BoJack Horseman come�ou como mais uma anima��o para adultos.
A s�rie mostra um homem (na verdade, um cavalo) preso no passado, revivendo seus dias de gl�ria como astro de uma s�rie banal da d�cada de 1980 chamada Horsin' around. BoJack � dependente, tem muito sexo inseguro e parece deprimido - sinais cl�ssicos das ousadas anima��es para adultos do s�culo 21, seguindo a tend�ncia dos cl�ssicos do g�nero como Simpsons e Family Guy (Uma Fam�lia da Pesada, no Brasil).
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Como ocorre em muitas outras s�ries de streaming, os primeiros f�s de BoJack Horseman, quando a s�rie estreou em 2014, diziam que o desenrolar da s�rie era lento, mas que ela melhoraria perto do s�timo epis�dio.
Aquele cavalo chamado BoJack acabou por ser o rosto da com�dia do s�culo 21. Como provou a sele��o das 100 melhores s�ries de TV do s�culo 21 pela BBC, as �ltimas duas d�cadas trouxeram uma mudan�a radical das com�dias para TV rumo ao lado sombrio. BoJack Horseman, Fleabag, Catastrophe, Veep e Crazy Ex-Girlfriend s�o algumas das s�ries que abandonaram o antigo formato "sitcom" (com�dia de situa��o, da abrevia��o em ingl�s) - adotado em s�ries como a norte-americana Cheers e a brit�nica Coupling.
Pelo menos nas s�ries em l�ngua inglesa - sim, h� um vi�s definido na pesquisa - as com�dias para TV simplesmente n�o s�o engra�adas hoje em dia. As risadas s�o acompanhadas por conte�do emocional muito maior, muitas vezes combinado com luto, vergonha, depend�ncia, corrup��o, doen�as mentais e quest�es existenciais sobre o significado da pr�pria vida.
Por que a mudan�a para um estilo mais 'melanc�lico' (ou realista)?
� medida que as op��es televisivas se multiplicavam exponencialmente na era do streaming, n�s passamos a olhar para a TV de forma mais s�ria, incluindo as com�dias. Essa mudan�a permitiu que as com�dias se equiparassem aos dramas em termos de prest�gio, o que � comprovado pelas suas frequentes men��es na lista das 100 melhores s�ries (em compara��o, a lista dos 100 melhores filmes do s�culo 21 elaborada pela BBC foi dominada por dramas).
A com�dia para TV t�pica do s�culo 21 alterna livremente entre altos e baixos, risos e l�grimas, descobertas e socos no est�mago. Isso torna as com�dias mais pr�ximas da nossa vida real que, naturalmente, n�o est� tentando se enquadrar em uma categoria de fic��o. O c�mico est� sempre misturado com o s�rio. N�s n�o temos escolha.
Faz sentido que essa evolu��o tenha ocorrido recentemente. A com�dia para TV do s�culo 20 era mais direta - como em The Golden Girls (Supergatas, no Brasil) e as loucas desventuras dos personagens da s�rie inglesa Fawlty Towers - e n�o apresentou grandes evolu��es desde o surgimento da televis�o at� a d�cada de 1990.
Como a televis�o era paga pelos anunciantes, os executivos das redes de TV aberta claramente se preocupavam com poss�veis ofensas ou situa��es inc�modas para os espectadores. Por isso, a maior parte da programa��o destinava-se a agradar "a todos" - uma receita para reprimir a criatividade.

Os programas eram constantemente avaliados pelo p�blico, muitas vezes desprezando a criatividade, surpresas ou mesmo suaves desconfortos em favor de mensagens mais amplas. Alguns testes de audi�ncia pediam literalmente aos espectadores que girassem mostradores a cada segundo de um programa para indicar se eles gostavam ou n�o do que estavam vendo na tela.
Mas isso acabou com o novo mil�nio. A explos�o da programa��o a cabo fortaleceu a qualidade, inova��o e as t�cnicas de grava��o, retirando o g�nero c�mico das estruturas tradicionais de com�dias de situa��o em est�dios de grava��o com trilha de risadas.
O cen�rio cada vez mais competitivo - que come�ou no in�cio dos anos 2000, quando as redes a cabo come�aram a produzir programas originais para concorrer com as redes abertas - exigiu programas que causassem forte impacto. Isso inicialmente levou os produtores a enfatizar o constrangimento - um parente do pastel�o em abordagem mais ousada, mas ainda dentro do campo da com�dia pura j� conhecida.
Esse constrangimento era muitas vezes acentuado por t�cnicas "real�sticas", como o uso da c�mera na m�o e o formato de falso document�rio - como em Curb your Enthusiasm (Segura a Onda, no Brasil) e nas duas vers�es de The Office (no Brasil, Vida de Escrit�rio). Isso abriu as portas para retratar ainda mais desconforto � medida que o novo s�culo avan�ava.
Protagonistas desagrad�veis ou anti-her�is tornaram-se mais comuns nas com�dias e tamb�m em dramas, como Larry David (Segura a Onda) e David Brent e Michael Scott (The Office, nas vers�es brit�nica e americana), at� Tony Soprano (Os Sopranos) e Dexter Morgan (Dexter).
O crescimento dos streamings trouxe muito mais liberdade: o g�nero era menos importante, porque n�o havia mais grades de hor�rios; as com�dias deixaram de ser exibidas em blocos de 30 minutos agrupados e os dramas n�o eram mais pressionados em espa�os com uma hora de dura��o tarde da noite, na hora mais "s�ria" da audi�ncia. E a dura��o dos epis�dios e das temporadas podia variar, livre da programa��o das redes de TV.
O p�blico no est�dio e as trilhas de risada haviam sido abolidos h� tempos, seguindo uma tend�ncia iniciada com s�ries "sitcom" de redes abertas como 30 Rock (Um Maluco na TV, no Brasil), mas precipitada pelo maior or�amento dos streamings. E destacar-se agora � melhor do que enquadrar-se, j� que a capacidade infinita de programa��o dos servi�os de streaming possibilitou um conjunto imenso de escolhas.
'B�lsamo para tempos incertos'
Eventos mundiais catastr�ficos provavelmente contribu�ram para levar as com�dias para o lado sombrio.

Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 foram apenas o come�o de um desgaste cont�nuo das ilus�es de seguran�a e garantia de progresso caracter�sticas da vida no mundo ocidental nas d�cadas de 1980 e 1990. Com o medo permanente do terrorismo, guerras, colapso dos mercados financeiros, tiroteios, polariza��o pol�tica e a pandemia de covid-19, as duas �ltimas d�cadas marcaram a perda da inoc�ncia para muitos ocidentais que criaram a maior parte das s�ries em l�ngua inglesa.
Os dramas j� vinham se tornando mais complexos e sombrios antes do 11 de Setembro com o sucesso fenomenal, nos Estados Unidos, de The Sopranos (no Brasil, Fam�lia Soprano), ap�s sua estreia em 1999. E muitas s�ries vinham ignorando a barreira entre a com�dia e o drama - antes e depois do 11 de Setembro - gra�as, muito provavelmente, � liberdade criativa oferecida, primeiro pela TV a cabo e, depois, pelo streaming.
Mas existe algo mais estimulante na descoberta dos momentos mais sombrios e profundos infiltrados nas com�dias. Embora o humor negro fosse um g�nero reconhecido no cinema e no teatro h� d�cadas, a televis�o havia tradicionalmente evitado os experimentos no setor. Por isso, no s�culo 21, as com�dias para TV se tornaram um espa�o para discutir as contradi��es do mundo, reconhecendo que, mesmo nos nossos melhores momentos, a vida pode nos dar um soco no est�mago - e, principalmente, que podemos rir at� nos nossos momentos mais tristes.
Um exemplo claro da evolu��o desse g�nero � a s�rie Ted Lasso, recente sucesso internacional, com sua premissa ampla que teria facilmente se transformado em uma s�rie "sitcom" cl�ssica de antigamente: um t�cnico de futebol americano simples e folcl�rico (interpretado pelo cocriador da s�rie, Jason Sudeikis) muda-se para o Reino Unido e recebe a tarefa de treinar um time de futebol ingl�s - mas ele n�o compreende o jogo e n�o se enquadra na cultura totalmente diferente do pa�s.
� um cen�rio cl�ssico de "peixe fora d'�gua", exibido em toda a hist�ria da televis�o, desde a s�rie norte-americana Green Acres, na d�cada de 1960, at� 3rd Rock from the Sun (Uma Fam�lia de Outro Mundo, no Brasil), nos anos 1990. Mas, como fen�meno do s�culo 21, a s�rie se transformou em algo completamente diferente na segunda temporada: explora��o dos perigos da masculinidade t�xica e dos poderes redentores da vulnerabilidade, honestidade e do reconhecimento dos colegas. A s�rie ainda �, �s vezes, muito engra�ada. A vida de Ted poder� ter mais dificuldades que a dos seus parceiros do s�culo passado, mas o panorama da s�rie, pelo menos ap�s duas temporadas, � abertamente otimista.
As com�dias sombrias inclu�das na lista das 100 melhores da BBC podem n�o ser t�o idealistas, mas a maioria delas encontra-se no lado do otimismo ponderado.
A personagem-t�tulo da s�rie brit�nica Fleabag trabalha com seu luto, enquanto Rebecca de Crazy Ex-Girlfriend aprende a lidar com seu transtorno de personalidade lim�trofe ("borderline"). Elas sobrevivem a s�rias dificuldades e conquistam seus finais felizes - muitas vezes aceitando um trauma e seguindo em frente para se tornar uma pessoa mais sensata.
Isso faz com que essas s�ries sejam o b�lsamo perfeito para tempos incertos: elas n�o tentam nos convencer de que tudo � positivo - elas abordam as dificuldades do mundo real, que s� se agravaram no final da d�cada de 2010 e ao longo de 2020.
O fim dos g�neros
Naturalmente, algumas das grandes s�ries c�micas do s�culo 21 s�o totalmente sombrias, sem uma abertura sequer para a luz. Veep terminou com uma condena��o profundamente c�nica da pol�tica dos Estados Unidos, enquanto Succession ainda precisa revelar algum tra�o de otimismo sobre a fam�lia Roy, a rica dinastia norte-americana das comunica��es que protagoniza a hist�ria.
A aclama��o da cr�tica e o frenesi que cultua a atual temporada da s�rie Succession ressaltam a resson�ncia do p�blico com a exibi��o da gan�ncia, incompet�ncia e impunidade dos super-ricos que administram imp�rios midi�ticos de bilh�es de d�lares. Para os personagens da s�rie, as mudan�as de poder e as loucuras desesperadas s�o dram�ticas; para n�s, o p�blico, elas s�o absurdamente c�micas.
Na verdade, � dif�cil classificar Succession em um g�nero. Seus epis�dios t�m uma hora de dura��o, com muitas reviravoltas dram�ticas; a s�rie � deliberadamente shakesperiana; e o pr�mio Emmy de 2021 a chamou de drama. Mas ela oferece momentos hilariantes em cada epis�dio.
Em Succession, existe a com�dia no estilo de O Gordo e o Magro entre o genro Tom e o primo Greg. H� o filho ambicioso Kendall, com seu conceito misto de com�dia tradicional e "cringe comedy" (humor com a vergonha alheia) de como � importante seu pai, o patriarca da fam�lia. E existe ainda o pequeno detalhe das manchetes falsas divulgadas pelo canal noticioso da fam�lia Roy (similar � Fox News), ATN, como: "Imigrantes ilegais de g�nero fluido podem estar entrando no pa�s 'duas vezes'".
A �nica palavra que temos no momento para descrever Succession � o neologismo "dram�dia" - ou com�dia dram�tica, que historicamente indicava um drama leve, como Ally McBeal (Ally McBeal: Minha Vida de Solteira, no Brasil) ou The Marvelous Mrs. Maisel (no Brasil, A Maravilhosa Sra. Maisel), em oposi��o �s com�dias mais sombrias.
Todas as com�dias sombrias mencionadas na lista das 100 melhores s�ries da BBC s�o em l�ngua inglesa e somente uma s�rie c�mica em l�ngua n�o inglesa foi inclu�da na lista: a francesa Dix Pour Cent.
Paralelamente, diversas s�ries dram�ticas em outros idiomas foram mencionados - The Bridge (A Ponte, no Brasil), Borgen, La Casa de Papel e outras, o que sugere que as com�dias geralmente s�o traduzidas com mais dificuldade, especialmente as com�dias sombrias, com suas sutilezas.
Isso havia sido confirmado anteriormente: os trocadilhos e as express�es misantr�picas da s�rie Seinfeld, sensa��o norte-americana dos anos 1990 que foi evidente precursora das com�dias sombrias atuais, representaram um evidente desafio para os tradutores e a audi�ncia internacional de Seinfeld foi muito inferior � de Friends, que era mais simples e leve.
Por isso, muitas com�dias para TV fora do mundo de fala inglesa tamb�m distorceram os g�neros recentemente. A s�rie japonesa Hibana: Spark usa seu ambiente fundamentalmente c�mico - dois comediantes que trabalham juntos - para se tornar um tanto existencial. A s�rie sul-coreana One More Time � uma com�dia rom�ntica em forma de novela sobre um m�sico preso em um la�o temporal. A francesa A Very Secret Service � uma par�dia do g�nero de espionagem e a sueca Fallet representa o n�rdico sombrio.
Estas s�ries n�o s�o t�o sombrias quanto Succession, mas parece prov�vel que haver� outras misturas de g�neros internacionais � medida que o streaming oferecer acesso a programas de todos os pa�ses para o p�blico internacional.
E, � claro, existem muitas exce��es para a mudan�a das s�ries c�micas para o lado sombrio no s�culo 21.
30 Rock/Um Maluco na TV tinha um tom sat�rico c�nico, mas ainda era essencialmente uma "sitcom" tradicional no local de trabalho, recheada com mais piadas por segundo que talvez qualquer outro programa na hist�ria da TV. Parks and Recreation (Confus�es de Leslie, no Brasil) oferecia uma clara vis�o leve da pol�tica local na era Obama. E a s�rie canadense Schitt's Creek atingiu inicialmente uma postura ir�nica - com aquelas pessoas desagrad�veis que haviam sido ricas e agora eram for�adas a viver no meio do nada - para depois contradizer essa imagem a todo momento, ao criar uma vis�o ut�pica da vida nas cidades pequenas que recebem todas as pessoas.
A quest�o real n�o � se a leveza ou o aspecto sombrio ir� prevalecer nas com�dias para TV � medida que avan�a o s�culo 21. BoJack Horseman � o exemplo perfeito de como a com�dia real pura - boba, engra�ada, simpl�ria e animada - pode se transformar em uma delicada medita��o sobre o sentido da vida.
Na cena final da s�rie (aten��o: spoiler!), BoJack, que saiu da cadeia por um dia para ir a um casamento, senta-se no teto de uma casa com sua amiga Diane - a mais pr�xima de uma alma g�mea que ele chegou a conhecer. Ele conta a ela um pouco sobre a vida na pris�o e ela encolhe os ombros. "�, mas o que podemos fazer?", diz ele. "A vida n�o presta e a gente morre, n�o �?"
"�s vezes", responde ela. "�s vezes a vida n�o presta e a gente continua vivendo." Pausa. "Mas hoje est� uma bela noite, n�o �?"
"�", diz ele. "Uma bela noite."
O t�tulo do epis�dio � Nice While it Lasted (no Brasil, Bom Enquanto Durou).
Ele traz de volta a antiga quest�o: quando a distin��o entre com�dia e drama ir� se tornar irrelevante? Quando estaremos prontos para admitir que a via � engra�ada e triste, bela e tr�gica, e que a arte, na sua melhor forma, reflete tudo isso, seja ela qual for?
E at�, talvez especialmente, a televis�o.
Leia a �ntegra desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Culture.
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