
O document�rio O dilema das redes, dispon�vel na Netflix, se parece com um filme de a��o por ser capaz de deixar o espectador sem f�lego. Dirigido por Jeff Orlowski, o filme procura desvendar os mecanismos pelos quais as redes sociais se tornaram um instrumento de manipula��o em larga escala e, consequentemente, uma amea�a � privacidade e � autonomia dos cidad�os e � sa�de da democracia.
O filme traz uma s�rie de depoimentos de especialistas e ex-funcion�rios do Facebook, Instagram, YouTube, Twitter, Google, Pinterest, entre outras, relatando suas experi�ncias profissionais e preocupa��es com a evolu��o dessa ind�stria.
Os entrevistados explicitam como os problemas relacionados � atua��o das grandes empresas de tecnologia – como roubo de dados, v�cio em tecnologia, polariza��o pol�tica, dissemina��o de fake news e influ�ncias nas elei��es – est�o vinculados � estrutura algor�tmica de funcionamento das redes.
O dilema das redes deixa claro que o servi�o gratuito oferecido pelas plataformas digitais �, na verdade, um mecanismo para reter a aten��o dos internautas com o objetivo de vender an�ncios baseados em seus dados.
“Quando voc� n�o est� pagando pelo produto, ent�o voc� � o produto”, afirma o ex-funcion�rio do Google Tristan Harris, que conduz boa parte da trama. Segundo ele, o modelo de neg�cio � baseado na garantia de que os an�ncios ter�o sucesso a partir do rastreamento infinito de dados e o direcionamento das publica��es, criando o chamado “capitalismo de vigil�ncia”.
Todo o sistema � responsabilizado pelo desenvolvimento de um novo mercado que negocia o “futuro do ser humano em larga escala”, tornando as empresas de internet as mais ricas e lucrativas da hist�ria.
ALGORITMO
Para ilustrar o funcionamento e o impacto desse mecanismo na sociedade, o document�rio apresenta uma narrativa ficcional baseada na rotina de uma fam�lia norte-americana convencional.
O protagonista, Ben (Skyler Gisondo), � um adolescente que convive com as redes sociais diariamente e n�o se preocupa com os impactos dessa tecnologia. A intelig�ncia artificial respons�vel por conduzir seu engajamento nas redes � representada por tr�s indiv�duos, interpretados por Vincent Kartheiser, em um cen�rio dist�pico.
Cada um deles cumpre uma fun��o no cruzamento de dados do algoritmo e demonstra como os interesses financeiros das empresas s�o colocados como prioridade, em detrimento do bem- estar dos usu�rios.
Os personagens acompanham a vida de Ben, atuando para seu constante engajamento na plataforma. O document�rio revela como adolescentes s�o mais propensos ao v�cio das redes sociais e aponta como esse engajamento gera danos em sua sa�de mental. Mas a depend�ncia n�o se resume aos jovens.
Ex-funcion�rios das big techs relatam como ficaram viciados em celular e se preocupam com a capacidade humana de lidar com esses mecanismos. A frase “existem apenas duas ind�strias que chamam seus clientes de usu�rios: a de drogas e a de software”, de Edward Tufte, ilustra a discuss�o.
Ao explicar toda a arquitetura algor�tmica das redes socais, o document�rio apresenta de forma did�tica a rela��o do sistema com a polariza��o pol�tica. Fica evidente como fake news, teorias da conspira��o e discursos extremistas circulam com mais velocidade nas plataformas, tendo em vista que o algoritmo n�o se baseia na qualidade do conte�do, mas no n�vel de engajamento da publica��o.
A cria��o de “bolhas” sociais baseadas na intera��o dos usu�rios,� responsabilizada pelo aumento da intoler�ncia e discurso de �dio na internet. O filme mostra como essa essa din�mica causou danos � democracia e proporcionou a ascens�o de diversos l�deres extremistas ao redor do planeta. A elei��o do presidente Jair Bolsonaro, no Brasil, e o impacto da desinforma��o durante a pandemia da COVID-19 s�o destacados nesse contexto.
INTELIG�NCIA ARTIFICIAL
Segundo a perspectiva de O dilema das redes, o sistema saiu do controle das empresas e dos usu�rios. O filme alerta para o fato de a intelig�ncia artificial seguir se aprimorando exponencialmente na busca por engajamento e manipula��o dos usu�rios, e salienta a preocupa��o com a possibilidade de o algoritmo superar a mente humana.
O professor do Departamento de Comunica��o Social da UFMG Carlos D'Andr�a, autor do livro Pesquisando plataformas on-line: conceitos e m�todos, acredita que o filme cumpre uma fun��o pedag�gica importante, mas contesta o n�vel de manipula��o demonstrado.
Segundo ele, o rastreamento de dados pelas plataformas digitais n�o � capaz de domar o indiv�duo. “O modo como a manipula��o � colocada fica parecendo que os dados podem de fato nos conhecer, mas isso n�o � poss�vel. Nem tudo que fazemos � mensur�vel. O jogo � mais complexo do que o document�rio mostra”, afirma.
O professor diz que o filme n�o leva em considera��o um conjunto de especificidades do usu�rio, envolvendo idade, classe social, g�nero e nacionalidade, determinantes no impacto da tecnologia. Tamb�m questiona o fato de os pr�prios criadores dos sistemas ouvidos pelo document�rio legitimarem essa narrativa.
“A ideia de manipula��o � colocada como um sistema de cima para baixo, unidimensional, como se as pessoas n�o jogassem com os algoritmos, n�o enganassem os mecanismos em alguns momentos. A gente n�o pode enxergar isso como um processo estabilizado. Mesmo com a disparidade t�cnica e de poder econ�mico dessas plataformas, o jogo � jogado com os usu�rios”, diz.

Por outro lado, D'Andr�a aprova o debate sobre o v�cio em redes sociais. “Isso j� � identificado com um problema de sa�de p�blica em escala global. Esse debate � pertinente para criar oportunidades de di�logo e chamar a aten��o para algumas situa��es que n�o estavam muito claras.”
Apesar dos excessos, o professor frisa que existem benef�cios provenientes das plataformas e acredita que o document�rio simplificou a discuss�o em torno do fen�meno. “� importante que isso seja tomado como uma coisa que tem positividades. Se n�o fosse prazeroso, n�o trouxesse benef�cios sociais e profissionais, tudo j� teria ido para o espa�o”, comenta.
O cen�rio apocal�ptico desenhado no final do filme � um dos pontos que o professor critica. Segundo ele, j� existem diversos debates para otimizar o funcionamento das redes, incluindo propostas para incorporar a ideia de justi�a, redu��o da desigualdade e antirracismo nas l�gicas algor�tmicas.
REGULA��O
“Isso j� est� sendo pautado por ag�ncias regulat�rias. Nos Estados Unidos eles est�o discutindo isso pesadamente. Agora, isso ser colocado em pr�tica � mais delicado, porque envolve toda uma negocia��o comercial, pol�tica, regulat�ria, algo que � extremamente complexo”, afirma.
Embora avalie que o document�rio possa incentivar o espectador a desenvolver um olhar cr�tico em rela��o � tecnologia, o professor diz: “O que est� l� � correto, mas n�o se reduz �quilo. Existem outras quest�es que o document�rio n�o se prop�e a discutir. Seria importante que as pessoas, ao se dedicar ao filme, fa�am esse esfor�o de ampliar o debate. Devemos evitar uma vis�o simplista desse fen�meno”.
*Estagi�rio sob supervis�o da editora Silvana Arantes