Aderbal Freire-Filho em cena de "Depois do filme", mon�logo que ele apresentou no FIT-BH em 2012
Morreu nesta quarta-feira (9) o diretor teatral Aderbal Freire-Filho, aos 82 anos, um dos grandes encenadores brasileiros do s�culo 20, devolveu � palavra a for�a da cena. Em uma centena de produ��es para o teatro, foi mestre do encontro do liter�rio com a teatralidade.
A informa��o foi confirmada por sua assessoria de imprensa. Ele estava internado h� meses devido a um acidente vascular cerebral.
Em uma edi��o do "antiprograma" Arte do Artista, que apresentou na TV Brasil, deitou-se muito � vontade com seu notebook no ch�o do cen�rio feito de peda�os de pe�as do seu repert�rio, para anunciar o papo com editores de uma revista impressa de cr�tica e est�tica. Ali, v�amos enla�ar o s�rio e o humor, a erudi��o e o ch�o do palco.
Inventor nos palcos cariocas
Nascido em Fortaleza, em 1941, filho do dono de uma livraria que faliu, tornou-se inventor nos palcos cariocas depois que preferiu o teatro � advocacia. J� atuava desde os 13 anos quando chegou ao Rio de Janeiro, em 1970.
O aperto para pagar o aluguel o impeliu � dire��o. Trabalhava ent�o como ator, com os diretores Nelson Xavier e Cecil Thir�, em O Segredo do Velho Mundo, quando escreveu e montou uma adapta��o de Flicts, do Ziraldo, para ser apresentada nos hor�rios livres do teatro que ocupavam na Lagoa.
O mesmo artista que criou um dos site-specific mais emblem�ticos da historiografia teatral brasileira, "A Morte de Danton", de 1977, tamb�m p�s em cena obras liter�rias na �ntegra, os chamados romance-em-cena, como "O que diz moleiro" (2004), de Dinis Machado.
Tantas vias criativas atestam a inquieta��o de um experimentador que cultivou o prazer de trabalhar sobre a escrita de outros autores com um sentido pr�prio de fidelidade. Buscava a compreens�o da ideia de teatro daquele texto para melhor express�-la cenicamente.
Dizia preferir montar os dramaturgos vivos: "Fico na porta do teatro perguntando se Shakespeare chegou", brincava.
Devoto debochado de Brecht, cogitava que, se o alem�o fosse seu contempor�neo, teria se interessado pelas combina��es entre o dram�tico e o �pico, tal como ele. Praticou, portanto, uma fidelidade desejante, em muta��o.
Nos anos 1970 e 1980, Aderbal se dedicou a encenar uma gera��o de dramaturgos brasileiros como Flavio Marcio, Aldomar Conrado, Vianinha e Leilah Assump��o.
Ainda assinava Aderbal J�nior quando dirigiu "Apareceu a Margarida" (1973), primeira obra de Roberto Atahyde, uma representa��o do terror do autoritarismo na educa��o, em meio � intensa repress�o pol�tica. Teve a temporada interrompida pela censura.
Embora o sucesso tenha sido creditado � estrela Mar�lia P�ra, ali Aderbal j� dava dire��o ao seu teatro: arranjar palavras, luz, sons e espa�o como mat�ria bruta para compor viagens imaginativas, cr�ticas � viol�ncia do exerc�cio de poder.
"A Morte de Danton" no metr� do Rio
Com esse esp�rito cr�tico, desceu os dez metros da cratera de um metr� do Rio, ainda em constru��o, para fazer dramaturgia com o espa�o em "A Morte de Danton" (1978), de Buchner. Uma met�fora concreta das for�as revolucion�rias subterr�neas no enfrentamento da ditadura.
Para Aderbal, a liberdade n�o exclu�a a precis�o. Na dire��o de atores e atrizes, julgava necess�rio que cada artista desenvolvesse sua compreens�o do espet�culo, como coautor, para que na atua��o n�o escapasse uma ideia equivocada da cena.
N�o via vantagens no "espontane�smo". Marcava a movimenta��o como um core�grafo, por mais que essa pr�tica n�o fosse bem vista no teatro contempor�neo.
Quando Julia, a fict�cia esposa do revolucion�rio franc�s em "A Morte de Danton", envenena-se, sai de cena subindo � superf�cie do metr�. Para Aderbal, esse era um exemplo de solu��o � qual dificilmente chegaria pela improvisa��o, ou somente ap�s uma s�rie de sensos comuns como deixar-se cair ou deitar-se.
O que lhe interessava era a expressividade.
"No teatro n�o h� regras, as formas s�o demolidas e reconstru�das"
Aderbal Freire Filho, diretor e dramaturgo
Por "M�o na Luva", de 1984, com Marco Nanini e Juliana Carneiro da Cunha, conquistou dois pr�mios Mambembes (MinC). Vivia um per�odo de intensa troca com a Am�rica Latina, principalmente com o Uruguai, onde levou o pr�mio de melhor espet�culo estrangeiro de 1985.
Em 1990, fundou o Centro de Demoli��o e de Constru��o do Espet�culo, em uma ocupa��o-recupera��o do Teatro Glaucio Gil, materializando a ideia de que no teatro "n�o h� regras, as formas s�o demolidas e reconstru�das".
L� estreou "A mulher carioca aos 22 anos", romance de Jo�o de Minas que Aderbal achara anos antes em um sebo e comparara a Nelson Rodrigues. As 210 p�ginas do livro tornaram-se quatro horas de um romance-em-cena que investia radicalmente na narratividade e renderia ao diretor o Pr�mio Shell.
Nos anos seguintes conduziu o p�blico pelas salas do Pal�cio do Catete para contar a trajet�ria de Get�lio Vargas, em "O tiro que mudou a hist�ria" (1991), e espalhou cenas de "Tiradentes, Inconfid�ncia no Rio" (1992) por museus, ruas e por�es, convidando grupos de espectadores a realizarem o percurso em �nibus fretados.
Em 1994, Aderbal passa a dirigir o Teatro Carlos Gomes, onde montou "A senhora dos afogados", de Nelson Rodrigues.
Com tantos nomes de vulto em sua trajet�ria, � imposs�vel sintetizar todo o frisson que suas produ��es causaram - como o "Hamlet" despojado de Wagner Moura, em 2008, que irritou parte da cr�tica e foi dito "o Hamlet de uma gera��o" por outra.
Nos anos 2000, tamb�m ganharam for�a seus romances-em-cena, como "P�caro b�lgaro" (2006), de Campos de Carvalho, e "Moby Dick" (2009), de Melville. O monstruoso n�o era constru�do no palco, onde quatro atores narravam, mas provocado na imagina��o do espectador.
Aderbal j� se definiu como core�grafo de palavras, signos e a��es. Foi um experimentador das mat�rias do mundo, o que talvez seja uma boa defini��o para um encenador de teatro.
Com a parceira Marieta Severo, Aderbal Freire Filho montou "As centen�rias", de Newton Moreno (2009), e a trag�dia libanesa "Inc�ndios" (2013)
A bonita parceria com Marieta Severo chegou a pe�as como "As centen�rias", de Newton Moreno (2009), e a trag�dia libanesa "Inc�ndios" (2013). Mantiveram uma rela��o de duas d�cadas, vivendo em resid�ncias separadas at� que Aderbal sofreu um AVC em 2020 e ela montou uma UTI em casa para cuidar do marido.
Em um de seus trabalhos derradeiros, dirigiu Luc�lia Santos e Beatriz Azevedo no "Cabar� transpo�tico" (2019), inspirado pelo "Cabar� Voltaire" su��o, onde vanguardistas refugiavam-se em meio � Primeira Guerra Mundial.
Na �ltima d�cada, acirrou a cr�tica social em sua fala e escrita, e lamentou a desconex�o da popula��o com uma arte que, nos anos de chumbo, fizera-se porta-voz da luta pol�tica.
A quem lhe perguntasse sobre a import�ncia do teatro para a sociedade, respondia: nenhuma. A quem se preocupasse com o futuro dessa arte, contudo, professava que chegaria o dia em que tudo seria feito por aplicativo - menos o teatro.
Com Aderbal, pudemos imaginar vivamente.
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