
Enquanto navegamos pelas redes sociais, estamos trabalhando – para os outros. E de gra�a, permitindo que nossas informa��es sejam reunidas, catalogadas e transformadas em bases de dados. N�o h� mais um imagin�rio com o qual as companhias dialogam para vender um produto. O capital passou a criar o pr�prio imagin�rio em que estamos mergulhados.
� esse um dos pontos de partida para o novo livro de Eug�nio Bucci, jornalista e professor da Escola de Comunica��es e Artes da Universidade de S�o Paulo. “A superind�stria do imagin�rio: como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que � vis�vel” inaugura a Cole��o Ensaios da Editora Aut�ntica. E traz reflex�es e conceitos nos quais Bucci vem trabalhando h� mais de duas d�cadas.
"Nunca os seres humanos foram t�o abusivamente explorados como agora", diz o autor na entrevista a seguir, na qual fala sobre as ideias do livro e o modo como essa nova configura��o na rela��o com o capital influencia diferentes campos, da arte � produ��o jornal�stica.
"Tragada pela economia das sensa��es e das emo��es, a pol�tica se degrada em fanatismo. O que � o bolsonarismo, sen�o uma legi�o de aproveitadores que se apropriaram de ferramentas da era digital para promover a mentira, o �dio e o culto da viol�ncia? Entre as consequ�ncias dessa ind�stria n�s podemos listar, tamb�m, o adoecimento da democracia"
O livro traz reflex�es j� presentes em seu doutorado. Em que medida o passar do tempo contribuiu com as ideias apresentadas? O que ainda n�o havia que hoje se tornou presente e foi fundamental para o livro?
Mais do que reflex�es, h� conceitos nesse livro que eu formulei h� mais de 20 anos. O entendimento do que vem a ser o valor de gozo � um deles. A express�o foi cunhada pelo psicanalista franc�s Jaques Lacan num curso que ele deu em 1967, mas nunca foi desenvolvida por ele ou por seus seguidores na forma de uma categoria comunicacional e econ�mica. E, no meu doutorado, h� 20 anos, eu proponho um modelo te�rico para isso. Agora, no meu novo livro, essa constru��o ficou mais aprofundada e mais fundamentada. Outros conceitos cruciais, por�m, eu s� pude enxergar e elaborar mais tarde, como o de superind�stria do imagin�rio. Quanto ao que n�o existia na �poca, eu posso lembrar aqui as plataformas sociais e esses conglomerados monopolistas globais, como Facebook e Google. O advento desses gigantes da era digital s� confirmou os postulados da minha tese.
O senhor mostra como estamos expostos aos algoritmos em um jogo desigual, pois sabemos pouco sobre eles. � poss�vel igualar as chances nesse jogo?
Por enquanto, acho dif�cil e improv�vel igualarmos esse jogo, que se tornou uma rela��o assim�trica num grau absurdo. Os algoritmos sabem tudo sobre a intimidade dos frequentadores da internet e esses frequentadores nada sabem sobre os algoritmos. Perto disso, o “1984” de George Orwell � uma f�bula infantil. A explora��o econ�mica que esses conglomerados realizam � mais absurda ainda. Pensemos nas plataformas sociais. O modelo de explora��o chega �s raias da desumanidade. Quem s�o os digitadores, os fot�grafos, os editores, os locutores, os atores e os modelos de tudo o que aparece nas plataformas? Ora, os "usu�rios", como aprendemos a cham�-los. Um Facebook da vida n�o precisa contratar ningu�m para "postar conte�dos", no linguajar deles, pois os tais "usu�rios" fazem isso de gra�a. � como se estivessem se divertindo, aproveitando as vantagens de um entretenimento que lhes � dado de gra�a. Sejamos diretos: quem entra de gra�a a� n�o s�o as funcionalidades das plataformas, mas o trabalho do tal "usu�rio". Al�m do seu trabalho e do seu olhar, que vale dinheiro, e muito, o pobre e inocente "usu�rio" entrega todos os seus dados, sua biografia, seus sonhos mais pueris para o algoritmo. Depois, no fim da linha, quem vai ser vendido � o pr�prio usu�rio, com seus dados, seu olhar e o circuito secreto de seu desejo inconsciente. Nunca os seres humanos foram t�o abusivamente explorados como agora.
Existe alguma resist�ncia a ser imaginada?
Teremos de construir uma forma de resist�ncia, mas ela est� muito distante. Ela s� poder� vir da regula��o democr�tica que seja capaz de, em primeiro lugar, quebrar os monop�lios e, em segundo lugar, impedir a apropria��o desleal, pelos algoritmos, dos dados e da configura��o do nosso desejo. O que essas empresas fazem � mercadejar com o que h� de mais �ntimo e mais pessoal. Isso � intoler�vel se queremos viver numa sociedade civilizada. � verdade que a tecnologia nos trouxe e nos traz coisas maravilhosas, mas a tecnologia aprisionada pela gan�ncia do capital rebaixa a dignidade humana a um patamar selvagem, que n�o podemos aceitar. Uma rebeli�o digital � urgentemente necess�ria.
Em um contexto no qual o sujeito tem sua pr�pria vontade trabalhando a favor do capital, � poss�vel ainda falar de individualidade?
Sim, a individualidade existe, assim como existem as subjetividades de cada pessoa. Mas, n�o nos esque�amos, h� um processo caprichoso e atroz de coloniza��o dos nossos aparatos ps�quicos individuais. Os artif�cios da explora��o adotados pela superind�stria s�o mais ou menos como um v�rus que se insinua por dentro do corpo e se aloja no interior das c�lulas de sua v�tima para subjugar o organismo. Os bits da superind�stria penetram nas subjetividades, de onde extraem informa��es, transformam o desejo numa mercadoria barateada e escravizam as pessoas. H� estudos provando que essas plataformas se valem de mecanismos viciantes para capturar e enclausurar o tal "usu�rio".
Quais as consequ�ncias imediatas para o ser humano desse gozo obrigat�rio imposto pelo capital?
Uma delas � a perda de contato com a raz�o, com os fatos e com a pol�tica orientada para o bem comum. Tragada pela economia das sensa��es e das emo��es, a pol�tica se degrada em fanatismo. O que � o bolsonarismo, sen�o uma legi�o de aproveitadores que se apropriaram de ferramentas da era digital para promover a mentira, o �dio e o culto da viol�ncia? Entre as consequ�ncias dessa ind�stria n�s podemos listar, tamb�m, o adoecimento da democracia.
A superind�stria do imagin�rio traz mudan�as para a organiza��o do espa�o p�blico, interferindo em no��es de tempo, de espa�o, e nas formas de comunica��o. Em que medida a esfera p�blica compreende essas mudan�as e se adapta a isso?
Veja que coisa perturbadora. Nossa esfera p�blica foi moldada pela media��o dos jornais impressos, que chamo de inst�ncia da palavra impressa. Esse padr�o comunicacional predominou desde fins do s�culo 18 at� a primeira metade do s�culo 20 e imprimiu o seu fen�tipo ao Estado moderno. Hoje, por�m, a sociedade pulsa em outro padr�o, a inst�ncia da imagem ao vivo, da qual a internet � uma extens�o e um aprofundamento vertiginoso. Os dois padr�es entram em embates o tempo todo. As mobiliza��es de 2013 no Brasil foram uma evid�ncia disso: as redes sociais se batiam contra a burocracia estatal, que n�o tinha como assimilar aquele imenso volume de demandas, que acabaram ficando sem respostas.
A passagem da inst�ncia da palavra impressa para a inst�ncia da imagem ao vivo tamb�m tem influ�ncias na atividade jornal�stica. Como, no entanto, pensar na possibilidade de transforma��o do jornalismo em um contexto que favorece as fake news?
O jornalismo est� em crise escancarada, n�o apenas porque perdeu o p� das tecnologias, mas principalmente porque a pol�tica passou a desprezar a verdade dos fatos, que � o centro de gravidade da fun��o jornal�stica. Se um presidente da Rep�blica d� uma banana para os fatos, todos os dias, o que o jornalismo pode fazer? Pode insistir na apura��o do que se passa, como temos feito, mas a situa��o � dif�cil. O ambiente digital, que foi sequestrado pela voracidade de um capitalismo sem princ�pios, tem sido hostil para os jornalistas, para o di�logo racional e para a moralidade p�blica.
A inst�ncia da imagem ao vivo "� o portal por onde a totalidade do agora abra�a a totalidade do espa�o". Em que medida o modo como se organiza esse agora, com suas novas especificidades, pode levar a uma mudan�a de percep��o a respeito do passado ou ent�o da possibilidade de se imaginar um futuro?
Tenho a impress�o de que o ger�ndio � a forma verbal por excel�ncia da nossa era. N�o � por acaso que essa mania de falar tudo no ger�ndio, pr�pria do telemarketing americanizado, teve alastramento t�o penetrante. A superind�stria do imagin�rio existe no ger�ndio, numa bolha temporal em que as coisas seguem num acontecendo rumorejante, sem que seu in�cio e seu fim se mostrem com clareza. O curso da hist�ria se dissolve nesse ger�ndio totalit�rio, em que Elvis Presley, do qual se diz que n�o morreu, Buda, Neymar, Anitta, a rainha Elizabeth II, o papa Francisco e os ministros do Supremo Tribunal Federal parecem ser celebridades equivalentes, an�logas, elas todas fung�veis, elas todas igualmente vazias. Que futuro a gente pode imaginar? A prop�sito, o verbo imaginar ficou meio invi�vel dentro do imagin�rio superindustrial. (Ag�ncia Estado)

“A SUPERIND�STRIA DO IMAGIN�RIO”
.Eug�nio Bucci
.Editora: Aut�ntica (448 p�gs.)
.R$ 74,90