
Na capa do disco, uma cena rural: um garoto preto e outro branco simbolizam a amizade de Milton e L�. Enquanto um deles ri, o outro tem o olhar desconfiado. De um barranco de terra, agachados, encaram a c�mera do fot�grafo Cafi sem saber que em breve eles � que ser�o mirados por uma multid�o de an�nimos. Ao colocar o LP na vitrola, surgem can��es forjadas no encontro de jovens audaciosos nascidos nos anos 1940 e 1950 que, juntos, iluminaram os caminhos da m�sica de Minas Gerais nas d�cadas seguintes.
Lan�ado em mar�o de 1972, h� 50 anos, “Clube da Esquina” � repleto de lampejos de genialidade, mas � o conjunto da obra que est� eternizado. O projeto coletivo que reuniu em seu artesanato um time diverso, inventivo e libert�rio de instrumentistas e poetas tem o esp�rito agregador de Milton Nascimento como elo.
Com tantas mentes inquietas e criativas montando o quebra-cabe�a de “Clube da Esquina”, coube ao niteroiense Ronaldo Bastos a miss�o de arrumar a casa. “A gente se comunicava muito, troc�vamos ideias musicais e po�ticas. Naturalmente, com tanta gente talentosa tendo ideias, existiam muitas vis�es diferentes de como isso poderia acontecer em um �lbum”, explica o autor dos versos de “Cais”, “O trem azul”, “Cravo e canela”, “Nuvem cigana”, “Um gosto de sol” e “Nada ser� como antes”.
“Acho que foi por isso que o Bituca centralizou em mim a tarefa de tentar fazer convergir os pensamentos todos numa coisa s�. Minhas interven��es foram no sentido de achar uma unidade po�tica das can��es, pensando tamb�m na sequ�ncia delas e na musicalidade”, conta em entrevista ao Estado de Minas para o especial “Nada foi como antes”, que homenageia os 50 anos do disco.
E que coes�o po�tica seria essa? Muitas das can��es de “Clube da Esquina” trazem temas existencialistas t�picos de uma juventude reflexiva, expressos em imagens, sensa��es e met�foras que esbarram em certa melancolia, apreens�o e solid�o, mas tamb�m em sonhos e fantasias. � imposs�vel n�o notar a reincid�ncia do termo “estrada”, que aparece em pelo menos cinco faixas, mas cuja ideia central � exposta em diversas outras composi��es. S�o estradas, caminhos, passagens, encontros e viagens em constru��es l�ricas que evocam o desejo de movimento, mudan�a, fuga.
A narrativa de percurso e transforma��o tamb�m aparece na recorr�ncia da palavra “vento” e suas deriva��es, presentes em seis composi��es. Outra observa��o que salta aos ouvidos � a import�ncia dada � figura do sonhador, como simbologia para escapar e buscar o inating�vel. Afinal, com o que sonham os criadores do “Clube da Esquina”? Letras de m�sica, tal qual outras formas de express�o art�stica, s�o subjetivas. Elas podem deslizar da caneta do poeta com um significado diferente daquele apreendido pelo ouvinte. E � a� que est� a gra�a.
A capa do disco nos leva para o ambiente rural, mas a poesia presente no disco � essencialmente urbana. Fala-se muito da cidade. A m�sica, por sua vez, pode at� evocar certa ruralidade, reverberada em toadas interioranas, mas o som de “Clube da Esquina” � moderno, requintado, pop e dissonante.
Autor dos versos de “Tudo o que voc� podia ser”, “Um girassol da cor do seu cabelo”, “Os povos” e “Trem de doido”, M�rcio Borges acredita que exista uma aura de mist�rio no fato de o disco ter conseguido tocar t�o profundamente na sensibilidade e no acervo afetivo de uma legi�o de admiradores.
“Vejo centenas de interpreta��es dessas can��es a todo momento nas redes – artistas jovens, an�nimos, uma profus�o de talentos que se multiplica. Por que ser� que essas m�sicas criaram uma morada t�o grande dentro do cora��o dos brasileiros, de norte a sul do pa�s?”, pergunta ele.
“Vejo centenas de interpreta��es dessas can��es a todo momento nas redes – artistas jovens, an�nimos, uma profus�o de talentos que se multiplica. Por que ser� que essas m�sicas criaram uma morada t�o grande dentro do cora��o dos brasileiros, de norte a sul do pa�s?”, pergunta ele.
Uma aus�ncia expressiva sentida nas comemora��es do cinquenten�rio do disco � a do letrista Fernando Brant. Morto em 2015, aos 68 anos, o compositor foi parceiro de Bituca em seu primeiro sucesso, “Travessia”, e escreveu tamb�m obras ic�nicas como “Para Lennon e McCartney” (com L� e M�rcio) e “Ponta de areia”, “Can��o da Am�rica”, “Nos bailes da vida” e “Maria, Maria” (todas com Milton), para citar as mais conhecidas.
Em “Clube da Esquina”, Brant teve contribui��o decisiva, assinando versos inesquec�veis, como os de “San Vicente”, “Paisagem da janela”, “Pelo amor de Deus” e “Sa�das e bandeiras nº2”. “Fernando Brant � um fen�meno, sem o qual acho que nada disso teria acontecido”, acredita o compositor e instrumentista Nelson Angelo.
“Nunca houve um amigo que pranteei tanto quanto o Fernando Brant. N�o me lembro de ter chorado tanto, t�o intensamente e tantas vezes, nem na morte dos meus pais”, emociona-se M�rcio Borges, em entrevista ao Estado de Minas. “Nenhuma outra grande perda na minha vida me deixou t�o inconsol�vel por tanto tempo. Depois, fui me adaptando � aus�ncia dele, mas at� hoje eu n�o posso falar muito, entende?”.
Os integrantes do Clube lembram-se com carinho tamb�m do belo-horizontino Tavito, morto em 2019. Coautor das ic�nicas “Casa no campo” (com Z� Rodrix) e “Rua Ramalhete” (com Ney Azambuja), o compositor mineiro, craque do viol�o e da guitarra, foi integrante da banda Som Imagin�rio e emprestou seu talento para diversas faixas do “Clube da Esquina”, como a marcante guitarra de 12 cordas que adorna “Tudo o que voc� podia ser”.

TUDO O QUE ELES PODIAM SER
A sonoridade singular e intuitiva de “Clube da Esquina” desperta an�lises sedutoras. L� Borges defende que o talento dos instrumentistas convidados, bem como a liberdade criativa que eles encontraram no est�dio, deu vaz�o � explos�o de experimentos musicais bem-sucedidos.
“Era uma oficina de cria��o livre. Cada um fazia o que queria nas m�sicas. Milton era o cara da hist�ria, capitaneando tudo, e deu total liberdade para cada um criar da maneira que queria. O disco foi feito todo ao vivo, sem ensaio, em apenas dois canais. A sonoridade � impressionante. Parece que foi gravado nos dias de hoje, mas a gente come�ou na idade da pedra”, nota o compositor, em entrevista ao Estado de Minas.
“Era uma oficina de cria��o livre. Cada um fazia o que queria nas m�sicas. Milton era o cara da hist�ria, capitaneando tudo, e deu total liberdade para cada um criar da maneira que queria. O disco foi feito todo ao vivo, sem ensaio, em apenas dois canais. A sonoridade � impressionante. Parece que foi gravado nos dias de hoje, mas a gente come�ou na idade da pedra”, nota o compositor, em entrevista ao Estado de Minas.
Para al�m do talento e da liberdade, a intimidade musical dos instrumentistas certamente contribuiu para esse resultado. Toninho Horta, respons�vel por diversos arranjos de base do disco, sugere uma an�lise que remete ao sincretismo musical em “Clube da Esquina”. L� Borges e Beto Guedes trazem o rock dos Beatles, mas enquanto o primeiro bebeu da bossa nova com o irm�o Marilton Borges, o segundo era filho de um chor�o, Godofredo Guedes, e esses elementos tamb�m adentraram o caldeir�o.
Wagner Tiso tem forma��o musical erudita, mas seu piano pendia tamb�m para o pop e o rock progressivo. Milton, na vis�o de Toninho Horta, traz os cantos de trabalho, que remetem “ao sol quente na cabe�a nos cafezais sem fim”, al�m dos c�nticos de igreja e da m�sica religiosa das prociss�es. J� Toninho herdou a pegada das big bands do jazz norte-americano e da sonoridade de m�sicos como Stan Getz e Wes Montgomery.
Toninho Horta atribui ao disco “Clube da Esquina” a apresenta��o ao mundo da cumplicidade musical forjada em Minas Gerais. “Aqui, a gente tem muitas montanhas, n�? A m�sica dos compositores mineiros � caracterizada por um sobe e desce de intervalos distantes e notas longas que v�o l� no pico das montanhas. Temos essa riqueza natural de ser melodistas em potencial, fazer coisas muito audaciosas em termos de intervalos mel�dicos, al�m da harmonia totalmente inusitada – criada em casa, porque a gente � meio desconfiado, meio quieto, meio religioso”, divaga o m�sico.
O autor do solo de guitarra de “O trem azul” acredita que, depois da bossa nova, o Clube da Esquina tenha sido o grande movimento musical do Brasil.
“A Tropic�lia trouxe a atitude, a vestimenta, letras legais, arranjos ex�ticos do Rog�rio Duprat, mas musicalmente o Clube da Esquina � reconhecido no mundo inteiro como o movimento que ultrapassou as montanhas de Minas Gerais e do pa�s”, compara Toninho Horta.
“A Tropic�lia trouxe a atitude, a vestimenta, letras legais, arranjos ex�ticos do Rog�rio Duprat, mas musicalmente o Clube da Esquina � reconhecido no mundo inteiro como o movimento que ultrapassou as montanhas de Minas Gerais e do pa�s”, compara Toninho Horta.
De certa forma, “Clube da Esquina” dialoga com a bossa nova em termos de requinte e sofistica��o harm�nica, mas tamb�m bebe da doutrina tropicalista. Enquanto o movimento baiano prop�s romper padr�es de bom gosto preestabelecidos, o Clube tamb�m abusou da mistura e da fus�o, s� que de maneira seletiva.
Mentor do tropicalismo, ao lado dos conterr�neos Gilberto Gil e Tom Z�, Caetano Veloso escreveu no pref�cio de “Os sonhos n�o envelhecem”, livro de M�rcio Borges, que o Clube da Esquina “trazia o que s� Minas pode trazer: os frutos de um paciente amadurecimento de impulsos culturais do povo brasileiro, o esbo�o (ainda que muito bem-acabado) de uma s�ntese poss�vel”. E mais: a sonoridade dos mineiros “aprofundou quest�es que foram sugeridas pelas descobertas anteriores, cuja validade foi confirmada pelo tempo”.
Mentor do tropicalismo, ao lado dos conterr�neos Gilberto Gil e Tom Z�, Caetano Veloso escreveu no pref�cio de “Os sonhos n�o envelhecem”, livro de M�rcio Borges, que o Clube da Esquina “trazia o que s� Minas pode trazer: os frutos de um paciente amadurecimento de impulsos culturais do povo brasileiro, o esbo�o (ainda que muito bem-acabado) de uma s�ntese poss�vel”. E mais: a sonoridade dos mineiros “aprofundou quest�es que foram sugeridas pelas descobertas anteriores, cuja validade foi confirmada pelo tempo”.
S� que o Clube da Esquina nunca se prop�s como um movimento, mas � frequentemente percebido assim. O encontro dos mineiros e fluminenses foi mais intuitivo do que organizado, mas apresentou not�veis inova��es est�ticas e gerou um disco-manifesto – mesmo que “Clube da Esquina” n�o seja caracterizado dessa forma por seus art�fices. Um movimento discreto, digamos, � moda de Minas Gerais.

''Eu tive contato com esse disco muito cedo, era obrigat�rio na minha fam�lia, tocava praticamente toda semana. Est� muito presente na minha inf�ncia, a capa com os meninos, as texturas, a delicadeza, as melodias bel�ssimas... Mais velho, com 16 anos, revisitei esse �lbum j� como aspirante a m�sico, tendo meus primeiros contatos com a guitarra, tra�ando paralelos com as m�sicas dos Beatles, dos Stones, Crosby, Stills & Nash, Creedence, que eu escutava muito. A� vem a sugest�o do encontro da m�sica feita no meu pa�s, por pessoas da minha cidade, com a m�sica universal. Que riqueza, n�? Tem tudo ali no 'Clube da Esquina': o folk psicod�lico, a m�sica africana, a m�sica latina, o rock. Chama a aten��o esse arco-�ris, essa pluralidade de vertentes. Eram garotos que estavam na ebuli��o de sua criatividade. 'Trem de doido', do L�, e 'Um gosto do sol', do Milton, s�o m�sicas que tenho particular prefer�ncia entre tantas p�rolas nesse disco que considero uma obra-prima''
Samuel Rosa, cantor e compositor
Leia amanh� (10/3): “Clube da Esquina” foi lan�ado em problem�tico show de estreia, mas tudo mudou quando um mestre do jazz ouviu Bituca cantar. Nana Caymmi e Duca Leal tiveram papel fundamental na cria��o das can��es “Clube da Esquina nº2” e “Um girassol da cor do seu cabelo”