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Estado de Minas LITERATURA

'Torto arado': leia um trecho do livro de Itamar Vieira Junior

Livro conquistou o pr�mio Jabuti de melhor romance liter�rio de 2020


15/02/2021 17:47

Torto arado, romance de Itamar Vieira Júnior
Torto arado, romance de Itamar Vieira J�nior (foto: Divulga��o/Todavia)
Quando retirei a faca da mala de roupas, embrulhada em um peda�o de tecido antigo e encardido, com n�doas escuras e um n� no meio, tinha pouco mais de sete anos.

Minha irm�, Belon�sia, que estava comigo, era mais nova um ano. Pouco antes daquele evento est�vamos no terreiro da casa antiga, brincando com bonecas feitas de espigas de milho colhidas na semana anterior. Aproveit�vamos as palhas que j� amarelavam para vestir feito roupas nos sabugos. Fal�vamos que as bonecas eram nossas filhas, filhas de Bibiana e Belon�sia.

Ao percebermos nossa av� se afastar da casa pela lateral do terreiro, nos olhamos em sinal de que o terreno estava livre, para em seguida dizer que era a hora de descobrir o que Donana escondia na mala de couro, em meio �s roupas surradas com cheiro de gordura ran�osa.

Donana notava que cresc�amos e, curiosas, invad�amos seu quarto para perguntar sobre as conversas que escut�vamos e sobre as coisas de que nada sab�amos, como os objetos no interior de sua mala. A todo instante �ramos repreendidas por nosso pai ou nossa m�e.

Minha av�, em particular, s� precisava nos olhar com firmeza para sentirmos a pele arrepiar e arder, como se tiv�ssemos nos aproximado de uma fogueira. Por isso, ao v�-%u2011la se afastar em dire��o ao quintal, olhei para Belon�sia.

Decidida a revirar suas coisas, n�o hesitei em caminhar, na ponta dos p�s, em dire��o ao quarto, para abrir a mala de couro envelhecida, com manchas e uma grossa camada de terra acumulada sobre ela. A mala, durante toda a nossa exist�ncia at� ent�o, estava debaixo da cama. Eu mesma fui para o quintal espiar pela porta e ver v� Donana se arrastando em dire��o � mata, que ficava depois do pomar e da horta, depois do galinheiro com seus poleiros velhos.

Naquele tempo, costum�vamos ver nossa av� falar sozinha, pedir coisas estranhas como que algu�m — que n�o v�amos — se afastasse de Carmelita, a tia que n�o hav�amos conhecido. Pedia que o mesmo fantasma que habitava suas lembran�as se afastasse das meninas. Era uma profus�o de falas desconexas. Falava sobre pessoas que n�o v�amos — os esp�ritos — ou de pessoas sobre as quais quase nunca ouv�amos, parentes e comadres distantes.

Nos habituamos a ouvir Donana falar pela casa, falar na porta da rua, no caminho para a ro�a, falar no quintal, como se conversasse com as galinhas ou com as �rvores secas. Eu e Belon�sia nos olh�vamos, r�amos sem alarde, e nos aproxim�vamos sem que percebesse. Fing�amos brincar com algo por perto s� para escutar e, depois, com as bonecas, com os bichos e as plantas, repetirmos o que Donana havia dito como coisa s�ria. Repet�amos o que minha m�e dizia baixo para o pai na cozinha. “Hoje ela est� falando muito, a cada dia fala mais sozinha.”

O pai relutava em admitir que minha av� estivesse com sinais de dem�ncia, dizia que a vida toda a m�e havia falado consigo mesma, a vida toda havia repetido rezas e encantos com a mesma distra��o com que revirava os pensamentos. Naquele dia, escutamos a voz de Donana se afastar no espa�o do quintal, em meio ao cacarejo e aos cantos das aves.

Era como se as rezas e senten�as que proferia, e que muitas vezes n�o faziam sentido para n�s, estivessem sendo carregadas para longe, carregadas pelo sopro de nossas respira��es ansiosas pela transgress�o que est�vamos prestes a cometer.

Belon�sia se enfiou debaixo da cama e puxou a mala. O couro de caititu que cobria as imperfei��es do ch�o de terra se encolheu sob seu corpo. Abri a mala sozinha, sob nossos olhos luminosos. Levantei algumas pe�as de roupa antigas, surradas, e de outras que ainda guardavam as cores vivas que a luz do dia seco irradiava, luz que nunca soube descrever de forma exata.

E no meio das roupas mal dobradas e arrumadas havia um tecido sujo envolto no objeto que nos chamou a aten��o, como se fosse a joia preciosa que nossa av� guardava com todo seu segredo. Fui eu quem desatou o n�, atenta � voz de Donana que ainda estava distante.

Vi os olhos de Belon�sia cintilarem com o brilho do que descobr�amos como se fosse um presente novo, forjado de um metal rec�m-%u2011tirado da terra. Levantei a faca, que n�o era grande nem pequena diante dos nossos olhos, e minha irm� pediu para pegar.

N�o deixei, eu veria primeiro. Cheirei e n�o tinha o odor ran�oso dos guardados de minha av�, n�o tinha manchas nem arranh�es. Minha rea��o naquele pequeno intervalo de tempo era explorar ao m�ximo o segredo e n�o deixar passar a oportunidade de descobrir a serventia da coisa que resplandecia em minhas m�os. Vi parte de meu rosto refletido como num espelho, assim como vi o rosto de minha irm�, mais distante. Belon�sia tentou tirar a faca de minha m�o e eu recuei.

“Me deixa pegar, Bibiana.” “Espere.” Foi quando coloquei o metal na boca, tamanha era a vontade de sentir seu gosto, e, quase ao mesmo tempo, a faca foi retirada de forma violenta. Meus olhos ficaram perplexos, vidrados nos olhos de Belon�sia, que agora tamb�m levava o metal � boca.

Junto com o sabor de metal que ficou em meu paladar se juntou o gosto do sangue quente, que escorria pelo canto de minha boca semiaberta, e passou a gotejar de meu queixo. O sangue se p�s a embotar de novo o tecido encardido e de n�doas escuras que recobria a faca.

Belon�sia tamb�m retirou a faca da boca, mas levou a m�o at� ela como se quisesse segurar algo. Seus l�bios ficaram tingidos de vermelho, n�o sabia se tinha sido a emo��o de sentir a prata, ou se, assim como eu, tinha se ferido, porque dela tamb�m escorria sangue. Tentei engolir o que podia, minha irm� tamb�m esfregava r�pido a m�o na boca com os olhos marejados e apertados, tentando afastar a dor. Ouvi os passos lentos de minha av� chamando Bibiana, chamando Zez�, Domingas, Belon�sia. “Bibiana, n�o est� vendo as batatas queimando?”

Havia um cheiro de batata queimada, mas tinha tamb�m o cheiro do metal, o cheiro do sangue que ensopava minha roupa e a de Belon�sia. Quando Donana levantou a cortina que separava o c�modo em que dormia da cozinha, eu j� havia retirado a faca do ch�o e embrulhado de qualquer jeito no tecido empapado, mas n�o havia conseguido empurrar de volta a mala de couro para debaixo da cama.

Vi o olhar assombrado de minha av�, que desabou sua m�o grossa na minha cabe�a e na de Belon�sia. Ouvi Donana perguntar o que est�vamos fazendo ali, porque sua mala estava fora do lugar e que sangue era aquele. “Falem”, disse, nos amea�ando arrancar a l�ngua, que estava, mal ela sabia, em uma das nossas m�os.


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