
Jo�o Moraleida*
Especial para o Estado de Minas
Hoje, 16 de junho, comemora-se um dos dias mais longos da hist�ria da literatura. Em algumas partes do mundo, grupos saem para beber, outros para caminhar e outros para fazer ambas as coisas. No entanto, talvez neste ano seja diferente, como foi em 2020, e na internet surjam lives e conversas a respeito do Bloomsday, como � conhecido o dia em homenagem a Leopold Bloom, personagem de “Ulisses”, romance publicado em 1922 pelo irland�s James Joyce (1882-1941).
A verdade � que Joyce demorou sete anos na escrita de “Ulisses”, sem contar os precedentes de sua elabora��o: anota��es, rascunhos e exerc�cios de escrita. Hoje, os conhecemos gra�as � publica��o de suas obras (quase) completas e no m�nimo duas biografias indispens�veis: de Richard Ellmann, mais longa e, digamos, completa sobre vida e obra, e a da romancista irlandesa Edna O’Brien. Ambas f�ceis de ser encontradas em sebos ou em formatos virtuais.
Se por um lado biografias podem nos ajudar a compreender mais e melhor obras da literatura, principalmente de autores como Joyce, cuja vida e experi�ncia foram materiais fundamentais de sua produ��o, as biografias podem tamb�m nos conduzir num mar menos revolto. Sem momentos de perigo ou mesmo de mergulhos necess�rios, e at� violentos, certas leituras perdem seu encanto.
AS AUTOFIC��ES
Fato � que a febre das biografias, e toda sua opera��o de redu��o de uma obra � vida e a��es ordin�rias de um escritor, parece, hoje em dia, caminhar lado a lado com outra febre, sem sabermos por quanto tempo durar�: a chamada autofic��o.
Mas � de outro lado da moeda que desejo falar. N�s a conhecemos: a ideia de que enquanto escrevo, torno-me um outro para al�m de mim, ou, se quisermos, para al�m do eu. � conhecida a frase de Rimbaud: eu � um outro. Talvez sua express�o mais exemplar seja a do julgamento de Flaubert: Madame Bovary c’est moi. E era? Sua obra est� viva nas prateleiras das livrarias e bibliotecas para os que desejarem confirmar tal hip�tese.
Podemos ir tamb�m mais longe. Ulisses (ainda n�o o de Joyce), o astucioso Ulisses de Homero, n�o era ele quem, sem ajuda das musas, cantou suas aventuras, como na conhecida estada com os fe�cios? Sem ajuda das musas e, portanto, sem que se reconhecesse de imediato um valor da verdade em tudo o que dizia. O mesmo Ulisses que mais tarde conseguir�, j� em �taca, enganar com uma hist�ria n�o ver�dica, e ainda assim semelhante � realidade, seu pr�prio filho e Pen�lope, sua esposa, antes que lhes revele sua real identidade. Ulisses torna-se outro, assim como, de certo modo, o poeta que canta tamb�m se torna, por um instante, Ulisses. � que entre a verdade e a mentira h� um longo deserto chamado fic��o.
E n�o � � toa que os poetas foram expulsos da Rep�blica plat�nica, acusados de confundir e inverter os lugares estabelecidos para os cidad�os. � palavra cabia uma pot�ncia gigante de a��o e, para a Rep�blica, nesse caso, de dana��o.
Sobre a febre da autofic��o, cabe perguntar se ela tem conseguido operar uma certa transcend�ncia do eu, do tornar-se outro, caro � literatura. Tudo se passa como se houvesse uma grande experi�ncia a ser narrada e, no ato seguinte, fica a sensa��o de que n�o h�, de fato, experi�ncia alguma.
JOYCE
Em Joyce, h� algo para al�m dessa superf�cie que navega a fic��o autorreferente. H� um aprofundamento entre a verdade da vida cotidiana, suas experi�ncias, e a verdade da fic��o. Com suas experi�ncias pessoais, o autor conseguiu alcan�ar outro patamar: a cria��o.
Ao final de “O retrato do artista quando jovem”, romance que antecede “Ulisses”, acompanhamos Stephen Dedalus – que aparecer� na obra seguinte – abandonar sua casa e dizer n�o � religiosidade de sua m�e. Ele deseja outra vida e sabe que para isso dever� negar aquilo que lhe � mais familiar e pr�ximo.
Dedalus, tamb�m marcado, como Joyce, pelo catolicismo, nega-o. E o nega depois de uma das mais belas passagens que iria influenciar o t�tulo dado por Clarice Lispector ao seu primeiro livro (sugerido por L�cio Cardoso): “Perto do cora��o selvagem”. Nela, Dedalus est� numa praia, cujo horizonte de chumbo parece pesar sobre seu corpo e mente. Angustiado e dividido, o personagem sente pulsar em si algo que o leve al�m daquilo que sabe e conhece. Ele s� conhece um certo amor plat�nico. Sua pulsa��o por uma nova vida ainda n�o encontrou aquilo que em “Ulisses” dois personagens (Leopold e Molly Bloom) j� ter�o encontrado: o sexo e suas possibilidades in�meras do erotismo e de abertura para a vida.
“ULISSES”
O livro se passa em 16 de junho de 1904. �s 8h, por meio de um in�cio simples, o romance abre com um garoto no alto de uma torre, segurando uma vasilha com espuma de barbear. Ele entoa, em latim, uma louva��o a Deus. Introibo ad altare Dei. Buck Mulligan, esse garoto sarc�stico e pedante, ir� aparecer durante o romance. Garoto que irritar� Dedalus ao longo de seu dia.
Um in�cio ainda sem as brincadeiras joyceanas com a linguagem, n�o fosse a refer�ncia quase expl�cita a outra grande obra que se inicia numa torre. S�culos antes, em Elsinore, inicia-se “Hamlet”. Da torre seremos conduzidos para a suposta apari��o do fantasma do pai de Hamlet que assombrar� sua consci�ncia. Fato que divide o pr�ncipe e resulta nos seus longos mon�logos: vingar ou n�o o pai que lhe revela o plano que foi submetido ao ser assassinado.
Em “Ulisses”, logo ap�s a apari��o de Buck Mullingan, surge Dedalus e, ao contr�rio das refer�ncias a um fantasma paterno, como em “Hamlet”, a refer�ncia � a m�e, aqui j� falecida. Dedalus faz tamb�m as vezes de Tel�maco, filho de Ulisses, da “Odisseia” de Homero, que aguarda o retorno do pai ap�s a guerra de Troia. Tel�maco vai em busca de not�cias de Ulisses, enquanto Dedalus evita pensar em sua m�e, ainda que n�o controle seus pensamentos. Seu pai aparecer� mais adiante no romance e, para n�s, leitores, � algu�m cuja rela��o com o filho se apresenta distante e estranha.
Isso tudo pareceria fora de lugar se nos esquec�ssemos de que Joyce sobrep�s ao seu projeto de escrita um dos textos fundantes da literatura ocidental. Os epis�dios que lemos em “Ulisses” foram inspirados e divididos por Joyce com base nos 24 cantos da “Odisseia” de Homero. Temos acesso ao quadro feito por Joyce, cuja primeira parte se intitula “Telemaquia”, em refer�ncia ao “Canto 1” de Homero.
Refer�ncias � “Odisseia” n�o s�o exatamente c�pias, mas base importante para a cria��o de Joyce. Operam, muitas vezes, pelas invers�es. Se Tel�maco est� � procura de seu pai, Dedalus est� angustiado com a morte de sua m�e e com a culpa que o assola por n�o ter rezado pouco antes que ela falecesse. Na primeira parte de “Ulisses”, acompanhamos Dedalus, das 8h �s 11h, em suas andan�as rumo � escola onde leciona. A todo tempo as lembran�as de sua m�e se misturam �s obriga��es cotidianas, embebidas com seus pensamentos a respeito da filosofia e com a raiva que sente de Buck Mulligan.
Mas � no segundo cap�tulo de “Ulisses” que a Odisseia joyceana tem, de fato, in�cio. Na segunda parte do livro, estamos de volta �s 8h. Somos apresentados a um dos personagens mais fascinantes: Leopold Bloom, o Odisseu de Joyce. Sua primeira atividade ap�s acordar � fazer caf� para a esposa. Bloom conversa com sua gata, faz alus�es � suposta trai��o de sua companheira, Molly. Sai para comprar rins de porco para o caf�. Retorna para casa, vai ao banheiro defecar e deixa que os rins queimem no fog�o.
Dessa forma, somos apresentados ao her�i moderno de Joyce. Em atitudes extravagantes e demasiado humanas. Ele defeca, pensa bobagens, l� p�ginas de jornal e se arruma para o enterro de um amigo. Ulisses, de Homero, est� preso na ilha de Calipso. Bloom � um her�i zombeteiro e se prepara para sair de casa. Mas guarda algo intr�nseco da personalidade de Odisseu: sua ast�cia e suas formas originais de pensamento. Enquanto Dedalus se angustia em sua consci�ncia, Bloom se solta � corrente da vida da metr�pole. Por entre ruas e escrit�rios, o vendedor de an�ncios percorre Dublin, esquivando-se e aproximando das situa��es mais diversas.
O her�i, aqui, � um homem comum. No modernismo joyceano, os mitos e seus personagens adentraram no mundo dos mortais. E os deuses incorporaram, de vez, esse mundo lan�ando seus toques m�gicos nos momentos de epifania. Tais epifanias s�o momentos comuns, como um enterro ou uma mulher coxa na praia. Elas garantem certa transcend�ncia � obra. Momentos grandiloquentes, encerrados por um anticl�max. Tudo se ilumina e vibra. Os objetos, as ruas e o cora��o dos personagens se iluminam com uma for�a, at� que desabe o destino e a epifania tenha fim.
ODISSEIA DE JOYCE
Dedalus e Bloom s�o alter egos do pr�prio Joyce. O primeiro, de um Joyce ainda jovem, imerso nos debates sobre a dial�tica, a filosofia aristot�lica e a obra de Shakespeare. Em Bloom, � a vida ordin�ria que pulsa, principalmente naquilo que a conecta ao sexo, embora mais comedido que Molly Bloom, no famoso mon�logo que encerra o romance.
Numa obra que pretende se passar em 24 horas, surpreende como o tempo se dilata para em seguida se retrair, numa par�dia � pr�pria vida e realidade. E, ao final da primeira parte, � o pr�prio Dedalus quem arremata com uma frase genial e, ao mesmo tempo, �bvia: Sim, o crep�sculo vai se achar em mim, sem mim. Todos os dias constroem seus fins. Por falar nisso, o pr�ximo � quando? Condenados ao tempo, assim est�o os personagens de Joyce. E n�o somente ao tempo da narrativa, mas a um tempo particular, onde suas vidas cotidianas ir�o conduzi-los a certa verdade de si mesmos. E as verdades se complementam, porque � no encontro de Dedalus com Bloom que se d� um encontro de personalidades t�o distantes e, ainda assim, pr�ximas.
Por bares e esquinas, ambos os personagens se esgueiram. Mas � Bloom, com habilidade de um fl�neur, quem se esquiva dos perigos que qualquer cidade pode apresentar. Ou melhor, qualquer cidade em que existam pessoas, bares e esquinas. Carregadores, motoristas, b�bados, prostitutas, jornalistas, entregadores. � vasto o n�mero de figuras que surgem e desaparecem ao longo de “Ulisses”, parodiando a metr�pole nascente que encantou tantos escritores que o antecederam.
� aqui que “Ulisses” se diferencia de diversas outras obras modernistas. Obras como “O som e a f�ria”, de William Faulkner, onde o tempo conta tamb�m a hist�ria e se resvala para uma trag�dia familiar, remontando aos horrores da escravid�o americana. Quentin Compson, personagem de Faulkner, ouve o toque de seu rel�gio e s� pode destru�-lo batendo-o na quina de um m�vel de seu quarto. De volta ao tempo, � que ele nos diz. E o tempo, em Faulkner, � o tempo da dana��o, suga seus personagens para o passado e desfechos tr�gicos.
Ao contr�rio de seus contempor�neos, em “Ulisses” o tempo corre e todos os dias constroem seus fins de uma forma bem-humorada e potente. Do c�u � Terra, do mais sagrado poss�vel: a torre e os debates pedantes de Dedalus e seus amigos, at� o desfecho mais terreno poss�vel – o mon�logo de Molly Bloom, respons�vel pela censura por cr�ticos liter�rios ao livro de Joyce, devido � precis�o de detalhes ao narrar suas experi�ncias sexuais.
Joyce conseguiu partir de suas diversas experi�ncias para criar algo al�m delas pr�prias. Em “Ulisses”, esse al�m seria sua metamorfose em dois personagens que, sendo ele mesmo, ultrapassam-no: Dedalus e Leopold Bloom. Nada como isso para questionar se as narrativas autorreferentes n�o est�o detr�s da linha de largada. Ao se apresentarem como um novo modelo de fic��o, parecem j� nascer embotadas. A f�rmula do eu sou eu s� poder� funcionar num mundo que abdicou dos poetas e da cria��o e, conformista com essa condi��o, abandonou tamb�m a capacidade da literatura de afirmar outros que n�o o eu mesmo.
Na literatura, somos for�ados a ver com os olhos dos outros, num jogo de alteridade que beira � magia. Em rela��o a isso, Joyce somente conseguiu criar seu her�i comum e ordin�rio porque rejeitou certa concep��o de realidade, para se afirmar em sua cria��o. Assim faz Dedalus ao negar a vida para se afirmar noutra. E assim faz Joyce, atrav�s de Molly Bloom, que, depois de negar, poder� dizer seu famoso sim, que encerra “Ulisses”. Sim a esse eu que � tantos outros, sendo, por um dia, outros tantos e retornando a n�s mesmos em seguida. Mas nunca voltamos a n�s como quando partimos, e � esse o jogo humano da fic��o.
BLOOMSDAY ON-LINE EM BH
Em Belo Horizonte, o Grupo Oficcina Multim�dia (GOM) comemora o Bloomsday nesta quarta-feira (16/06) com live �s 19h, no canal da companhia de teatro no YouTube. Al�m de representar textos de James Joyce, haver� bate-papo sobre o livro “Dublinenses” (1914). A atriz Alana Aquino escolheu o conto “Uma m�e” para compartilhar o seu Bloomsday com o p�blico.
* Jo�o Moraleida � livreiro e ge�grafo, graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais