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Estado de Minas M�SICA

M�sicos surdos mostram como a cria��o vai al�m dos sentidos

Artistas com doen�as cr�nicas ou perda de capacidades como a audi��o demonstram que o corpo ultrapassa barreiras para seguir se expressando com criatividade


01/03/2021 04:00 - atualizado 01/03/2021 07:04

Tony Bennett durante show em Massachusetts, em agosto de 2019. Ele foi diagnosticado com Alzheimer em 2016, mas só tornou pública sua condição no mês passado(foto: Joseph Prezioso/AFP )
Tony Bennett durante show em Massachusetts, em agosto de 2019. Ele foi diagnosticado com Alzheimer em 2016, mas s� tornou p�blica sua condi��o no m�s passado (foto: Joseph Prezioso/AFP )
As duas primeiras d�cadas do s�culo 21 assistiram a uma verdadeira revolu��o no estudo das defici�ncias sofridas por parcela expressiva da popula��o mundial. Plenamente consolidados, os chamados “disability studies”, estudos da defici�ncia, transformaram uma palavra de sentido negativo, discriminat�ria, em algo que s� quer dizer o que significa de fato: a diferen�a. Pessoas com defici�ncias de vis�o, audi��o, falta de membros por acidentes, s�o s� isso. Diferentes. E precisam ser respeitadas como tal.

Nesse universo, o ramo dos “disabilities in music” vem desconstruindo velhos dogmas e meias-verdades da hist�ria da m�sica.

Em sentido amplo, hoje em dia ocorrem casos como o que envolveu o conhecido neurologista Oliver Sacks (1933-2015), autor de mais de uma dezena de livros interessant�ssimos. Um deles, “Tempo de despertar”, deu origem ao filme de 1990, estrelado por Robin Williams e Robert de Niro.

Ao visitar uma escola de surdos, Sacks n�o conseguiu aprender mais do que duas ou tr�s palavras na linguagem dos sinais. Um aluno perguntou-lhe, com naturalidade: “Por que voc� n�o se acha deficiente na linguagem dos sinais?”.

Em outro livro, Sacks fala do pintor que sofreu acidente e se tornou dalt�nico, aprendendo a beleza do preto, branco e cinza: “Os dalt�nicos constroem mundos com o que t�m. Eles s�o o centro de seu pr�prio mundo, e n�o se sentem deficientes. Nos termos deles, s�o normais.”

A percussionaista britânica Evelyn Glennie, que é surda desde os 8 anos, com a comenda que recebeu do príncipe Charles, em cerimônia no Palácio de Buckingham. Ela passou a ter o título de dama(foto: Steve Parsons/AFP - 16 de junho de 2017)
A percussionaista brit�nica Evelyn Glennie, que � surda desde os 8 anos, com a comenda que recebeu do pr�ncipe Charles, em cerim�nia no Pal�cio de Buckingham. Ela passou a ter o t�tulo de dama (foto: Steve Parsons/AFP - 16 de junho de 2017)

Essas reflex�es t�m tudo a ver com o cantor Tony Bennett. Aos 94 anos, ele sofre de Alzheimer desde 2016, mas s� agora o fato foi publicamente revelado. Numa reportagem, o jornalista John Colapinto o descreve em seu apartamento de frente para o Central Park, em Manhattan. Ele folheia impass�vel, sem mover um m�sculo na face, um livro em formato grande, tipo livro de mesa, com fotos de p�gina inteira mostrando momentos memor�veis de sua gloriosa carreira de mais de sete d�cadas. Bennett faz esfor�o, mas n�o se reconhece.

O estigma que cerca o Alzheimer corresponde ao da surdez em s�culos passados. O exemplo mais famoso � o de Beethoven. Em “Hearing Beethoven” (“Ouvindo Beethoven”), o music�logo norte-americano Robin Wallace parte da surdez de sua mulher, Barbara, para construir um livro diferente. Durante oito anos e meio, a conviv�ncia com ela lhe ensinou que entendemos errado a surdez do compositor alem�o.

“Muitas pessoas com defici�ncia se ressentem da suposi��o generalizada da sociedade de que deveriam querer ser curadas. Em termos musicais, isso sugere que n�o devemos nos perguntar como Beethoven superou a surdez ou, na verdade, como qualquer outro grande artista com defici�ncia consegue se desenvolver apesar dela”, diz Wallace. “Em vez disso, em nossas mentes, � medida que abordamos suas hist�rias, deve estar a quest�o do que eles t�m a oferecer de maneira exclusiva.”

Exclusividade que a percussionista escocesa Evelyn Glennie, surda desde os 8 anos, atribui ao corpo, que “funciona como um grande ouvido”. Beethoven chegou a morder o teclado do piano para sentir as vibra��es nos dentes, lembra.

Em seu livro, Wallace vai ao detalhe para mostrar que a surdez moldou a m�sica de Beethoven de maneiras centrais para seu estilo pessoal. E acrescenta: “Em termos de sua influ�ncia na m�sica posterior, o tra�o mais significativo � o uso de motivos curtos, altamente reconhec�veis e frequentemente repetidos”.

Uma escultura de Beethoven foi instalada no fim de 2019 nos jardins de sua casa, na cidade alemã de Bonn, entre os preparativos para a comemoração dos 250 anos de seu nascimento(foto: France Presse)
Uma escultura de Beethoven foi instalada no fim de 2019 nos jardins de sua casa, na cidade alem� de Bonn, entre os preparativos para a comemora��o dos 250 anos de seu nascimento (foto: France Presse)
De acordo com o music�logo, isso muda o modo como devemos entender as inova��es de Beethoven: “Os blocos de constru��o mel�dicos tendem a ser curtos e memor�veis. Quanto pior ficava sua audi��o, mais ele dependia da repeti��o frequente, quase obsessiva, desse material. � como se estivesse compondo levando em conta os desafios espec�ficos da perda auditiva. O resultado foi um estilo musical poderoso, que parece contar uma hist�ria de supera��o de adversidades”. Por�m, Wallace adverte: parece, mas n�o �.

A crise mais imediata que Beethoven enfrentou tinha a ver com isolamento social e depress�o. Algo cuja extens�o entendemos hoje perfeitamente, pois tamb�m vivemos isolados uns dos outros. O que o genial compositor usou como ant�doto? “Curou-se a si mesmo ampliando o alcance emocional e o dinamismo de sua m�sica. Nossa humanidade � alimentada pela diversidade, por encontrar pessoas com experi�ncias diferentes das nossas e por atribuir valor �queles que os outros frequentemente consideram do- entes ou incompetentes.”

Como Beethoven em seu isolamento, Tony Bennett mant�m rotina positiva: pratica gin�stica tr�s vezes por semana, faz dois shows-ensaio semanais com o pianista Lee Musiker, que pilota um imponente Bosendorfer. Como se fosse um show de verdade, com direito a set list das can��es � vista e 90 minutos de dura��o. E Bennett canta maravilhosamente. N�o esquece letras aqui ou acol�. Mas como, se a mem�ria costuma falhar nos portadores de Alzheimer?

“A linguagem musical prevalece sobre todas as outras. A mem�ria para ela sobrevive a todas as outras formas de mem�ria, e funciona quando tudo o mais parece ineficaz”, declarou Sacks em 2007.
Bennett liga o “modo performance” quando fica em posi��o de palco, revela Susan, mulher dele. Da� em diante, tudo acontece como se o Alzheimer n�o existisse. Ou seja, entender a diferen�a � comportamento-chave em rela��o �s defici�ncias dos outros.

A percussionista Evelyn Glennie colabora com a organiza��o Memory Bridge (www.memorybridge.org), que visa criar uma ponte para as pessoas com dem�ncia, para que elas saibam do seu valor, seus sentimentos, mesmo que estejam em um quadro cl�nico complicado. “Recebi as maiores li��es sobre ouvir quando encontrei pessoas com dem�ncia, � medida que notei uma diferen�a ao tocar. Ser paciente e presente s�o as chaves para nos conectar conosco e com os outros”, diz Glennie. 


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