Pai da eterna garotinha contestadora e um dos maiores e mais argutos talentos do cartum, Quino morreu ontem, aos 88 anos, na Argentina, em consequ�ncia de um derrame cerebral
Quino posa ao lado da escultura de Mafalda, instalada no bairro portenho de San Telmo, em 2009. Ele criou 1.928 tiras com sua mais famosa personagem, entre 1964 e 1973� (foto: Alejandro Pagni/AFP)
"Estamos fritos, rapazes! Se a gente n�o se apressar em mudar o mundo, depois � o mundo que muda a gente”, afirmou certa vez Mafalda. O mundo mudou – para pior, em v�rios aspectos, n�o h� como negar – desde que a garota questionadora, indignada e sarc�stica (e que odeia sopa) aportou nele, em 1964. Mafalda n�o mudou, mas certamente est� mais triste desde ontem com a morte de seu criador, o cartunista argentino Joaqu�n Salvador Lavado Tej�n, o Quino, aos 88 anos.
E n�o s� ela. "Quino morreu. Todas as boas pessoas do pa�s e do mundo ficar�o de luto por ele", anunciou, pelo Twitter, seu editor, Daniel Divinsky. Quino, que sofreu um derrame na �ltima semana, estava em sua cidade natal, Mendoza. Como previu Divinsky, o mundo chorou por ele, com milhares de mensagens nas redes sociais ao longo dessa ter�a-feira (30).
Com um planeta dividido, as reflex�es presentes na obra de Quino se fazem mais urgentes. “A rela��o entre os fracos e os poderosos sempre me as- sombrou. �s vezes, acho que deveria parar de desenhar um pouco para n�o sentir ang�stia nem medo de me repetir. Mas quando penso que vou abrir o jornal e meus desenhos n�o v�o mais estar l�, me d� mais ang�stia e eu continuo desenhando. Sou como aquele chefe de esta��o que se aposenta, mas volta todos os dias para ver se os trens est�o no hor�rio. N�o imagino ficar esperando os trens passarem. Al�m disso, na minha profiss�o n�o h� trens", afirmou em entrevista ao jornal argentino P�gina 12, em 2004.
Seus cartuns viajaram para muito al�m da Argentina. Foram traduzidos para mais de 35 idiomas. Diz-se que, a cada dois argentinos, um tem um livro de Quino. Recebeu in�meros pr�mios, entre eles a Legi�o de Honra da Fran�a e o Pr�ncipe das Ast�rias.
Admiradores de Quino depositaram flores em torno da escultura de Mafalda ontem, ap�s o an�ncio da morte do cartunista, ocorrida em Mendoza (foto: Andres Larrovere/AFP)
PR�MIO
“A hist�ria em quadrinhos pode ser uma arte menor, mas tamb�m como meio de comunica��o � bastante apropriada para divulgar maci�amente humor ou ideias, que n�o precisam ser humor�sticas. Ainda h� quem nos pergunte: ‘No que voc� trabalha, al�m daqueles cartuns?’. Tem gente que n�o faz isso por trabalho”, afirmou Quino, em 2014, ao se tornar o primeiro cartunista a receber o pr�mio espanhol.
Filho de imigrantes andaluzes, ele nasceu em Mendoza, em 17 de julho de 1932, embora os registros oficiais indiquem a data de 17 de agosto. Desde seu nascimento, foi chamado de Quino para distingui-lo de seu tio Joaqu�n Tej�n, pintor e designer gr�fico.
Aos 6 anos, Quino decidiu que se dedicaria aos quadrinhos. E quando percebeu que para isso precisaria saber ler e escrever, teve que suportar a escola: n�o gostava de aula e era t�mido demais para fazer amigos.
Aos 9, fez um acordo com a m�e: ela concordou em deix�-lo desenhar na mesa de madeira da cozinha se ele a limpasse toda vez que terminasse. Tr�s anos mais tarde, perdeu a m�e, v�tima de c�ncer. Passados outros tr�s anos, seu pai sofreu um ataque card�aco fulminante.
A casa da fam�lia, organizada em torno do r�dio, em que se ouviam not�cias da Guerra Civil espanhola e da av�, que contava hist�rias comunistas, foi dissolvida. Quino voltou a ficar aos cuidados do tio. Foi quando desenhou os quadrinhos que levou para Buenos Aires na primeira vez em que tentou a sorte na capital argentina, aos 19 anos.
Nem jornais, revistas ou ag�ncias de publicidade se interessaram. Ele voltou para Mendoza. Mas n�o desistiu. Incentivado por parentes, rumou mais uma vez para Buenos Aires, onde passou a viver em quartos coletivos de pens�es.
Sua carreira come�a a decolar entre o fim dos anos 1950 e o in�cio dos anos 1960. Em 1962, uma ag�ncia de publicidade lhe encomendou um cartum para lan�ar uma linha de eletrodom�sticos da marca Mansfield.
Havia duas condi��es: o nome da personagem da tira tinha que come�ar com Ma, como a marca, e o contexto deveria ser o de uma fam�lia de classe m�dia. Quino se lembrou de um filme a que havia assistido, Dar la cara (1962, dirigido por Jos� A. Mart�nez Su�rez), que tinha um beb�, Mafalda, como um dos personagens.
A campanha nunca foi lan�ada, mas, em 1964, quando lhe perguntaram se n�o tinha desenhos para publicar no seman�rio Primera Plana, sua mulher, Alicia Colombo (os dois se casaram em 1960, n�o tiveram filhos e ficaram juntos at� a morte dela, em 2017), foi quem tirou Mafalda da gaveta. A garota gordinha de 8 anos, com cabelo espesso, estreou em 29 de setembro de 1964, um ano ap�s Quino ter publicado seu primeiro livro, Mundo Quino.
Mafalda existiu por quase 10 anos – estrelou 1.928 tiras. Com humor sutil, carregada de cr�tica social, as tirinhas da garota e dos amigos Susanita, Miguelito, Manolito, Felipe e Libertad foram os �nicos personagens permanentes que ele desenhou.
FIM
Em 25 de junho de 1973, Quino publicou sua �ltima tira com a personagem. Justificou o fim dela com o medo de se repetir. "Mafalda saiu bem porque a �poca em que a criei era boa, embora houvesse conflitos como sempre. O ser humano � barraqueiro por natureza", explicou ele.
Mas a personagem se eternizou e continuou influenciando novas ge- ra��es. O retrato de Mafalda est� pendurado na Galeria dos �dolos Populares da Casa Rosada, a sede do governo argentino, junto com lendas como o ex-jogador de futebol Diego Maradona, o cantor de rock Charly Garc�a, o bailarino cl�ssico Julio Bocca, o automobilista Juan Manuel Fangio e o cantor de tango Carlos Gardel.
Embora nunca tenha negado a fama mundial que Mafalda lhe trouxe, Quino sempre a considerou mais um personagem. "Nunca a amei mais do que meus outros desenhos", disse. Ele avaliava que a paix�o que a garota despertava em milh�es de pessoas foi tamb�m a maior raz�o pela qual suas outras obras n�o receberam tanta aten��o.
Em 2009, escreveu a carta “At� mais tarde, amigos”: despediu-se do medo de se repetir, como acontecera com Mafalda. Naquele momento, j� tinha problemas de vis�o e de locomo��o. “Considero essa atitude a mais honesta que posso assumir neste momento”, escreveu. Al�m dos livros de Mafalda, havia publicado quase duas dezenas de obras.
A marca, independentemente da personagem, se manteve. Sempre reivindicou a liberdade, muitas vezes ironizou a explora��o do trabalho e tamb�m fez humor com a psican�lise. Lac�nico, por vezes melanc�lico e em muitas outras brilhante, Quino levava nas paredes de seu est�dio uma reprodu��o de Guernica, que lhe lembrava sempre o Picasso que gostaria de ter sido – n�o fosse o artista que era, claro.
Tamb�m na parede, outra imagem que dizia muito sobre ele: "Por motivos de timidez, relatos de qualquer esp�cie n�o s�o aceitos". N�o era brincadeira: "Desenho porque falo mal", confessou certa vez.
O que Quino disse
“Eu queria ser Picasso, mas chegou um momento em que percebi que n�o poderia ser Picasso.”
“Fiquei muito frustrado porque a �nica vez em que pude trocar algumas palavras com (Jorge Luis) Borges ele falava da l�ngua espanhola. Eu disse a ele: 'Desculpe, sou filho de imigrantes andaluzes.' E ele me disse: ‘Ah, voc� sabe que a palavra andaluz vem dos v�ndalos...’”
“N�o era minha inten��o que a Mafalda durasse tanto. Eu esperava que o mundo melhorasse, mas a pol�tica liberal est� tornando os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres."
O que Mafalda disse
“Quero dar os parab�ns aos pa�ses que lideram a pol�tica mundial. Espero que sempre haja motivos."
“Gosto das pessoas que pensam o que dizem, mas, acima de tudo, gosto das pessoas que fazem o que dizem.”
“J� que h� mundos mais evolu�dos, por que eu tive que nascer justo neste?”
“Boa-noite, mundo! Boa noite e at� amanh�, mas fique de olho! Tem muita gente irrespons�vel acordada, viu?”
O que falaram sobre Mafalda
“N�o importa o que eu penso da Mafalda. O importante � o que a Mafalda pensa de mim.”
(Julio Cort�zar)
“Ela n�o ama nem respeita, pelo contr�rio: ridiculariza e repudia, reivindica o direito de continuar a ser uma menina que n�o quer incorporar o universo adulto.”
(Umberto Eco)
“Mafalda tocou em temas profundos da alma humana.”
(Ernesto S�bato)
Mauricio de Sousa se despede do 'irm�o'
O desenhista brasileiro Mauricio de Sousa escreveu sobre a perda do amigo Quino e lembrou que o argentino criou a Mafalda no mesmo ano em que ele criou a M�nica.
"O amigo Quino est� agora desenhando pelo universo com aqueles tra�os lindos e com um humor certeiro como sempre fez. Criou sua Mafalda, hoje de todos n�s, no mesmo ano em que eu criei a M�nica, em 1963. Por isso, nos tornamos irm�os latino-americanos para desbravar o mundo dos quadrinhos. Estive com ele em 2015, em Buenos Aires, no Centro Cultural Brasil-Argentina, onde o presenteei com uma M�nica ao lado da Mafalda na comemora��o dos 50 anos das duas personagens. Uma pessoa d�cil e um dos maiores desenhistas de humor de todos os tempos. Quino vive agora mais forte dentro de n�s."