
Agora, ela se debru�a sobre o fen�meno protagonizado por empresas como Google, Facebook, Amazon, Microsoft e Apple, que vem se desenrolando nos �ltimos 20 anos, para compreend�-lo e indicar caminhos para refre�-lo, no livro “A era do capitalismo de vigil�ncia” (Intr�nseca).
Quando o f�sico brit�nico Tim Berners-Lee desenvolveu a World Wide Web (www), em 1989, ele abriu caminho para a cria��o da internet como a conhecemos hoje, com o intuito de torn�-la, em suas palavras, "uma plataforma aberta que permitiria qualquer pessoa, em qualquer lugar, trocar informa��es, ter oportunidades de acesso e colaborar para al�m de barreiras geogr�ficas e culturais".
Zuboff explica em seu livro que, em 2000, o projeto Aware Home, desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia da Ge�rgia, antevia o que se convencionou chamar de "casa inteligente" e "internet das coisas", imaginando um "futuro digital capaz de empoderar os indiv�duos, a fim de levar uma vida mais eficaz" e com forte compromisso com a privacidade.
De que forma valores t�o nobres acabaram por se degenerar e transformar a internet em um espa�o de vigil�ncia, dissemina��o de not�cias falsas, propaga��o de teorias conspirat�rias, aliena��o e desconfian�a?
Para Zuboff, esse sonho de um mundo conectado com enfoque no bem-estar dos usu�rios dos produtos deu lugar a um novo modelo de sistema econ�mico, que usa justamente a produ��o de dados e informa��es para exercer poder e controle. � disso que se trata o capitalismo de vigil�ncia.
Nesse regime, os dados fornecidos espontaneamente pelos cidad�os alimentam mecanismos de predi��o que movimentam o que a autora chama de mercados de comportamentos futuros. O mais importante para Zuboff � que esse sistema n�o � inerente � tecnologia, o caminho que a inova��o percorreu nos �ltimos 20 anos foi subvertido conscientemente.
Pioneiro nessa pr�tica, o Google, segundo a autora, se aproveitou de fatores como o contexto econ�mico que favorecia a desregulamenta��o das atividades inspirado por pensadores neoliberais e a sede por seguran�a nacional galvanizada pelos ataques de 11 de Setembro, para conquistar terreno na zona cinzenta da vigil�ncia de civis.
O espa�o virtual se tornou t�o ub�quo e incontorn�vel nos �ltimos anos que pagar para ser controlado pelo capitalismo de vigil�ncia � um pacto faustiano, na vis�o da autora, pois, assim como no mito do Fausto, n�s entramos em um acordo irrecus�vel, embora o que precisemos pagar em troca destrua nossa vida como a conhecemos.
"A prova do nosso entorpecimento ps�quico � que h� apenas algumas d�cadas a sociedade americana denunciava as t�cnicas de modifica��o de comportamento como amea�as inaceit�veis � autonomia individual e � ordem democr�tica. Hoje, as mesmas pr�ticas encontram pouca resist�ncia, ou mesmo questionamento, quando s�o rotineira e difusamente implantadas na marcha rumo aos lucros da vigi�ncia", escreve ela.
Zuboff argumenta que todos os seres vivos precisam de um lar para voltar, mas que o mundo digital s� poder� ser um lar se lutarmos contra o capitalismo de vigil�ncia. Caso contr�rio, estaremos condenados a ser exilados nessa nova realidade.
“A era do capitalismo de vigil�ncia”
Shoshana Zoboff
Editora Intr�nseca (800 p�gs.)
R$ 99,90; R$ 69,90 (e-book)
Tr�s perguntas para...
Shoshana Zubof,
fil�sofa norte-americana
Parecemos estar falhando enquanto sociedade em restringir a ascens�o do capitalismo de vigil�ncia. O que n�s podemos fazer enquanto indiv�duos para nos resguardar?
Na verdade, n�s n�o come�amos a tentar restringir. As solu��es vir�o por meio do processo democr�tico com novos marcos legislativos e institui��es de fiscaliza��o. Nas �ltimas duas d�cadas, o capitalismo de vigil�ncia floresceu sem impedimentos, mas s� se fizermos tudo o que pudermos e ele continuar a crescer pelos pr�ximos 20 anos eu me preocuparia. N�s nem tentamos. Nos �ltimos 18 meses, houve um crescimento exponencial de propostas regulat�rias, desde 2019 temos visto esse movimento nos EUA, que est� muito atr�s da Europa nessa quest�o. Vejo como um gigantesco Titanic come�ando a desviar do iceberg, que no caso � um Zuckerberg. O que precisamos � que o mundo digital viva sob leis. O ciberespa�o � um mito inventado para deixar a democracia de fora. Sabemos que isso n�o existe. O ciberespa�o � metal, dinheiro, pessoas… O que eles fazem � complicado e abstrato, mas n�o � algo de outro mundo. � capitalismo. Eu me sinto otimista, acredito que temos a pr�xima d�cada para fazer isso funcionar. Enquanto indiv�duos, j� passamos do ponto em que possamos fazer alguma coisa. � como o aquecimento global. O que podemos fazer? Podemos virar vegetarianos, usar l�mpadas mais econ�micas, mas sabemos que isso n�o far� uma diferen�a real na trajet�ria das mudan�as clim�ticas. A �nica coisa que funcionar�, tanto para o aquecimento global quanto para o capitalismo de vigil�ncia, � a a��o coletiva.
De que modo a pandemia afetou o capitalismo de vigil�ncia?
� uma via de m�o dupla. Por um lado, ela tornou essas empresas mais ricas e poderosas, aumentou a demanda por atividade virtual e, com isso, a extra��o massiva de dados pessoais. Mas h� uma justaposi��o esquisita. Em abril de 2020, 1,5 bilh�o de crian�as n�o podiam ir � escola, o que multiplicou significativamente a presen�a do Google no espa�o educacional. No mesmo m�s, um procurador do Novo M�xico processou o Google Classroom e toda a sua su�te de ferramentas educacionais por extra��o ilegal de dados estudantis. Cada vez mais pessoas dependem desses servi�os virtuais, mas isso exp�s mais pessoas a algo de que elas n�o gostam. Pesquisas mostram que a confian�a do p�blico nas empresas de Mark Zuckerberg s� n�o � mais baixa do que a confian�a na ind�stria do tabaco. O capitalismo de vigil�ncia � baseado na extra��o de dados, que requer engajamento. Para tanto, o conte�do mais t�xico � amplificado, porque ele magnetiza mais engajamento. Ent�o a desinforma��o � uma consequ�ncia desse sistema. Ela � produto de sua opera��o.
Seu livro explica as raz�es pelas quais essas empresas se recusam a remover at� os conte�dos mais ofensivos de suas plataformas. Mas, recentemente, elas come�aram a moderar alguns conte�dos e at� baniram o ex-presidente americano Donald Trump. O que essa mudan�a de comportamento indica?
Absolutamente nada. Eu n�o concordo que seja uma mudan�a de comportamento. De toda a massa de desinforma��o, apenas uma pequena fra��o foi checada. N�o dou qualquer cr�dito a isso. O que essas empresas fizeram foi o m�nimo para poder dizer que est�o fazendo algo. Trump foi banido dessas plataformas, mas n�o at� 6 de janeiro. O que aconteceu nesse dia? � claro, a insurrei��o contra o Capit�lio, mas tamb�m a confirma��o final de que as cadeiras de senadores da Georgia iriam para os candidatos democratas, ou seja, de que o Senado n�o seria mais controlado pelos republicanos. Com essa informa��o pol�tica em m�os, Mark Zuckerberg decidiu suspender o perfil de Trump. O que aconteceria se ele decidisse fazer isso h� quatro anos, quando Trump j� estava mentindo e espalhando desinforma��o? Ou h� um ano? Quantas v�timas de COVID-19 estariam vivas?