Protagonizado por uma fam�lia negra de classe m�dia baixa, o filme foi premiado no edital de Baixo Or�amento para Longa Afirmativo, realizado em 2016 (foto: Filmes de Pl�stico/Divulga��o
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A edi��o 2022 do prestigioso Festival de Cinema de Sundance, nos Estados Unidos, deve anunciar nesta sexta-feira (28/1) o t�tulo vencedor da Mostra Competitiva Cinema Mundial, em que o Brasil est� representado com “Marte um”, do diretor mineiro Gabriel Martins, cofundador da produtora Filmes de Pl�stico, de Contagem.
Independentemente de qual seja o resultado do festival, cuja programa��o se estende at� domingo, Gabriel Martins avalia que o fato de estar na disputa representa muito para o longa, para a equipe envolvida em sua produ��o e para o cinema brasileiro, em geral.
“Estar numa sele��o como essa abre muitas portas. Vejo agora, na pr�tica, o quanto essa aten��o dada por um festival t�o tradicional e importante mobiliza, principalmente a imprensa. O p�blico passa a ter um interesse pr�vio por esse projeto. Eu me sinto honrado e grato. Hoje em dia s�o tantos filmes bons acontecendo no mundo que, se de alguma forma nosso projeto consegue ter uma aten��o, isso me deixa muito feliz”, diz o cineasta.
“Marte um” conta a hist�ria de uma fam�lia negra de classe m�dia baixa: o pai, Wellington (Carlos Francisco); a m�e, T�rcia (Rejane Faria); a filha, Eunice (Camila Souza), e o irm�o, Deivid (o estreante C�cero Lucas), sobre quem recai o foco do longa.
Deivid joga futebol, mas sonha em ser astrof�sico para poder participar da miss�o Marte 1, a ser realizada em 2030, com o objetivo de conquistar o Planeta Vermelho. A trama transcorre a partir de 2018, quando Jair Bolsonaro � eleito presidente, e segue os personagens por alguns meses, acompanhando o impacto das mudan�as pol�ticas no Brasil para aquele n�cleo familiar.
A elei��o de 2018, que conduziu Jair Bolsonaro � Presid�ncia do Brasil, serve como pano de fundo para a trama (foto: Filmes de Pl�stico/Divulga��o)
REPERCUSS�O INTERNACIONAL
O filme foi exibido pela Mostra Competitiva Cinema Mundial de Sundance em formato on-line – para o qual os organizadores adaptaram �s pressas a edi��o deste ano, devido ao avan�o da variante �micron nos EUA – entre os �ltimos dias 20 e 24. Desde ent�o, a repercuss�o tem sido muito positiva, conforme comenta Martins. Ele conta que um volume grande de cr�ticas, oficiais e n�o oficiais (o que expressa um retorno do p�blico tamb�m), tem sido publicado em diversos canais.
“Dei muitas entrevistas para ve�culos norte-americanos e acabei de participar da grava��o de um debate com diretores negros que vai ao ar em fevereiro, nos Estados Unidos. N�o consegui ler tudo o que j� foi publicado, mas tenho acompanhado a repercuss�o on-line e tem sido muito legal. Percebo que o filme teve uma recep��o positiva, muito emocionada e calorosa, ou seja, n�o s� por um vi�s racional”, diz.
Martins conta que a ideia para “Marte um” veio na esteira da derrota da sele��o brasileira para a Alemanha por 7 a 1, na Copa do Mundo de 2014. Ele disse que ficou pensando no peso que o futebol tem no pa�s e, naquele momento, atrelando o placar vexat�rio do jogo � situa��o pol�tica que o Brasil vivia.
“Junto disso veio o entendimento da negritude entrando mais forte na pauta das discuss�es, eu me entendendo como cineasta negro. Isso tudo me levou ao Deivinho, esse garoto que joga futebol, mas pensa em ser astrof�sico. Foram surgindo a partir da� outros arqu�tipos do que seria a fam�lia desse garoto”, diz.
(foto: Filmes de Pl�stico/Divulga��o)
"Acho que essa realidade coloca desafios na pureza do sonho. Existe o sonho como algo muito potente, mas, ao mesmo tempo, os conflitos sociais, o jogo da sociedade, esse projeto de presid�ncia, o conflito de classes, tudo isso interfere. Mas o filme acredita que entre o lugar da utopia e o da possibilidade existe a vida"
Gabriel Martins, cineasta
EXPERI�NCIA PR�PRIA
Uma caracter�stica comum �s produ��es da Filmes de Pl�stico (“Ela volta na quinta”, “No cora��o do mundo”, “Temporada”) � o fato de tratarem da vida real, daquilo que os diretores experimentam ou observam no dia a dia. Com “Marte um” n�o � diferente. Martins assente que h� um paralelo entre o sonho de Deivid com a astrof�sica e o seu pr�prio, alimentado desde a inf�ncia, de ser cineasta.
“Tem coisas no filme que n�o est�o diretamente ligadas a mim, mas que observei ao longo da vida. E tem muito da minha rela��o com meu pai. S�o coisas que experimentei e distribuo com os personagens”, destaca. O fato de usar a elei��o de Bolsonaro e os primeiros meses de seu governo como pano de fundo levanta uma quest�o: a realidade se contrap�e � possibilidade de sonhar?.
“Acho que essa realidade coloca desafios na pureza do sonho. Existe o sonho como algo muito potente, mas, ao mesmo tempo, os conflitos sociais, o jogo da sociedade, esse projeto de presid�ncia, o conflito de classes, tudo isso interfere. Mas o filme acredita que entre o lugar da utopia e o da possibilidade existe a vida”, diz.
Ele ressalta que em “Marte um” o panorama pol�tico brasileiro no momento em que transcorre a trama � apenas um cen�rio, n�o dita o que � o filme, e que o longa aborda conflitos da sociedade que j� vinham desde antes.
“A elei��o, no longa, � mais para trazer uma atmosfera de tens�o. Lan�ando o filme agora, quase quatro anos depois, a gente tem uma dimens�o mais grave do que significou. O Brasil est� precisando sonhar, porque estamos num momento de depress�o. Mas n�o quis, l� atr�s, fazer um diagn�stico do que seria esse governo ou esse per�odo que estamos vivendo; nem sequer conseguiria”, observa.
“Marte um” foi realizado gra�as ao edital de Baixo Or�amento para Longa Afirmativo, para cineastas negros e negras – o primeiro e �nico do tipo, realizado em 2016. O diretor destaca que isso lhe trouxe um senso de responsabilidade muito grande, com a compreens�o de que o filme poderia ser uma forte representa��o da cultura de que faz parte.
“Coloco muito afinco em qualquer trabalho que envolva dinheiro p�blico. Uso o dinheiro com a responsabilidade que me � confiada e com muita seriedade. Nesse caso, pensei muito no que esse filme poderia representar de conex�o para a popula��o negra. N�o doso minha criatividade em fun��o de expectativas, n�o tenho como querer agradar a todo mundo, mas pensei num filme que fosse muito sincero com a experi�ncia de negritude que tenho e sempre tive ao longo da vida”, ressalta.
PROTAGONISMO NEGRO
Com efeito, “Marte um” apresenta uma hist�ria com uma fam�lia negra no centro, cercada de amigos e vizinhos negros, mas cuja exist�ncia n�o se resume � viol�ncia, ao racismo e ao trauma – o que o filme tamb�m n�o evita. Deivinho, Eunice, T�rcia e Wellington t�m direito a uma exist�ncia completa, com alegrias, tristezas, preocupa��es e questionamentos, como todo mundo, conforme observa Martins.
A participa��o do longa do Festival de Sundance j� rendeu ao menos uma conquista: o filme fechou com a Magnolia Pictures, que atuar� como parceira e agente de vendas internacional. “� uma empresa com muita experi�ncia, com uma circula��o muito boa e com �timos projetos no curr�culo. Olharam o filme de uma maneira muito cuidadosa, n�o s� como mais um t�tulo no cat�logo. Entenderam o potencial de ‘Marte um’ e j� come�aram a fazer um trabalho muito interessado, muito cuidadoso. Acho que vai abrir caminhos. A gente est� em boas m�os”, diz o diretor.
Ele aponta que “Marte um” est� inclu�do na programa��o do Festival de Cinema de Gotemburgo, na Su�cia – o mais importante da Escandin�via –, em curso at� o pr�ximo dia 6, e foi pleiteado, para avalia��o, por v�rios outros festivais mundo afora. “N�o temos confirma��o de nenhum outro festival ainda, mas, claro, espero que selecionem o filme.” A previs�o de estreia no circuito comercial brasileiro � para agosto deste ano.
Martins disse, em entrevista recente, que se tivesse que fazer “Marte um” hoje, no atual contexto pol�tico e cultural do pa�s, o filme simplesmente n�o aconteceria, em raz�o da quase total paralisa��o do setor audiovisual, por falta de incentivos.
“Historicamente, e principalmente nos �ltimos anos, o cinema brasileiro sempre dependeu muito das circunst�ncias pol�ticas. A gente viu, junto com os passos do atual governo, o decl�nio do cinema brasileiro como uma pot�ncia de investimento, o que passa pela extin��o do Minist�rio da Cultura”, aponta.
Ele n�o hesita em dizer que a luz no fim do t�nel para a situa��o de pen�ria que a cultura, de modo geral, atravessa est� atrelada �s elei��es deste ano. “Temos que ver como o vencedor do pleito vai pensar a cultura, como vai resgatar um projeto de investimento na cultura que vinha sendo desenvolvido e foi aniquilado. N�o posso dizer, agora, que haja uma luz no fim do t�nel, o espectro pol�tico � bastante nebuloso”, afirma.
Ele considera que o Brasil atravessa um momento crucial e � importante que as pessoas se informem sobre cultura por meio de ve�culos confi�veis.
“A escolha dos nossos representantes impacta no trabalho de muita gente. Um projeto como ‘Marte um’ emprega entre 200 e 300 pessoas. Ent�o, isso tem um retorno de mercado grande; n�o se resume � vaidade de um artista com o projeto dele. E tem a quest�o de uma pessoa como eu, negro, vindo da periferia, conseguir desenvolver um projeto como esse, que, de repente, cai no radar de um dos festivais de cinema mais importantes do mundo”, diz.
“Se � poss�vel ver alguma luz no fim do t�nel, � porque tem muita gente interessante e inteligente lutando pela cultura. Com todo esse desmantelamento, existe uma for�a de resist�ncia que me deixa menos inseguro com rela��o ao futuro. Somos ainda muito ref�ns do poder p�blico, mas existe sempre a possibilidade de a gente lutar”, conclui.
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