
“Gostaria de assistir � passagem do s�culo”, escreveu Ant�nio Carlos de Brito, o Cacaso, na antologia Beijo na boca e outros poemas (1985). Seu desejo n�o se realizou. Dois anos mais tarde, em 27 de dezembro de 1987, o poeta, letrista e professor universit�rio nascido em Uberaba sucumbiu a um infarto, sofrido no escrit�rio de seu apartamento, na Avenida Atl�ntica, em frente ao Posto 3, em Copacabana. Tinha 43 anos.
Mas a obra de Cacaso, um dos nomes essenciais da poesia marginal, sobreviveu e muito bem. Poesia completa (Companhia das Letras), a partir deste s�bado (24) nas livrarias, re�ne seus seis livros publicados – de A palavra cerzida, de 1967, a Mar de mineiro, de 1982 –, al�m de v�rios poemas in�ditos e letras de m�sicas que comp�s com diferentes parceiros.
O volume de 450 p�ginas ainda traz uma s�rie de ilustra��es do autor, bem como textos de amigos e especialistas em sua obra: Roberto Schwarz, Heloisa Buarque de Hollanda, Francisco Alvim, Vilma Ar�as e Mariano Marovatto.
“Acho que Cacaso � um poeta do seu tempo, um tempo em que m�sica e poesia estavam muito pr�ximas. H� elementos muito ricos em sua poesia, marcada pela oralidade, brincadeira, vontade de n�o levar a literatura a s�rio. Isso entre aspas, j� que ele n�o queria fazer da literatura uma coisa s�ria”, destaca a tradutora e editora Helo�sa Jahn.
Coube a ela organizar o material in�dito, contido nos 23 cadernos que Cacaso produziu, como di�rios, ao longo da vida. Andava sempre com um deles na insepar�vel bolsa de couro a tiracolo. “Seu m�todo de escrita era muito pessoal. Ele vivia escrevendo nos di�rios, onde fazia colagens, escrevia poesia. Poderia ser um caderno de estudo liter�rio tamb�m”, conta a cantora Rosa Em�lia Dias, a segunda mulher de Cacaso e m�e de sua filha, Paula Dias de Brito, de 33 anos. Do primeiro casamento, com a antrop�loga Leilah Landim Assump��o, Cacaso teve Pedro Landim, jornalista, hoje com 49.

SONGBOOK
Foi a baiana Rosa Em�lia, h� tr�s d�cadas radicada na It�lia, quem deu in�cio ao projeto que gerou o livro. “Como j� havia sido feita uma colet�nea com todos os poemas (Lero-lero, lan�ado em 2002 pela Cosac Naify), pensei em fazer um songbook do Cacaso. At� ent�o, conheciam-se 80 letras”, relembra. Prol�fico letrista, Cacaso foi parceiro de Nelson Angelo, Francis Hime, Edu Lobo, Sueli Costa, Danilo Caymmi, Tom Jobim, e Toninho Horta, entre muitos outros.
Ao fazer contato com Helo�sa Jahn, Rosa Em�lia ouviu da editora a sugest�o de voltar aos cadernos, ent�o sob a guarda de Pedro Landim, para procurar material in�dito. Ela, por seu lado, continuou a trabalhar na produ��o musical. Ao final da pesquisa, a cantora chegou a um volume de 266 can��es. Com um material de tamanho vulto, ficou invi�vel reunir tudo (quem sabe um songbook no futuro?). Tanto � assim que o cap�tulo organizado por Rosa Em�lia, Algumas letras (1965-1987), apresenta 60 delas.
Enquanto isso, Helo�sa, j� com os manuscritos reunidos, iniciou um trabalho de organiza��o e revis�o do material, que foi produzido por Cacaso entre 1977 e 1987. “A ideia n�o era fazer uma sele��o, mas verificar o que tinha virado poema, o que era letra de m�sica. Quis colocar anota��es para a raiz de um poema, s�nteses de experi�ncias, passagens, para que os in�ditos tivessem a fun��o de documento da cria��o liter�ria, uma coisa viva”, diz a editora. Tal material est� no cap�tulo Poemas in�ditos (1977-1987).
FALA MACIA
A parte final do volume traz a fortuna cr�tica. “Cacaso tem o g�nio brasileiro da fala macia, sensual e maliciosa. � da fam�lia de Bandeira, cuja linguagem � sem artif�cios, muito mais do que da de Drummond ou Cabral”, escreveu o poeta e amigo Francisco Alvim, que estreou com Sol dos cegos, em 1968, um ano ap�s Cacaso ser publicado. “Considerava nossas estreias como parentas bem pr�ximas, ambas sa�das do legado modernista.”
“Cacaso foi, antes de mais nada, personagem totalmente singular numa hora em que a poesia foi eleita como a forma de express�o predileta da gera��o que experimentou, de maneira cabal, o peso dos anos de chumbo. Num certo sentido, Cacaso nos colocou uma armadilha interessante: pensar sua poesia sem pensar na sua vida � quase errado”, escreveu Heloisa Buarque de Hollanda.
Tamb�m muito pr�xima de Cacaso, a escritora Vilma Ar�as escreveu um texto bem pessoal, em que relembra uma hist�ria curiosa, “s� estranha para a caretice de hoje”. Em um dia, relata a autora, depois de beber com Geraldinho Carneiro (atual membro da Academia Brasileira de Letras) e Ana Cristina C�sar na praia de Copacabana, Vilma, sentindo-se “um pouco alta”, foi tomar um banho de mar de roupa e tudo. Ao se lembrar de que teria uma reuni�o na sequ�ncia, n�o pensou duas vezes. “Est�vamos em frente � casa do Cacaso. Fomos correndo pra l�. Ele n�o se admirou nem um pouco, claro, me emprestou roupas suas, me enfiei nelas e fui cumprir o compromisso.”
Tal hist�ria tamb�m est� no document�rio Cacaso na corda bamba (2016), de Jos� Joaquim Salles e PH Souza, que re�ne v�rios amigos e companheiros de gera��o do poeta – o longa-metragem est� dispon�vel na plataforma de streaming Tamandu� (tamandua.tv.br).
Agregador, Cacaso teve muitos e bons amigos, como destaca Rosa Em�lia. “Aprendi com ele o culto �s amizades. O Cacaso formou a minha cabe�a, pois t�nhamos uma diferen�a de idade de 21 anos. Mas o respeito era rec�proco, pois era um grande intelectual, mas muito modesto. E formou n�o s� a minha (cabe�a), j� que ele era uma esp�cie de guru de muita gente. Tinha sacadas geniais, era observador, espert�ssimo, mas doce, nunca com m�s inten��es. E seguia uma metodologia de trabalho invej�vel, pois era muito disciplinado”, diz.

POESIA COMPLETA
. Cacaso
. Companhia das Letras (456 p�gs.)
. R$ 89,90
TRECHOS
Confira dois textos in�ditos de
Cacaso, agora publicados no volume
Versos
S� faz ornato
quem � esteta
S� � poeta
quem faz soneto
S� faz poema
quem tenha tema
s� faz dueto
quem soma exato
S� � bonito
quando � poema
Chuva
Minha m�e ficou vi�va
minha v� ficou solteira
sabi� cantou na chuva
l� no p� de laranjeira
a formiga da sa�va
t� comendo a trepadeira
eu n�o abro guarda-chuva
quando a chuva � criadeira
sabi� cantou na praia
respondeu na cachoeira