
Alice e Paulo ficaram casados por mais de 20 anos. Ele, engenheiro de produ��o; ela, professora de ingl�s. N�o tiveram filhos. A COVID-19 os separou. Em 18 de abril passado, Paulo, hipertenso, sucumbiu ao v�rus, que j� matou mais de 150 mil brasileiros. Um m�s antes, aflito por ser obrigado a ficar fechado em casa, ele havia conversado com o amigo Frei Betto pelo telefone. “Voc� sempre soube que n�o sou de ler. Nem mesmo os livros com que voc� me presenteia.”
No dia seguinte a essa conversa, 23 de mar�o, Frei Bettoescreveu em seu di�rio um texto dirigido a Paulo, com 10 dicas sobre como suportar melhor a reclus�o. Ainda que naquele per�odo a quarentena estivesse apenas no come�o, o frade dominicano, escritor e cronista j� dominava o assunto. Ele foi preso pela ditadura militar e ficou encarcerado durante quatro anos (1969 a 1973). Desse per�odo resultou seu primeiro livro, Cartas na pris�o.
Quarenta e seis anos e 67 livros depois, Frei Betto volta a escrever sobre reclus�o. Desta vez, como ele mesmo diz, com a “chave do lado de dentro do c�rcere”. Di�rio de quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos (Rocco), que come�a a chegar nesta quinta (15) �s livrarias, acompanha tr�s meses (de 18 de mar�o a 16 de junho) da pandemia do novo coronav�rus. Tamb�m nesta quinta, �s 18h, o autor promove o lan�amento da obra em edi��o virtual do projeto Sempre um Papo.

H� dias que tem apenas uma frase; outros, p�ginas e p�ginas. Em 13 de abril, por exemplo, ele d� in�cio a um extenso relato sobre a morte de Tancredo Neves (1910-1985), ocorrida tamb�m em um m�s de abril, mas 35 anos atr�s.
Muito pr�ximo dos Neves, Frei Betto acompanhou, sempre ao lado dos familiares, doen�a, morte e sepultamento do presidente eleito. “Doutor Tancredo segurou a minha m�o e, emocionado, chorou enquanto eu terminava a prece de louvor pela recupera��o dele”, escreve o autor sobre fato ocorrido em 3 de abril de 1985.
Frei Betto decidiu que o seu di�rio cobriria apenas tr�s meses da quarentena (estamos nos aproximando do s�timo) para que o livro sa�sse ainda durante o per�odo em que se demandam todos cuidados para a erradica��o da epidemia. “Busquei nisso um recurso terap�utico. Di�rio de quarentena � uma janela que abri em minha subjetividade e em minha mem�ria”, afirma o autor na entrevista a seguir.
O senhor come�ou o di�rio j� pensando em uma futura publica��o ou ele foi tomando forma ao longo do tempo?
J� pensava em publica��o, mas fugi do di�rio tradicional, no qual o personagem principal � sempre o autor. Por isso utilizei v�rios g�neros liter�rios, de fic��o a ensaio, de artigo jornal�stico a textos espirituais. Busquei nisso um recurso terap�utico, como minhas Cartas da pris�o (Companhia das Letras), que, ali�s, n�o foram escritas para ser publicadas, e sim para organizar meu caos interior sob a opress�o da ditadura militar. Di�rio de quarentena � uma janela que abri em minha subjetividade e em minha mem�ria.
No in�cio, o senhor fala do cansa�o das viagens (“uma a cada tr�s dias”) e de aproveitar o momento de reclus�o para se dedicar a tarefas que havia deixado de lado, justamente por estar sempre fora. Uma reclus�o for�ada ajuda na escrita?
Sim, a maioria dos autores que conhe�o precisa de reclus�o para criar. Este � meu 69º livro. E quase todos s�o frutos de tempos de reclus�o. Reservo 120 dias do ano para escrever. Costume que mantenho faz 33 anos.
Cinco d�cadas passadas desde o per�odo em que o senhor ficou preso, que analogias consegue fazer com a quarentena atual?
Como registro no Di�rio, a diferen�a � que, agora, a chave fica do lado de dentro do c�rcere... Na pris�o, ela est� sempre do lado de fora. E estar preso voluntariamente � um luxo, pois disponho de TV, cozinha, biblioteca etc. A �nica semelhan�a com a pris�o � a falta de mobilidade (isso para quem respeita a quarentena). H� outro fator que me recordo de meus quatro anos de pris�o: fiquei dois anos sem a menor no��o de quanto tempo ficaria ali, pois s� fui julgado dois anos depois de preso. E, hoje, ningu�m sabe quando essa pandemia vai, de fato, cessar.
“Mineiro desconfiado”, como o senhor se define, acredita que este per�odo sombrio possa trazer mudan�as positivas?
N�o sou muito otimista, pois vejo o descaso do nosso governo com a maioria de nosso povo, que n�o pode se dar ao luxo de ficar em quarentena, precisa sair � rua para sobreviver, enfrentar aglomera��es em �nibus e metr�s etc. Fosse um governo de fato preocupado com as pessoas, faria o que se faz na Europa, onde os sal�rios dos que precisam ficar em casa s�o complementados pelos governos. Por outro lado, vejo crescer a xenofobia e o autoritarismo, o que n�o me deixa esperan�oso de que a humanidade haver� de tirar boas e grandes li��es dessa pandemia. Apesar de tudo, guardo o axioma: vamos deixar o pessimismo para dias melhores!.
Como o senhor analisa o per�odo atual, da flexibiliza��o? Ali�s, o senhor permanece recluso?
Permane�o recluso e s� saio � rua em caso de extrema necessidade. Aos 76 anos, embora sem doen�as preexistentes, sou vulner�vel. E a reclus�o � minha op��o de vida, embora eu n�o seja um monge enclausurado. Considero prematura a flexibiliza��o. E o modo como nossos governos (municipal, estadual e federal) s�o indiferentes a quem circula sem m�scara, promove aglomera��es etc. Pena que os relapsos n�o sejam multados, como acontece na It�lia.
De que maneira poderemos sair mais fortes deste per�odo?
Primeiro, preservando a sa�de, f�sica, mental e espiritual. A f�sica, pela reclus�o (pra quem pode...) e/ou excessivos cuidados. A mental, pelas 10 dicas que aponto no livro, dicas de como suportar a reclus�o, como leituras, jogos, artesanato etc. E a espiritual, pela medita��o e ora��o.
O senhor cita v�rios autores e livros no di�rio. Qual a leitura que mais o confortou nesse per�odo?
Leituras que contextualizam como foi redigido o evangelho de Marcos, o primeiro dos quatro. Isso me fez mergulhar no Imp�rio Romano, no juda�smo e na cultura da Palestina do s�culo 1, na vis�o de Jesus como militante pol�tico.
O que espera do Brasil, e dos nossos governantes – j� que estamos � beira de uma elei��o municipal –, p�s-pandemia?
Espero que tomem vergonha na cara, aprovem uma reforma tribut�ria progressiva (quem ganha mais, paga mais), reduzam os sal�rios dos maraj�s, aprimorem a democracia e fa�am cessar o genoc�dio (mais de 150 mil mortos por descaso do governo federal) e o ecoc�dio (a devasta��o de nossos melhores biomas).
DI�RIO DE QUARENTENA
>> Frei Betto
>> Rocco (224 p�gs.)
>> R$ 49,90 e R$ 29,90 (e-book)
>> Nesta quinta (15), �s 18h, o autor participa do Sempre um Papo, transmitido pelos canais do projeto no YouTube, Instagram e Facebook