
Foi de tal modo monumental a produ��o do poeta e dramaturgo ingl�s em pe�as como “Hamlet”, “Rei Lear” e “Macbeth”, que um subg�nero passou a ser usado e consagrado para classificar enredos e dramas: para al�m das artes e da literatura, momentos excruciantes da vida humana tamb�m costumam ser definidos como "trag�dia shakespeariana".
N�o h� d�vidas de que vivemos, especialmente neste Brasil atual, com quase 400 mil mortos por COVID-19, um desses momentos, enredados em tramas macabras, repletas de mortes, vingan�a, som e f�ria. A reportagem perguntou a tr�s dos maiores estudiosos de Shakespeare do pa�s quais s�o as semelhan�as, os pontos de contato entre as "trag�dias shakespearianas" e nossas vidas, nestes intensos tempos de pandemia? Mais ainda: quais caminhos as obras do Bardo podem nos indicar para sobrevivermos sem sucumbir � loucura e � descren�a?
As professoras Fernanda Medeiros e Liana de Camargo Le�o, organizadoras do rec�m-lan�ado livro “O que voc� precisa saber sobre Shakespeare antes que o mundo acabe” (Nova Fronteira), com aux�lio do tradutor Lawrence Flores Pereira, autor de um dos textos da obra, toparam o desafio.
Em linhas gerais, eles enxergam uma mistura de “Ricardo II”, “Ricardo III”, “Hamlet”, “Rei Lear” e “Macbeth” na trag�dia shakespeariana do Brasil sob Jair Bolsonaro, ainda que essas duas primeiras pe�as sejam tamb�m classificadas como "hist�ricas".
A seguir, eles explicam o que Shakespeare pode dizer sobre o pa�s, "antes que o mundo acabe". Liana aproveita e sintetiza o esp�rito do livro, quando responde do que necessitamos para continuar firmes, atravessando esta grande tempestade: "Hist�rias, mais do que nunca, precisamos de hist�rias".
Sobre o confinamento
"Deus, eu poderia viver enclausurado dentro de uma noz e me consideraria um rei do espa�o infinito, n�o fosse pelos meus sonhos ruins" (“Hamlet”, ato 2, cena 2).
"A met�fora da casca de noz � �tima para o confinamento. A casca de noz �, neste momento, medida necess�ria para nos proteger, mas os maus sonhos t�m sido acentuados por um governo que fechou os olhos para a realidade da pandemia. Vivemos um pesadelo coletivo, maximizado pelo negacionismo e pela falta de atua��o de quem tem o mando", diz Liana.
"A impress�o de sufocamento � um aspecto do sentimento de impot�ncia, pessoal e pol�tica, que Hamlet sente e que tende a afetar toda a sua vis�o de mundo. Sucumbir � melancolia � compreens�vel nos piores momentos da hist�ria e, �s vezes, at� mesmo o otimismo euf�rico pode insinuar algo que � da ordem da melancolia. Mas n�o estamos fadados, quero acreditar, a ter sonhos ruins", diz Flores Pereira.
Sobre a pandemia
"E pior posso ficar. O pior n�o � o pior / Se ainda podemos dizer 'eis o pior'." (“Rei Lear”, ato 4, cena 1).
"Se n�o haver� o fim do mundo ainda, o Brasil vai ladeira abaixo e produz a experi�ncia de apocalipse a cada dia", diz Fernanda. "A peste bub�nica fechou os teatros na �poca de Shakespeare, mas n�o as igrejas. Por qu�? Porque n�o se acreditava que em lugares santos se poderia pegar a peste. Enfrentamos a mesma discuss�o no Brasil e, infelizmente, parece que alguns partilham da mentalidade medieval", afirma Liana.
"� imposs�vel tamb�m deixar de pensar que ‘Rei Lear’ foi composto durante a peste: � uma pe�a profundamente dominada pelo imagin�rio apocal�ptico que sempre esteve atrelado ao horror da morte pelas pestes tradicionalmente", diz Flores Pereira.
Sobre a mobiliza��o da sociedade
"A loucura nos grandes exige vigil�ncia" (“Hamlet”, ato 3, cena 1).
"Em uma �poca de absolutismo e, quando o direito dos monarcas era considerado como uma emana��o do divino, ainda assim Shakespeare conseguiu propor reflex�es e criticar governantes. E sem ir preso, como aconteceu com dramaturgos contempor�neos seus, pois havia censura. Temos que aprender com Shakespeare a avaliar os governantes, sem partidarismos", diz Liana.
"A Primeira Modernidade n�o tinha os mecanismos pol�ticos que temos hoje para impedir tiranos ou reis incompetentes ou criminosos, nem sempre suficientemente eficazes, mas diversos te�ricos defendiam at� mesmo a deposi��o de reis legais que incorressem na quebra da legalidade. Por outro lado, Shakespeare deixa claro que o movimento de derrubada de um tirano pode chegar tarde demais, somente depois de muitos crimes perpetrados, em particular em ‘Ricardo III’ e ‘Macbeth’", afirma Flores Pereira.
Sobre a morte e o luto
"A morte que ele teve, o funeral furtivo / Sem trof�u, espada ou bras�o cobrindo os ossos / sem ritos nobres, pompa, sem cerimonial" (“Hamlet”, ato 4, cena 5).
"O luto � a invas�o da dor diante da perda real de algu�m que nos habitava, ou que poderia nos habitar, e que, de algum modo, teremos de fazer descansar no futuro", afirma Flores Pereira.
"Que nosso orgulho n�o deixe que esque�amos que o p� � o destino inevit�vel de todos n�s", diz Liana.
Sobre a pol�tica e o poder
"Farei meu c�u sonhar com a coroa / E viverei um inferno nesta terra / At� a cabe�a deste tronco torto / Estar empalada em coroa de ouro" (“Ricardo III”, ato 2, cena 3).
"N�o vejo nada id�ntico na obra de Shakespeare ao que estamos vivendo. Mas h� na sua obra a farta indiferen�a � vida, os desejos tir�nicos, o histrionismo do poder, a duplicidade, o ocultismo declarado, assim como os jogos acomodativos do poder, os apoios de conveni�ncia, o interesse que leva algu�m a se aliar ao pior, sem notar que ele pr�prio poder� ser a pr�xima v�tima da tirania", diz Flores Pereira.
"Ricardo II era um rei leg�timo, o que hoje corresponderia a um governante eleito democraticamente. Mas seu governo foi descolado da realidade e ele acabou deposto por inefici�ncia e tirania", afirma Liana.
"Infelizmente, Shakespeare n�o nos explica integralmente. Estamos em um momento mix: no plano governamental, reina a tirania, que Shakespeare conhecia bem, e a� temos o estado t�xico de Macbeth, a falta de escr�pulos de Ricardo III e a psicopatia de Iago", diz Fernanda.
Sobre a solidariedade e a esperan�a
"Ah, eu cuidei bem pouco de tudo isso. Cuida-te, Pompa, exp�e-te ao que sentem os mendigos para doar a eles o teu sup�rfluo, e o C�u te ver mais justa" (“Rei Lear”, ato 3, cena 4).
"Em uma situa��o de pandemia, ficamos � merc� de atitudes que protejam a coletividade. Estamos t�o desabrigados no Brasil quanto os s�ditos mais humildes do rei Lear. Neste momento, o 'cada um por si' n�o funciona", diz Liana de Camargo Le�o.
"O que nos resta sen�o insistir no que a gente acredita, n�o �? E estamos torcendo para que esse dinheiro das vendas, que vamos doar - todos abrimos m�o de direito autoral (do livro 'O que Voc� Precisa...') -, contribua de alguma forma para os que est�o sofrendo mais com a pandemia e a desigualdade", afirma Fernanda Medeiros. (Ag�ncia Estado)
Livro � introdu��o
� obra do Bardo
Al�m de propiciar conhecimento adicional e garantir divers�o aos f�s do Bardo, a colet�nea “O que voc� precisa saber sobre Shakespeare antes que o mundo acabe” (Nova Fronteira) � tamb�m uma excelente porta aberta aos iniciantes que buscam adentrar o universo do ingl�s William Shakespeare (1564-1616). O segredo? Mistura de vozes, de estilos e de vis�es de mundo.
"N�o sab�amos o que seria esse livro quando lan�amos a chamada para as colabora��es, num estilo mensagem na garrafa. N�o sab�amos quem aderiria e nem brifamos os autores e as autoras. Apenas pedimos que respondessem � nossa pergunta em at� 10 p�ginas", diz Fernanda Medeiros, professora da UERJ e uma das coordenadoras da obra.
"Certamente, alguma voz dessa orquestra shakespeariana em que dialogam atores, diretores e professores falar� � sua mente ou ao seu cora��o", afirma Liana de Camargo Le�o, professora da UFPR e parceira de Fernanda na organiza��o (as duas tamb�m contribuem com dois textos).
Ainda que as idealizadoras do projeto e respons�veis pela empreitada sejam respeitadas pesquisadoras, o livro passa longe da "linguagem acad�mica", muitas vezes inacess�vel e insossa para o leitor m�dio e sem especializa��o. Os participantes cederam os direitos autorais para a��es de combate � COVID-19.

“O que voc� precisa saber sobre Shakespeare antes que o mundo acabe”
• Liana Medeiros e Fernanda de Camargo Le�o (organiza��o)
• Nova Fronteira (560 p�gs.)
• R$ 79,90