
"A zoologia metaf�sica de Murilo Mendes est� calcada na influ�ncia surrealista. Os animais, os monstros e objetos animados de 'Poliedro' s�o desenhados, em sua maioria, a partir dessa est�tica" "Maria Jos� de Queiroz comp�e, a partir de Minas, como uma atenta cart�grafa, um mapa ficcional em que cidades reais podem se mesclar ou se deixar enevoar por cidades ficcionais ou invis�veis"
Lan�ada pela Caravana Grupo Editorial, a Cole��o Libertas � dedicada � publica��o de ensaios sobre literatura, cinema, fotografia, teatro, m�sica e televis�o. Entre os t�tulos j� editados est�o “A literatura encarcerada”, de Maria Jos� de Queiroz, e “L�nguas em tr�nsito”, de Lyslei Nascimento e Neide Nagae.
Agora, v�m � lume dois novos livros: “Animais biogr�ficos: um estudo de 'Poliedro', de Murilo Mendes” e “Tecer o vis�vel e entretecer o invis�vel: cidades invis�veis em Italo Calvino e Maria Jos� de Queiroz”, ambos resultantes de disserta��es de mestrado defendidas junto ao Programa de P�s-gradua��o em Letras: Estudos Liter�rios da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a orienta��o de Lyslei Nascimento.
ANIMAIS BIOGR�FICOS
O primeiro ensaio � de autoria de Filipe Menezes, mestre em letras pela UFMG, mestre em administra��o p�blica pela Funda��o Jo�o Pinheiro e, atualmente, doutorando em letras e estudos liter�rios pela UFMG. Uma das ep�grafes, assinada em 1956 por Eduardo Frieiro, situa devidamente o tema: “Os animais na literatura s�o velhos como a pr�pria literatura”.
Identificando as variadas influ�ncias sofridas, ao longo dos s�culos, pelos que escreveram sobre o assunto, Menezes mostra como a ci�ncia, a religi�o e a mitologia se encontram em tais trabalhos, a eles conferindo uma ineg�vel proximidade com a literatura de fic��o.
BESTI�RIO
Principal precursor do g�nero “besti�rio”, largamente difundido na Idade M�dia, “Physiologus”, de origem desconhecida, fazia algumas descri��es legend�rias de animais e foi amplamente utilizado com a finalidade de ensinar teologia e moral, tendo na “B�blia” uma de suas inspira��es principais.
Os besti�rios s�o considerados vers�es adaptadas do “Physiologus”, mas acolhem e recombinam contribui��es de proced�ncias diversas. Como ressalta Menezes, “com o passar do tempo, os verbetes foram reinventados, sendo revistos e adaptados por v�rios autores, dando origem a outros textos nos quais os animais ocupam outros contextos. Nestes, a vida dos animais e suas caracter�sticas e h�bitos reinscrevem conte�dos variados, diferentes da �nfase na moral e na religi�o”.
J� os chamados “zool�gicos textuais”, como explica o autor, “carregam um complexo sistema sem�ntico, com algumas caracter�sticas trazidas dos zo- ol�gicos reais, como os sentidos de reclus�o dos animais e o dom�nio do homem sobre eles, o autoespelhar do visitante nos animais expostos em suas jaulas ou simulacros de h�bitat, a inten��o de divertir e, em alguns textos mais recentes, o af� de educar e se preocupar com a conserva��o do meio ambiente. Os zool�gicos textuais, assim, s�o met�foras dos besti�rios, recriados para absorver os variados significados que carregam os zool�gicos e aqu�rios reais”.
� a Jorge Luis Borges que Menezes recorre para abordar como a literatura moderna e contempor�nea apresenta os animais. Guiado pelo escritor argentino, o ensa�sta visita Emanuel Swedenborg, Franz Kafka, Lewis Caroll, Edgar Allan Poe, Max Brod e H. G. Wells.
O primeiro brasileiro mencionado � o poeta S�rgio de Castro Pinto, que assina o “Zoo imagin�rio” (Escrituras, 2006). Murilo Mendes aparece em seguida, como algu�m em cuja obra se pode descortinar um “pequeno zool�gico pessoal” e sobre quem Menezes escreve: “Seus animais, assim, s�o ins�litos. Alguns pertencem � sua mem�ria de inf�ncia, outros apenas �s suas divaga��es. Eles s�o distantes, alguns nem t�m corpos”.
LEGADO
Decidido a percorrer exaustivamente a obra do escritor juiz-forano, Menezes repassa, um a um, os seus livros na busca da presen�a dos animais e de sua significa��o em seu legado liter�rio, para logo concluir: “Eles s�o seres ins�litos, com raras caracteriza��es f�sicas, mas, sobretudo, on�ricas e surrealistas – s�o animais metaforizados. Os seres imagin�rios ou mitol�gicos presentes (...) s�o combina��es de animais reais com uma zoologia dos sonhos”.
� em “Poliedro” (Jos� Olympio Editora, 1972), no entanto, que Menezes det�m sua aten��o, a ele dedicando um cap�tulo exclusivo, para apontar, inicialmente, que “essa zoologia metaf�sica de Mendes est� calcada na influ�ncia surrealista. Os animais, os monstros e objetos animados de 'Poliedro' s�o desenhados, em sua maioria, a partir dessa est�tica”.
Quando alude aos verbetes criados por Murilo Mendes no “Setor microzoo”, o autor destaca que eles “apropriam-se da imagem do animal, ser real, f�sico, palp�vel, para interpor questionamentos e concluir por meio de aforismos, quest�es metaf�sicas ou outras relativas a preocupa��es filos�fico-religiosas do poeta”.
Em se��o posterior, Menezes identifica, finalmente, um segundo grupo de verbetes, parecidos com o primeiro, mas portadores de diferen�a fundamental: a presen�a de tra�os biogr�ficos do poeta, o que autoriza o autor a cunhar, a respeito, a express�o “animais biogr�ficos”.
Pesquisa meticulosa, o empreendimento de Menezes � aporte valioso � fortuna cr�tica da obra muriliana. Atento e perspicaz, o autor entrega ao p�blico um repert�rio altamente qualificado sobre a rela��o entre a obra do poeta e os animais. Em linguagem clara e precisa, sem recurso ao hermetismo ou � empola��o, conduz os leitores a um agrad�vel e produtivo passeio pelos livros do poeta juiz-forano, renovando a admira��o geral pelo que ele foi capaz de construir.
ENTRETECER O INVIS�VEL
O segundo lan�amento da Cole��o Libertas � assinado por Maria Silvia Duarte Guimar�es. J� na introdu��o, � mais uma vez a ep�grafe a chave adequada para a leitura do trabalho da autora: “A palavra associa o tra�o vis�vel � coisa invis�vel, � coisa ausente, � coisa desejada ou temida, como uma fr�gil passarela improvisada sobre o abismo” (Italo Calvino).
Assumindo desde logo as cidades como o ponto principal de sua pesquisa, a ensa�sta se interessa pelo discurso que as constr�i, o que, segundo ela, possibilita diversas interpreta��es, dependendo de quem � o leitor. Em sua investiga��o, selecionou dois autores – Italo Calvino e Maria Jos� de Queiroz – para compreender como cada um lan�a fr�gil passarela entre o vis�vel e o invis�vel.
Citando a cr�tica que identifica o escritor italiano como algu�m que dedicou sua obra a “ensinar a cidade”, Maria Silvia estabelece, a�, a primeira rela��o entre ele e a acad�mica mineira, que igualmente pode ser considerada “mestra de Minas Gerais”.
CARTOGRAFIAS
Esse exerc�cio de aproxima��o entre os dois escritores permear� o trabalho da pesquisadora, sempre preocupada em apurar o modo como cada um inscreve as cidades no territ�rio ficcional, o que acaba erguendo “cartografias imagin�rias”, “que, simultaneamente, aparentam tocar o real e o ficcional, como se descrevessem o movimento de um p�ndulo”.
No exame de “As cidades invis�veis” (Companhia das Letras, 2011), Maria Silvia reflete sobre como, no romance, se d� a elabora��o ficcional do espa�o, detectando alguns efeitos da comunica��o entre Marco Polo e Kublai Khan, quando o viajante descreve ao imperador os lugares por ele visitados. A ambiguidade � um desses efeitos, inevit�vel quando a intera��o entre os dois se d�, majoritariamente, por meio de “gestos, saltos, gritos de maravilha e de horror, latidos e vozes de animais”.
Polo lida, de forma clara, com a ideia de que as cidades do imp�rio s�o poss�veis, imaginadas ou sonhadas. Bem cuidado, o trabalho menciona cada uma das localidades por ele referidas, com �nfase no modo como ele as comenta, em narrativas estruturadas pelo princ�pio da imagina��o: “(...) as descri��es do viajante s�o amb�guas, vol�teis, compostas por palavras, mas tamb�m por gestos e objetos, e as cidades que descreve existem e n�o existem na fic��o”.
Para a ensa�sta, “a literatura de Calvino parte do mundo para chegar � escrita e da escrita para alcan�ar a realidade. � nesse ponto de fronteira, limiar entre o escrito e o n�o escrito, que o escritor pressiona a ponta de sua caneta e com ela tra�a os contornos de seu mundo ficcional, buscando encontrar, com isso, o desconhecido e o indiz�vel. Assim, Calvino escreve sobre o que h� do outro lado das palavras, sobre o que quer ‘sair’ do sil�ncio, significar atrav�s da linguagem, como que dando golpes em um muro de pris�o”.
MINAS
No estudo de “Como me contaram: f�bulas historiais” (Imprensa Publica��es, 1973), colet�nea de textos de diferentes g�neros, Maria Silvia identifica logo o territ�rio de Minas Gerais como protagonista, no enredo em que a realidade e a fic��o se confundem, no que Calvino chamaria de encontro entre o mundo escrito e o n�o escrito. Para a pesquisadora, a escritora mineira comp�e, a partir de Minas, como uma atenta cart�grafa, um mapa ficcional em que “cidades reais podem se mesclar ou se deixar enevoar por cidades ficcionais ou invis�veis”.
Assim como o escritor italiano, Maria Jos� de Queiroz realiza, segundo Maria Silvia, “um trabalho fabulat�rio que consiste em entrecruzar hist�ria e fic��o, em uma tentativa de reconstruir o passado hist�rico de Minas Gerais e da Am�rica Latina”.
Entre as principais reflex�es propostas pela pesquisadora no ensaio est� a de que “uma cidade n�o �, portanto, feita apenas do ‘material concreto’ que a sustenta, que pode ser sentido ou tocado, ou contr�rio, cada uma delas carrega uma carga invis�vel, que pode ser composta pela mem�ria, pelos desejos ou pela imagina��o de seus habitantes”. Em suas conclus�es, Maria Silvia ressalta que os mapas ficcionais por ela analisados representam cartografias imagin�rias que, no ato da escrita e da leitura, se afirmam como infinitas, tantas s�o as possibilidades que levantam.
COMPOSI��O
Rigoroso, o percurso trilhado por Maria Silvia permite ao leitor descobrir o quanto as obras de Italo Calvino e de Maria Jos� de Queiroz se relacionam, e o quanto � rico o trabalho de composi��o liter�ria a que os dois se lan�am, com o talento por todos reconhecido. Em estilo leve, fluido e agrad�vel, sem abrir m�o, em nenhum instante, da complexidade do racioc�nio requerido pelo seu trabalho, a autora brinda o p�blico com uma contribui��o de grande valor para o campo de sua elei��o.
Assim, por tudo o que j� foi dito, a Cole��o Libertas se firma como o reposit�rio adequado das melhores investiga��es acad�micas empreendidas nas �reas por ela abrangidas, dando � sociedade a oportunidade de conhecer o alto n�vel dos pesquisadores atualmente formados pela universidade brasileira, patrim�nio de que jamais abriremos m�o.
*Rog�rio Faria Tavares � jornalista, doutor em literatura e presidente da Academia Mineira de Letras

“ANIMAIS BIOGR�FICOS: UM ESTUDO DE 'POLIEDRO', DE MURILO MENDES”
• De Filipe Menezes
• Grupo Editorial
• 180 p�ginas
• R$ 49,90
• Contato: caravanagrupoeditorial.com.br

“TECER O VIS�VEL E ENTRETECER O INVIS�VEL: CIDADES INVIS�VEIS EM ITALO CALVINO E MARIA JOS� DE QUEIROZ”
• De Maria Silvia Duarte Guimar�es
• Caravana Grupo Editorial
• R$ 49,90