Adriano Ramos*
Especial para o Estado de Minas

A riqueza de Minas Gerais no per�odo colonial contribuiu para o desenvolvimento de ambiente cultural sem precedentes no Brasil do s�culo 18. Para atender � demanda da Igreja Cat�lica, art�fices produziram intensamente obras sacras, que se tornaram um dos principais legados art�sticos daquela �poca. Aleijadinho, que morou em Ouro Preto e atuou em v�rias partes do estado, � o mais conhecido e valorizado de todos. Mas outros artistas, por falta de pesquisas aprofundadas, permanecem desconhecidos. “Mestre Piranga”, designa��o da oficina que se instalou na Zona da Mata, � um exemplo que se encaixa perfeitamente nesse contexto.
Para entender esse fen�meno das artes pl�sticas, aproveitamo-nos aqui do artigo “O imagin�rio e inimagin�vel santeiro, todo Aleijadinho”, do falecido muse�logo Orlandino Seixas Fernandes, publicado em 1981 no Suplemento Liter�rio de Minas Gerais, que contextualiza o ambiente art�stico da Capitania das Minas do Ouro ap�s seu desmembramento da prov�ncia de S�o Paulo, homologada pela Coroa portuguesa no ano de 1720:
"... Ao contr�rio da costa, onde tudo eram sedimenta��es, conservadorismos e persist�ncias, bem t�picos das atividades de com�rcio, e transporte nelas sobremodo exercidos, nas Alterosas, ao inv�s, tudo estava sempre por fazer-se ou sendo refeito, nada era est�vel posto que o pr�prio solo de cont�nuo era movido pelo interesse humano ou consequ�ncia dele...."
Tratava-se, portanto, de uma sociedade heterog�nea, conflitante, em que se relacionavam pessoas de diferentes origens e culturas, com pontos de vistas e n�veis educacionais distintos, mesclando o erudito com o popular, de forma tumultuada e din�mica.

Em meados do s�culo 18, as vilas agruparam uma grande variedade de oficiais e artes�os, permitindo o conv�vio do "... artista portugu�s erudito ao lado do popular e ambos ao lado do improvisador arcaizante, luso ou africano, do improvisador primitivo negro ou ind�gena, e do ex�tico imitante a marfins e outros efeitos do Oriente importados", ainda sob a �tica de Seixas Fernandes.
Essas comunidades mineradoras, formadas circunstancialmente, viram-se na necessidade de empregar solu��es pr�prias, criativas, que amenizassem o elevado n�vel do custo de vida na capitania. A presen�a de ateli�s nas tendas e nos canteiros de obra, com todas as tarefas distribu�das planejadamente, revela o car�ter de equipe da produ��o art�stica setecentista, tamb�m com caracter�sticas artesanais, em que havia esquemas hier�rquicos envolvendo aprendizes, ajudantes, al�m da rela��o mestre-disc�pulo.
As esculturas produzidas por “Mestre Piranga” primam pela originalidade, com peculiaridades inconfund�veis, totalmente distintas de tudo do que at� ent�o havia sido produzido na Capitania das Minas do Ouro no decorrer do s�culo 18. Sua composi��o volumosa e de extrema for�a pl�stica � real�ada pela resolu��o em sali�ncia dos ombros, recortes ovalados da indument�ria na altura dos joelhos, aliada � excessiva dramaticidade anat�mica das faces e suas reconhecidas particularidades, como olhos esbugalhados e estr�bicos, mais a cabeleira em contornos triangulares.
Esse conjunto escult�rico, fora de d�vida, � fruto do envolvimento de variados artes�os e aprendizes que, sob a coordena��o de um mestre do of�cio, se alinharam esteticamente a um mesmo padr�o de cria��o, haja vista a variedade das obras, as quais, ainda que apresentando diferen�as pontuais entre si, mant�m a mesma concep��o art�stica em suas elabora��es.
Os recortes ovalados dos panejamentos nas figuras entalhadas, efeito de extremo impacto visual, foram muito empregados pelos escultores europeus que trabalhavam a pedra, material dif�cil de ser modelado. Sabe-se que os canteiros da Europa, na Idade M�dia, adotavam determinados procedimentos t�cnicos com ferramentas especiais, no intuito de conseguirem resultados pl�sticos de maior realce, obtidos facilmente na madeira, em fun��o da sua maciez.
Ora, essas ogivas, juntamente com os recortes triangulares que d�o movimenta��o aos panejamentos das figuras produzidas pela oficina de Piranga, foram esculpidas �nica e exclusivamente na madeira e tudo leva a crer que essa t�cnica tenha sido aproveitada por um profissional com experi�ncia em cantaria e que transportou seu m�todo para o inusitado suporte, fato esse muito comum na regi�o das Minas, palco prop�cio para experimentos e improvisa��es art�sticas.

Outro aspecto digno de considera��o s�o os tra�os fision�micos das figuras representadas, que, de forma alguma, tiveram como refer�ncia os cl�ssicos missais e ilustra��es religiosas vindos de al�m-mar. Os rostos s�o puramente populares e se encaixam conceitualmente no que o muse�logo Orlandino Seixas Fernandes designava como “abrasileiramento”, em artigo no qual se refere aos arqu�tipos mulatos nas obras escult�ricas de Ant�nio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
No caso de Piranga, percebe-se claramente em algumas figuras que suas fei��es tendem a uma similaridade com pessoas da zona rural, principalmente na rusticidade de seus tra�os fision�micos e na constitui��o dos membros, com destaque para a resolu��o das m�os calejadas, como ocorre em v�rias esculturas masculinas. H� presen�a tamb�m de m�o de obra mais refinada, principalmente no trato anat�mico, mas prevalecendo, no geral, a propens�o de se representarem figuras regionais ao inv�s dos modelos europeus, tirados das estampas que circulavam na capitania e que nada tinham a ver com esse primitivismo da escola de Piranga.
No s�culo passado, as cria��es dessa “Oficina de Piranga” passaram a ser disputadas pelos mais exigentes colecionadores e antiqu�rios do pa�s. O verdadeiro nome por tr�s do apelido famoso permanece inc�gnito, mas pistas come�aram a surgir h� algum tempo, quando um grupo de especialistas em Barroco de Belo Horizonte encontrou ind�cios sobre a identidade dos oficiais envolvidos no “ateli�” e que vir�o � tona, sob a coordena��o do Instituto Fl�vio Gutierrez, na edi��o de um document�rio, com participa��o do videomaker Alexandre M�ximo e do roteirista S�vio Grossi, e na publica��o de um livro sobre “Mestre Piranga”, trabalho dos pesquisadores Angela Gutierrez e deste autor.
As pesquisas se iniciaram pelo ret�bulo do altar-mor do Santu�rio de Bom Jesus de Matosinhos, em Santo Ant�nio de Pirapetinga, apelidado Bacalhau, distrito de Piranga, que foi ajustado com Jos� de Meireles Pinto no ano de 1782 e apresenta dois anjos adoradores nas laterais do coroamento, com todas as caracter�sticas inerentes � “Oficina”. Esse entalhador portugu�s trabalhou com uma equipe respons�vel por servi�os na Igreja S�o Francisco de Assis, de Mariana, em que se destacavam diversos oficiais de renome que, posteriormente, atuariam no Vale do Piranga.
Entre esses oficiais, encontrava-se Lu�s Pinheiro, escultor e entalhador, dono de um estilo escult�rico mais refinado, pr�ximo ao de Aleijadinho, com quem manteve estreitas rela��es profissionais. Trabalhou na regi�o de Piranga, em 1782, e foi o respons�vel pela execu��o do Cristo Crucificado da Igreja da Ordem Terceira de S�o Francisco, em Mariana, que apresenta ogiva bastante caracter�stica na altura do abd�men e recorte no periz�nio, com seu inconfund�vel arremate lateral em dobra semicircular, ambos “cacoetes” praticamente repetidos em todas as reprodu��es do Cristo de “Mestre Piranga”.
MIST�RIO
Ap�s sua passagem pelo Santu�rio do Senhor Bom Jesus do Matozinhos, por volta de 1799, Ant�nio de Meireles Pinto manteve contatos profissionais nos, hoje, munic�pios de Rio Pomba, Dores do Turvo e Merc�s, onde foi encontrada uma pe�a-chave para auxiliar no desvendamento desse verdadeiro mist�rio que envolve o “ateli� de Piranga”. A padroeira instalada no altar central da Igreja Nossa Senhora das Merc�s tem todas as especificidades dessa oficina, ou seja, estrabismo, panejamento acentuado na altura dos ombros, cabelos em contornos triangulares nas laterais da face e querubins com as particularidades de outros atribu�dos � mesma produ��o art�stica. At� a presente data, nenhum especialista havia relacionado essa imagem �quela escola.
Esse constante exerc�cio de observa��o e an�lise comparativa de detalhes anat�micos ou de pormenores escult�ricos, em busca de similaridades entre imagens de determinado autor envolvido no procedimento criativo, diante da aus�ncia de documenta��o comprobat�ria, � a �nica possibilidade real para que o pesquisador se aproxime mais fielmente dos verdadeiros respons�veis pela execu��o de certas obras.
Em Minas Gerais, at� nossos dias, ainda h� uma enorme quantidade de artistas e ateli�s a serem analisados e identificados, sem entrar no m�rito das obras estritamente populares, produzidas em grande escala em toda a capitania. Em meio a esse incomensur�vel n�mero de obras e autores, muitas esculturas sacras ficam no anonimato ou s�o equivocadamente atribu�das a esse ou �quele escultor apenas em virtude de pequenas semelhan�as morfol�gicas ou anat�micas, sem se levar em conta que havia na col�nia, como ocorria na Europa desde a Idade M�dia, oficinas que contavam com a presen�a de diversos oficiais, inclusive em s�lidas parcerias e associa��es ou ainda mediante terceiriza��es de algumas etapas dos servi�os.
Claros vest�gios surgidos durante nossas pesquisas, no entanto, permitem-nos conjecturar que o “ateli� de Piranga” foi concebido por Lu�s Pinheiro juntamente com Jos� de Meireles Pinto e Ant�nio de Meireles Pinto, envolvendo uma gama de outros artistas em sua rica e variada obra. A nosso ver, ficou a cargo de Pinheiro, devidamente autorizado pelo Senado da C�mara, administrar a oficina na regi�o e, estilisticamente, imprimir �s figuras esculpidas os tra�os mais refinados, como os da Nossa Senhora da Piedade, de Rio Espera.
A ideia do document�rio e do lan�amento de um livro pelo Instituto Cultural Fl�vio Gutierrez tem o objetivo de trazer � luz esses art�fices, cujos rastros, deixados em suas a��es pelos recantos da ent�o Capitania das Minas do Ouro e pelas qualidades art�sticas observadas em obras por eles comprovadamente confeccionadas, indicam sua presen�a na coordena��o dessa importante escola, intitulada e aclamada nacionalmente como “Mestre Piranga”.
* Adriano Ramos � pesquisador e restaurador de obras de arte