro, o concerto de m�sica, a reportagem e a entrevista jornal�sticas, a pintura, a instala��o, a autobiografia, a partida de futebol, a carta, o voo de avi�o, o best-seller, a festa de despedida, a visita ao museu, a reda��o de emprego, o crime, a aula. Sim, h� alguma conex�o com as mitologias de Roland Barthes, se o franc�s fosse da fic��o.

Ou se o fan�tico torcedor do Fluminense tivesse pendores para o ensaio, identificado como tal. Mas o olhar cr�tico da obra preferiu a assinatura da inven��o para fu�ar as estruturas da realidade. As personagens (n�s) est�o neste palco imenso, saturado de simula��es, em que nada � gratuito, natural, harm�nico. E o escritor sabia que o espet�culo liter�rio tamb�m precisava ser divertido na sua metalinguagem. Sant’Anna, com dignidade art�stica raras vezes vista, manteve-se nesse projeto entre dois mundos. Vanguarda sem tirar o olho do retrovisor, que reflete uma ilus�o maior ou menor sobre o p�blico.

Em A senhorita Simpson: hist�rias, de 1989, encontrou ponto �timo. Na novela que d� t�tulo ao volume, recupera o modelo de “meu tipo inesquec�vel” das Sele��es do Reader’s Digest. E junta a isso Branca de Neve e os Sete An�es. Professora de ingl�s num curso noturno em Copacabana, miss Simpson v�-se envolvida com uma ecl�tica turma de figuras masculinas. At� mesmo as personagens do livro de ingl�s ganham vida nesta divertida f�bula p�s-moderna, transformada num filme (Bossa Nova, de Bruno Barreto) bem distante do original, pelo qual Sant’Anna tinha pouco apre�o.

O amor � o centro tem�tico da trama a� e em outras hist�rias, com boas doses de erotismo, o que sempre ameniza os aspectos experimentais, convenhamos. Em outros casos, Sant’Anna foi criticado pela dureza de textos que travam na p�gina, como se a vida tivesse sido objeto de excessiva manipula��o, de supercorre��o, quase caricatura, sem ru�dos. Curiosamente, intui��o e emo��o reaparecem nas hist�rias declaradamente autobiogr�ficas dos �ltimos anos. O autor de P�ginas sem gl�ria (2012) e Anjo noturno (2017) insere anedotas antigas de fam�lia, relembra a passagem por Belo Horizonte e a vida no Rio, onde foi funcion�rio p�blico e professor de Comunica��o.

Na �ltima vez em que encontrei S�rgio Sant’Anna, almo�amos no tradicional�ssimo restaurante Lamas, que ele adorava e fazia parte de seu cen�rio. Falamos sobre futebol, falta de grana, a �tima literatura do filho Andr� e a trag�dia brasileira. N�o deixei transparecer a emo��o de estar ali com ele. Me comportei no papel de autor de disserta��o de mestrado sobre a obra e amigo eventual gra�as ao jornalismo. Com problemas de sa�de, ele saiu curvado, um tanto melanc�lico. Sempre nobre. Senti tudo como despedida. 

Neste domingo, foi a vez de me curvar em tristeza ante os livros na estante e reencontrar o abra�o fraterno na letra infantil e torta da dedicat�ria. Balancei a bandeira tricolor, em verde, branco e gren�. E torci para que suas hist�rias de elegante e l�cida composi��o fossem lidas n�o s� pelos escritores brasileiros (ou o argentino Cesar Aira, entre outros) que o veneram e t�m por exemplo. Por mais gente inquieta, ao menos de agora em diante. Para sempre. 

Doutor em Estudos Liter�rios pela UFMG e autor de A reinven��o do escritor: literatura e mass media (Editora UFMG), S�rgio de S� � professor na Universidade de Bras�lia.  


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)