
Mario Prata nasceu h� 75 anos, em Uberaba, no Tri�ngulo mineiro. Foi criado em Lins, no Centro-Oeste de S�o Paulo. Ri quando � chamado de falso mineiro pela rep�rter. “Ascend�ncia � o que importa. Minha m�e e pai eram mineiros, todas as f�rias at� os 20 anos foram em Uberaba, onde estavam meus primos. Me considero mais paulista, mas essa coisa de contador de hist�rias vem dos meus tios, av�s.”
Foram dois mineiros, como ele “desgarrados”, que, de certa forma, deram norte � sua carreira. Corria o ano de 1970, e Prata escreveu seu primeiro espet�culo teatral. “O cord�o umbilical” fez sucesso nos palcos paulistas. Ent�o cr�tico de “O Estado de S�o Paulo”, o belo-horizontino S�bato Magaldi o chamou para uma entrevista. Comentou que era uma pe�a dentro de uma pe�a, algo que Moli�re tinha feito. Com a petul�ncia de seus 24 anos, Prata se saiu com esta: “N�o conhe�o Moli�re nem li Shakespeare”. No dia seguinte, o t�tulo cravava: “O talento n�o supre o analfabetismo”.
“Foi um pontap� na bunda de um moleque. Ele tinha toda raz�o e, se achou que eu tinha talento, comecei a ler”, conta hoje Prata, logo recuperando tamb�m uma passagem com outro cr�tico de Belo Horizonte, Jos� M�rcio Penido. “Ele me disse que eu tinha a capacidade de transformar a banalidade em arte. E acho que uma coisa que fa�o bem � pegar uma bobagem e transformar em literatura”, afirma.
O rec�m-lan�ado “O drible da vaca” (Record) traduz exatamente isto. Fruto da pandemia, foi escrito ao longo de oito meses de 2020. Prata queria lan��-lo no ano passado para marcar seus 60 anos de carreira como escritor – estreou aos 14, no jornal “A Gazeta de Lins”. Como as editoras diminu�ram consideravelmente seus lan�amentos na primeira fase da pandemia, o romance ficou para este ano.
Apaixonado por futebol – � torcedor do Clube Atl�tico Linense, atualmente na segunda divis�o do Campeonato Paulista –, um dia Prata se pegou perguntando o tamanho da trave. Resposta do Google: 7,32 de comprimento por 2,44 de largura. O que mexeu com o escritor foi saber que estas tamb�m s�o as medidas do port�o principal da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Pronto, esta seria a g�nese de uma hist�ria ficcional (com bases no real) sobre a origem do futebol.
PESQUISA
Deu a largada para uma pesquisa que consumiu tr�s anos. Prata, que s� esteve em Londres uma vez, em 1978 – “Fiquei com medo de atravessar a rua por causa da m�o inglesa e sa� correndo” – pegou-se estudando a fundo a Inglaterra vitoriana. “Descobri que havia uma rivalidade muito grande entre Cambridge e Oxford, inclusive que o filho da rainha (Vit�ria, o futuro monarca Eduardo VII), havia sido expulso de Oxford. Mas at� a�, nada de futebol.”A pesquisa foi apresentando a ele hist�rias que desconhecia. Como a Inglaterra de meados do s�culo 19 vivia num per�odo de p�s-pandemia (de c�lera); como o metr� surgiu por perfurarem o solo de Londres para atingir os esgotos e desinfectar o T�misa. Novos personagens reais foram surgindo, como a sufragista Sarah Emily Davies e os atores Marlene Dietrich e Charles Laughton (o livro traz, na parte final, uma galeria com os principais personagens, reais ou n�o, que passeiam pela hist�ria).
O romance acompanha o come�o do futebol, em 1859, e vai at� meados da d�cada seguinte, quando foi iniciada a profissionaliza��o do esporte. “O autor � o Watson, eu s� traduzi e fiz as notas de rodap�”, brinca Prata. Como narrador de “O drible da vaca”, ele escolheu o mais c�lebre dos coadjuvantes da fic��o. “Esse cara passou a vida toda sendo explorado pelo Sherlock e contando as hist�rias dele”, acrescenta Prata, que colocou o m�dico perdendo a virgindade, aos 25 anos, com Sarah Emily Davies.
BAIRRISMO
Nesta jornada, Prata permitiu-se at� certo bairrismo. Acrescentou � trama a fam�lia Silver, tr�s irm�os que Watson observa chutando uma bola feita de bexiga de boi e pano na porta de entrada da Universidade de Cambridge. “Praticamente quem criou o futebol foi a fam�lia Prata do Tri�ngulo Mineiro”, comenta, bem-humorado.“Embora muita coisa pare�a fic��o, tem muita coisa real. Quem inventou a bola de hex�gonos e pent�gonos foi mesmo Leonardo da Vinci. Embora algu�m possa n�o acreditar, o desenho original est� no museu (que leva o nome do g�nio renascentista) de Floren�a”, diz. � um desenho desta bola, ali�s, que figura na primeira p�gina de “O drible da vaca”.
Prata chega aos 75 de vida e 61 de carreira com cerca de 90 t�tulos, entre trabalhos para literatura, teatro, televis�o, jornalismo e cinema. Quando come�ou, admite, n�o pensava na escrita como um of�cio. “Escritor, na minha �poca, era coisa que funcion�rios p�blicos faziam quando chegavam em casa”, diz ele, citando novamente outro mineiro, o mais c�lebre deles, Carlos Drummond de Andrade.
No final dos anos 1960, o garoto que chegou a S�o Paulo vindo de Lins parecia estar com o futuro assegurado. Era um partid�o, para usar um termo da �poca. Estudante de Economia da Universidade de S�o Paulo (USP), estava empregado no Banco do Brasil. Poderia chegar a gerente, o sonho de boa parte das fam�lias de classe m�dia do per�odo. Mas eram os tempos da ditadura militar, e Prata acabou se descobrindo em meio � repress�o.
UNIVERSIDADE
Em 1968, no momento pr�-AI-5 (Ato Institucional No. 5, decretado em 13 de dezembro daquele ano, que deu in�cio ao per�odo mais duro da ditadura), os universit�rios ocupavam as faculdades. Comiam e dormiam no campus e, sem ter muito mais o que fazer, muitos deles se tornaram seguran�as. Entre 1968 e 1969, um grupo de extrema-direita, Comando de Ca�a aos Comunistas (CCC), passou a atacar teatros, jornais, bancas de revistas.“Fomos convocados para fazer seguran�a para teatro. Quando terminavam os espet�culos, n�s pul�vamos no palco com uma barra na m�o na frente do p�blico. O elenco ficava atr�s da gente para os aplausos”, lembra ele, um magrelo que n�o tinha l� o menor porte para a fun��o. Uma coisa foi levando a outra e, entre noitadas no restaurante Gigetto, a casa dos artistas paulistanos da �poca, Prata come�ou a se envolver com atores, diretores, cen�grafos.
Desde sempre bom de hist�rias, publicou um livrinho mimeografado na universidade e come�ou a vend�-lo nos restaurantes e bares que frequentava depois dos espet�culos. “Seu di�logo � muito bom, por que n�o escreve?”, sugeriram alguns colegas da �poca. E da�, mesmo sem conhecer Moli�re ou Shakespeare, chegou � pe�a “O cord�o umbilical”.
Desistiu da faculdade e do Banco do Brasil, para total desgosto da fam�lia que havia ficado em Lins. “Meu pai enlouqueceu, mandou um tio padre de Uberaba at� S�o Paulo para tentar tirar o diabo do meu corpo”, relembra. O exorcismo, obviamente, n�o deu certo. “Tive muita sorte, pois sete anos depois esse tresloucado aqui estava escrevendo novela das sete da Globo (“Est�pido cupido”, 1976).”
NOVELA
A primeira novela lhe valeu uma hist�ria deliciosa com Caetano Veloso. “Estava num bar com a minha mulher (a escritora e jornalista Marta G�es, m�e de seus dois primeiros filhos, o escritor e cronista Antonio Prata e a jornalista Maria Prata) e o Caetano, da rua, me viu. Entrou no bar e disse que n�o perdia um cap�tulo de ‘Est�pido cupido’. A Marta ficou embasbacada, me perguntou como � que eu estava me sentindo, 10 anos depois de ter sa�do de Lins, e ouvido as coisas que Caetano falou. Eu disse: ‘H� 10 anos ele estava saindo de Santo Amaro da Purifica��o. Ent�o a gente est� na mesma’”, conta Prata.Mesmo que tenha tido sorte, talento tampouco faltou em sua trajet�ria. “A ditadura militar, para os criadores, escritores, m�sicos, pintores, a classe art�stica em geral, foi um per�odo muito forte, pois todos se rebelaram. Eu me orgulho de ter feito parte, ainda que minimamente, n�o estou me comparando a Chico ou Caetano, desta gera��o. Hoje, s� vejo gente rindo desse louco, mas ningu�m est� fazendo nada”, conclui.

“O DRIBLE DA VACA”
• Mario Prata
• (Record, 384 p�ginas)
• R$ 49,90 (livro) e
• R$ 34,90 (e-book)